Agência Carta Maior, por Jonas Valente
Existem hoje 15 mil empreendimentos alternativos no Brasil, envolvendo cerca de 1,5 milhão de pessoas em 2274 municípios. Participantes da I Conferência Nacional do setor querem mais crédito e facilidades na comercialização.
Enquanto os debates sobre a política econômica do governo se concentram em pequenos ajustes nos percentuais das taxas de juros, das metas de inflação e do superávit primário, em todo o País cerca de 1% da população brasileira vem adotando formas alternativas de modo de produção para buscar saída à falta de oportunidades a partir da união de esforços e gestão coletiva. Esta forma de organização da produção ganhou o nome de Economia Solidária e tem na capital federal esta semana a sua primeira Conferência Nacional. Desde segunda-feira (26), mais de mil delegados de todos os estados brasileiros estão reunidos para traçar propostas sobre como potencializar sua organização em cadeias produtivas que incorporem empreendimentos de economia solidária (EESs) de ponta a ponta e discutir a política pública de apoio à atividade.
Esse tipo de economia é caracterizado pela forma de organizar a atividade econômica a partir dos princípios da autogestão (modelo em que todos decidem sobre o empreendimento), da solidariedade, da cooperação e da ajuda mútua. “Portanto, não há separação entre capital e trabalho, entre os detentores dos meios de produção e aqueles que vendem a força de trabalho. A economia solidária se propõe a ser um modo de produção alternativo ao capitalismo”, explica Fábio Bechara, da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Divergências a parte sobre os caminhos para a ampliação desta atividade, o consenso entre os participantes é que a área vem crescendo nos últimos 15 anos. “Não é mais um embrião, a economia solidária está acontecendo e vem crescendo em ritmo intenso. Vem aparecendo uma grande variedade de clubes de troca, feiras e outras iniciativas que classificamos como economia solidária”, afirma o secretário nacional de economia solidária do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Paul Singer. Segundo dados do Atlas da Economia Solidária no Brasil, produzido pelo MTE, há hoje 15 mil empreendimentos deste tipo de atividade envolvendo cerca de 1,5 milhão de pessoas em 2274 municípios. O estudo constatou grande ocorrência dos empreendimentos na região Nordeste (44%), que é seguida pelo Sul (17%), Sudeste (14%), Norte (13%) e Centro-Oeste (12%).
A força do Nordeste pode ser atribuída ao principal motivo pelo qual as pessoas montam um EES: a falta de perspectivas. De acordo com o Atlas Brasileiro, 45% das iniciativas foram motivadas pela construção de alternativas ao desemprego. “Uma das principais causas do aumento da economia solidária é a crise social que o País vive desde os anos 80, que implica num desemprego em massa e em exclusão social. Há milhões de trabalhadores que deveriam estar ganhando e não estão conseguindo. Então começam a se auto-organizar em núcleos de produção e cooperativas como alternativa”, explica Singer.
Outra parte importante dos EES foi motivada por complemento da renda dos sócios (44%) e obtenção de maiores ganhos (41%). Este processo ocorre sobretudo por conta da grande incidência de empreendimentos, principalmente cooperativas e associações de produção e comercialização, nas atividades agrícola, agropecuária, extrativista e pesqueira, que representam 42% entre os EESs pesquisados. Destacam-se também entre os principais produtos produzidos os do ramo de alimentação e bebidas (18,3%) e artesanato (14%). O governo ainda não possui dados exatos sobre a participação deste setor no Produto Interno Bruto, mas levantou a partir de respostas de 70% dos empreendimentos a cifra de R$ 500 milhões de valor mensal de produção. “Não temos o impacto exato no PIB mas sabemos que não é pequeno”, diz Fábio Bechara.
CONQUISTAS E DESAFIOS O governo chega à primeira conferência nacional da área bem avaliado. Para o secretário, Paul Singer, o governo inovou em criar um órgão específico para o tema e tem atuado de maneira positiva. “A ação do governo tem ajudado no crescimento desta atividade. Não só a Senaes, mas vários ministérios estão dando apoio aos empreendimentos de economia solidária”, comenta. Ao longo dos últimos três anos, a Senaes tem atuado no apoio aos empreendimentos de economia solidária por meio do fortalecimento tanto dos próprios EESs como através das chamas entidades de fomento (ONGs, universidades, organizações religiosas). “Um importante avanço foi a quebra da política de balcão, baseada no financiamento de projetos de forma pontual e por afinidade. Avançou-se para a criação de programas, com critérios e sem favorecimentos a determinados grupos”, diz Ademar Bertutti, da Cáritas e do Fórum Brasileiro de Economia Solidária.
