Fonte: http://www.adital.com.br
A corporeidade é uma categoria antropológica que aponta para a importância do corpo enquanto instancia de realização do humano. Na filosofia, o corpo aparece sob várias perspectivas: hora como algo a ser descartado, por ser porta-voz dos sentidos, acusado piamente de ser enganador do conhecimento e da realidade. Noutras ele aparece como substrato da “vida-nua”, onde sua valoração depende das relações de poder, onde dominação e escolha se confundem com liberdade e ação. Para o filósofo francês Gilles Deleuze, “o que define um corpo é essa relação entre forças dominantes e forças dominadas. Toda relação de forças constitui um corpo: químico, biológico, social, político”.
Se há um tipo de violência que me causa maior indignação, em relação a todas as outras, é a violação de direito sobre o próprio corpo. Mais especificamente o assédio sexual e o estupro.
Nos últimos tempos alguns casos têm aparecido na mídia. Como o da estrangeira violentada dentro de um transporte alternativo, no Rio de Janeiro. Ou, nessa semana, o caso da jovem violentada por um policial militar, em Fortaleza. Ou ainda mais, o caso da banda baiana New Hit, acusada de estuprar adolescentes que foram ao ônibus da banda pedir autógrafos. São muitos os casos relatados. Assim como são muitos também os casos omitidos. Sempre alguém já ouviu falar em um caso ou outro, mas parece que diante do horror desta violência a tendência é calar e procurar “esquecer” o mais rápido possível.
Comumente alertam-se as mulheres sobre o risco de vestir determinadas roupas, ou frequentar certos lugares, adotar algumas posturas. Parece, na maioria das vezes, que a mulher é a única responsável por evitar ser violentada. Parece que “aos homens” apenas cabe a escolha de violentar ou não. E às autoridades punir ou não. E à sociedade “abafar o caso” ou apontar a mulher vítima de violência sexual, como alguém que protagonizou algo tão horrível que deve ser escondida, sob a culpa que carrega, ou apontada publicamente para servir de lição.
Sensacionalismos à parte, a violência sexual, ao que me parece, é um tipo de violência que agrega uma série de outras questões. É a violação física, o atentado contra a liberdade, o dano moral, a violência psicológica e o que é mais grave, pois figura como a raiz dos demais problemas apontados: o machismo.
Não me reivindico feminista, nem sou militante de nenhum movimento que defenda especificamente os direitos das mulheres, porém, compreendo por machismo uma forma de ver o mundo que tem no seu núcleo a exclusão histórica das mulheres e a consequente violação dos direitos humanos destinados às mesmas, assim como, toda a violência que é praticada contra elas, pelo simples fato de serem mulheres. Normalmente, quando se fala de violência contra a mulher, apontam-se os dados de violência doméstica, aquela praticada dentro de relações conjugais, de proximidade parental ou entre conviventes de várias esferas. Quando se fala de assédio sexual ou estupro é dada outra caracterização e motivação, de forma tal que, muitas vezes, abre brecha para discursos destorcidos, que muitas vezes são reproduzidos pelas próprias mulheres, colocando-as como pivô de tal situação, alegando-se a existência de comportamento imoral e naturalmente passível de violência. A violência doméstica e a violência sexual (praticada contra mulheres, homens e crianças) figuram no mesmo quadro de motivações, expressa pela forma como homens e mulheres se relacionam em sociedade.
Se recuarmos um pouco na nossa reflexão podemos nos lembrar de algo comumente citado, em se tratando das diferenças entre homens e mulheres: o modo como são “educados”, tanto em suas famílias, como nas escolas, comunidades, etc. Algumas mães (ou responsáveis), quando são chamadas à atenção sobre o comportamento dos filhos, principalmente na adolescência, quando estes se envolvem com uma menina cujos pais não querem que namore ainda, proferem a conhecida frase de efeito “quem tem suas cabras que prendam, pois meu cabrito tá solto”, ou algo assim. Parece algo ingênuo, e por ser tão comum de se ver, é algo normal o fato de se cobrar da menina ou de sua família que a resguarde. Assim, constata-se que ainda nos dias de hoje, embora muitas mudanças a favor das mulheres tenham sido conquistadas, prevalece a ideia de que em termos de afetividade e sexualidade, respectivamente, uma é tarefa da mulher e a outra do homem; e correlativamente, cabe a mulher a defesa e ao homem o ataque; a mulher a prevenção e ao homem a possibilidade do estupro, etc. Não quero parecer radical ou até mesmo generalista, cito esses exemplos apenas para ilustrar a questão, que é de grande complexidade e que está para além de qualquer achismo.
Em uma campanha da Marcha Mundial de Mulheres que vi na internet, havia a divulgação de um banner que dizia “o machismo mata”, e eu reitero, mata, mas antes oprime, estupra e ridiculariza a mulher vitima de violência.
Serão necessárias mais que muitas campanhas de conscientização. Será necessário mais que uma coerção ostensiva contra este crime hediondo e tão cheio de traços do que é difundido como valores na nossa sociedade. É preciso mais do que apontar a presença do machismo na nossa sociedade, é preciso mudar a forma como o homem vê a mulher, como a mulher vê o homem e como ambos veem a si mesmos. A violência, como vocação humana, não tem data pra acabar e possibilitar um mundo totalmente pacífico, mas ela pode ser manipulada e controlada, desde que os posicionamentos a seu respeito apontem para saídas efetivas. Prender o estuprador e fazer com que ele “pague” pelo que fez é indispensável, assim como a rigidez da lei que pune tal crime, mas também se deve ensinar ao menino que a mulher é semelhante a ele, embora seja diferente, e que ela é tão livre quanto ele, tão digna e tão capaz, portanto, não é um mero objeto de seus desejos e vontades. E vice-versa.