Por Thais Mascarenhas e Juliana Gonçalves (Instituto Kairós)

Se não tem água Perrier, eu não vou me aperrear

Se tiver o que comer, não precisa caviar

Se faltar molho rosé, no dendê vou me acabar

Se não tem Moet Chandon, cachaça vai apanhar

Esquece Ilhas Caiman, deposita em Paquetá

Se não posso um Cordon Bleu, cabidela e vatapá

Quem não tem Las Vegas, vai no bingo de Irajá

Quem não tem Beverly Hills, mora no BNH

Quem não pode, quem não pode

Nova York vai de Madureira

(“Vai de Madureira”, de Zeca Baleiro, 2008)

Perrier, caviar, molho rosé, Moet Chandon, Ilhas Caiman, Cordon Bleu, Las Vegas, Beverly Hills, Nova York… Zeca Baleiro nos traz muitas referências de consumo desejadas nessa listagem de pratos chiques e lugares caros. Tudo de fora do país. Mas a nossa realidade é outra: dendê, cachaça, vatapá, bingo, BNH, Madureira. O que temos aqui para comer e onde temos para ir e morar são outras possibilidades.

Também no filme “Funk Ostentação”(1), na realidade das periferias, o que é “da hora”, “classe A”, são os tênis importados, as roupas de marca, os carrões e as bebidas caras. Os maiores desejos são ter e exibir esses bens de luxo. Mas de que consumo estamos falando?

O consumo faz parte do dia a dia de todo mundo. Temos que morar, comer, beber, nos locomover, trabalhar, nos divertir, descansar. E pensar na possibilidade de produzirmos tudo o que precisamos para viver parece impossível. Assim, temos que trabalhar para conseguir dinheiro para trocar por aquilo que necessitamos. Mas do que realmente necessitamos para viver? “Você tem sede de quê? Você tem fome de quê?”, já cantavam os Titãs. O que é necessidade? E qual a diferença entre necessidade e desejo?

Tem gente que acha que precisa ir fazer compras em Nova York, tem gente que sempre faz compras em Madureira, bairro popular do Rio de Janeiro. Tem gente também – esses são mais raros – que se cansa de tantas compras e tenta viver sem comprar nada(2) (e produz seu próprio alimento, vestuário e outros itens de primeira necessidade).

Assim, o consumo do que precisamos para viver pode ser maior ou menor. A esse consumo desenfreado (quando compramos muitas coisas que são supérfluas, que não precisamos realmente, que não melhoram a nossa vida de verdade) chamamos “consumismo”. E ele está presente tanto na vida dos jovens da periferia como das classes mais altas. Na verdade, ele está presente na sociedade toda, pois faz parte da estratégia do capitalismo, que se fortalece quanto mais consumimos.

Para se ter uma ideia, nessa estratégia, alguns produtos são planejados para pararem de funcionar depois de um tempo, assim ficam obsoletos e temos que comprar outro novamente. É comum que as coisas que compramos sofram desgastes e quebrem. Mas quando isso é proposital, é planejado pela empresa que a produziu, então chamamos de “obsolescência programada”. Um exemplo bastante conhecido é a lâmpada, que, quando foi criada, durava muitos anos. Hoje em dia uma lâmpada dura cerca de 1.000 horas(3). Isso acontece bastante com produtos eletroeletrônicos, como celulares, computadores, impressoras, TVs, câmeras fotográficas, baterias, geladeiras e eletrodomésticos em geral. Podemos querer trocar de aparelho porque ele quebrou, ou porque foi lançado outro que funciona melhor ou porque foi lançado outro que tem um estilo mais desejado.

A publicidade também é usada para aumentar o consumo, além de ditar padrões de sucesso e beleza. O jeito como é mostrado um produto, sempre cheio de promessas de felicidade, faz com que a gente passe a desejar coisas que nunca tínhamos sentido falta antes. E muitas vezes essas coisas vão se transformando, se atualizando e nos vemos “precisando” do seu último modelo. Ou passamos a desejar certos estilos de roupa e a usar as coisas de um determinado jeito, como se aquilo que a gente consumisse dissesse ao mundo o que a gente é, falasse da nossa própria identidade e nos convencesse até de que pode nos ajudar a nos aproximar das pessoas ou a entrar para certos grupos. Assim, a publicidade, a mídia e a pressão social têm uma grande influência nas pessoas, e contribui para determinar nossas escolhas de consumo.

Algumas movimentações recentes trazem questionamentos importantes sobre o consumo. Os tímidos “Isoporzinhos” (em que jovens se encontram num espaço público levando, em isoporzinhos, bebidas compradas anteriormente e não precisam comprá-las a preços exorbitantes nos bares), realizados no Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais, no início do ano, apontaram alternativas aos preços altos e à falta de opções acessíveis de lazer. Os “Rolezinhos”(4), quando centenas de jovens da periferia se encontram para dar um passeio nos shopping centers (local em geral frequentado pelas classes mais altas), de um lado, revelam o consumismo como afirmação social e, de outro, denunciam a falta de equipamentos públicos de lazer e de possibilidades culturais na periferia. Essas movimentações escancaram também os preconceitos das classes mais altas sobre o consumo dos mais pobres, que, com o aumento da renda, conseguem usar os mesmos produtos. E por que não poderiam desejar e consumir esses produtos?