Segundo Bechara, outra ação importante da secretaria foi o desenvolvimento de uma política de crédito voltada especificamente para a economia solidária. Isso se deu através do fortalecimento de bancos comunitários e do estímulo ao diálogo das linhas de crédito existentes com este tipo de atividade. “Do governo federal a principal iniciativa é o Programa de Microcrédito Produtivo Orientado (PMPO), com recursos do Fundo e Amparo ao Trabalhador [FAT]. Os grandes empreendimentos, como as empresas recuperadas, têm recebido cada vez mais apoio do BNDES”, diz. No entanto, para Niro Barrios, da União e Solidariedade das Cooperativas e Empreendimentos de Economia Social do Brasil (Unisol), as ações nesta área ainda apresentam sérias limitações. “O crédito ainda é insuficiente, pois há empreendimentos que precisam de mil reais e outros que precisam de R$ 50 milhões, como é o caso das empresas recuperadas. E isso mexe com a estrutura financeira do País, com o Ministério da Fazenda e com o BNDES, o que demanda ajustes mais profundos”, afirma.
Outro gargalo que está na mira da Senaes é a comercialização. Segundo o Atlas da Economia Solidária no Brasil, mais da metade dos empreendimentos destinam sua produção predominantemente aos mercados locais ou comunitários e municipais. Apenas 7% conseguem vender seus produtos no território nacional e 2% realizam transações com outros países. “Estamos buscando também formas de escoar a produção dos EES, cujo exemplo é o programa nacional de feiras de economia solidária e a estruturação do sistema nacional de comércio justo a partir da articulação de cadeias produtivas entre os empreendimentos”, conta Bechara. Ele dá como exemplo a cadeia produtiva do algodão ecológico, que tem hoje desde a produção da planta até a costura e a venda das roupas, passando pelo processamento dos fios, ligados à empreendimentos de economia solidária.
Para os movimentos ligados à economia solidária, é preciso que o fortalecimento da atividade esteja ligado à transformação do modelo de desenvolvimento do País. “Para nos apresentarmos como proposta alternativa é preciso fazer muito mais do que o que está acontecendo hoje. É necessária uma mudança cultural no Brasil, onde a individualidade não pode se sobrepor à coletividade. Precisamos ter desenvolvimento, crescimento mas atendendo a todos”, defende Barrios, da Unisol.
Na opinião de Bertutti, a economia solidária não pode ser tratada como “coisa dos pobres”, mas precisa ser elevada a outro patamar. “Num patamar que permita que as articulações entre diferentes esferas de governo possam se traduzir num espaço em que a política de economia solidária possa ser entendida como eixo transversal do modelo de desenvolvimento e não como política setorial. Isso é desafio para todos os ministérios, não é política compensatória para amenizar as vicissitudes de um projeto macroeconômico que só nos traz exclusão social”, propõe.
PALAVRAS DO PRESIDENTE Na cerimônia de abertura, o presidente Lula classificou a I Conferência Nacional de Economia Solidária como “uma espécie de momento mágico” que “nos diz o que nós poderemos fazer daqui para frente”. “E quando eu digo nós fazermos, não é o Lula fazer, porque eu acredito numa outra coisa mais sagrada até do que a figura da pessoa, é um padrão de relacionamento que o Estado brasileiro precisa criar com a sociedade para permitir que a sociedade não dependa da decisão de um homem, mas dependa das decisões emanadas dos próprios fóruns coletivos de que participa”, complementou.
O recado do presidente foi enfático: “temos que uma organização tão forte e tão sólida que, independentemente de quem venha a ser presidente da República, essa pessoa saiba que não pode desmontar o que está enraizado, que não pode desrespeitar a vontade de um coletivo da sociedade brasileira, e esse é o maior legado que um presidente da República pode deixar para o seu povo, é a organização sólida, é o convencimento da sociedade de que valeu a pena acreditar naquilo”. E completou: “Se o governo achar que por conta de um Decreto Lei pode resolver os problemas da cooperativa, ele está predestinado ao fracasso, porque é preciso que haja a maturação das pessoas, é preciso que haja o amadurecimento. E esse amadurecimento, normalmente, é coletivo”.
Lula também manifestou a expectativa da consolidação de um conselho de economia solidária e pediu “mais sugestão ao governo”. “Vejam, uma coisa que vocês precisam ter clareza da relação que eu tenho com a sociedade organizada, é que mesmo quando eu estou de cara feia, eu não fico nervoso com uma reivindicação, porque eu passei a minha vida fazendo reivindicação, eu sou um reivindicador-mor, eu reivindico todo santo dia, então, eu acho que vocês têm que aprovar aqui as coisas que vão poder tornar mais sólida essa questão do microcrédito, mais sólida a questão da cooperativa”.