O aumento do consumo nas periferias tem um importante papel de afirmação social, mas precisa vir junto com o acesso a direitos básicos, como educação, saúde, cultura, lazer e transporte. De que adianta ter roupas chiques, tênis importados e aparelhos de último tipo e viver numa casa sem tratamento de esgoto? E ter que pegar três conduções feito sardinha em lata pra trabalhar do outro lado da cidade? Que transformação social estamos construindo?

No “Funk Ostentação”, aparecem muitas contradições do consumo nas periferias. Sem entrar na discussão estética, vemos que trazem a produção cultural feita pela periferia e para a periferia e mostram a recusa por uma posição subalterna, mas carregam valores e referências que surgiram no consumismo das classes mais altas e nos cantos sedutores da publicidade. Há também iniciativas de jovens da periferia que questionam esses padrões de consumo e apostam na cultura como dispositivo de desenvolvimento da economia local e fortalecimento da organização popular. Nessas quebradas, consumir a produção cultural local significa participar de um circuito de ações que buscam a transformação social por meio da cultura(5).

Voltamos aqui ao que alimenta nossa sociedade baseada no modo de produção capitalista. Nela, não interessa que as pessoas reflitam antes de comprar e tenham uma postura crítica no ato do consumo, fazendo algumas perguntas. Por exemplo, quem, antes de comprar algo, se pergunta se realmente precisa daquele produto? De onde ele vem? E para onde ele vai depois de consumido?

Em geral, o que vemos são pessoas escolhendo quais produtos vão comprar a partir do desejo e da necessidade, sem pensar no que esse ato provoca para além do que seus olhos veem, no mundo à sua volta. Ao comprar alimentos, por exemplo, a maioria das pessoas se preocupa mais com a aparência, o sabor e o preço. Outras acrescentam também a qualidade do produto, pois estão preocupadas com a própria saúde. Mas o ato de consumo tem consequências também para os outros, para o meio ambiente, a sociedade, a cultura e a economia.

Nem sempre temos todas as informações que gostaríamos. Mesmo assim, é importante refletir sobre as escolhas de consumo e buscar saber o que acontece antes do produto chegar em nossas mãos, como foi produzido, com quais matérias-primas, se gerou algum impacto ao meio ambiente, se os trabalhadores foram explorados no processo de produção, ou se são os trabalhadores que decidem como produzir e gerir o empreendimento, como está sendo comercializado, se o comerciante está recebendo uma remuneração maior que os produtores, se esta remuneração é justa etc. Assim, com essas questões, podemos saber o que estamos apoiando (quais formas de produção e comercialização, se são sustentáveis ou prejudiciais para o meio ambiente e para as relações sociais, p. ex.) ao escolher comprar e consumir um determinado produto.

Ou seja, o consumo pressupõe escolhas e, dessa forma, é um ato político. O consumo pode contribuir para a transformação social ou favorecer a manutenção das dinâmicas de dependência e exploração. Refletir sobre o nosso consumo e buscar alternativas mais sustentáveis e responsáveis é um grande desafio que encontramos hoje para efetivamente contribuir na construção de uma melhor qualidade de vida para nós mesmos e para todos.

Assim, é importante buscarmos um consumo que seja responsável, ou seja, cultivar um conjunto de hábitos e práticas que fomentam um modelo de desenvolvimento comprometido com a redução da desigualdade social. O consumo responsável tem como objetivo melhorar as relações de produção, distribuição e comercialização, o uso e o descarte de produtos e serviços, de acordo com os princípios da economia solidária, soberania alimentar, agroecologia e o comércio justo e solidário(6).

Essas escolhas ocorrem a todo momento no nosso dia a dia. E quais são suas consequências?O que estamos apoiando e construindo com elas? Se tomamos Moet Chandon em Nova York? Se tomamos cachaça em Madureira? Se ouvimos música gringa? Funk? Se vamos no sarau do bairro? Se comemos salsicha produzida numa grande indústria? Se comemos um vatapá produzido pelo vizinho? Se comemos biscoitos comprados no supermercado? Se bebemos limonada feita com limão colhido direto do pé no quintal? Se comemos pão com geleia produzida por uma cooperativa de agricultores familiares? Se cozinhamos com óleo de soja produzida por latifundiários? Se lanchamos num restaurante que é um empreendimento de economia solidária? A busca e a construção de um mundo mais justo, com menos desigualdade, também passa por essas escolhas.

NOTAS

1. Filme “Funk Ostentação”: www.youtube.com/watch?v=Z5jqujaN5as

2. Como a experiência da alemã Greta Taubert, relatada no livro “Apocalipse Now”: http://www.hypeness.com.br/2014/07/alema-passa-um-ano-sem-comprar-e-relata-experiencia-em-livro/

3. Buscando denunciar esse comportamento das empresas, o espanhol Benito Muros, do Movimento Sem Obsolescência Programada, foi ameaçado de morte por ter desenvolvido uma lâmpada com longa durabilidade: http://decrescimentobrasil.blogspot.com.br/2013/07/movimento-sem-obsolescencia-programada.html

4. Sobre isso, tem um ótimo texto da Rosana Pinheiro-Machado chamado “Etnografia dos rolezinhos”: http://rosanapinheiromachado.wordpress.com/2013/12/30/etngrafia-do-rolezinho/

5. Como a experiência da Agência Solano Trindade, na zona sul da cidade de São Paulo: http://agenciasolanotrindade.wordpress.com

6. Ver página virtual do Instituto Kairós: www.institutokairos.net / www.facebook.com/IKairos