Fonte: http://revistapesquisa.fapesp.br/2013/04/12/o-lixo-e-a-utopia/
Em janeiro de 2008, o Brasil registrou uma taxa de desocupação de 8%. O quadro não era tão dramático quanto o de janeiro de 2003, quando o desemprego ultrapassara os 11%, mas um imenso contingente de trabalhadores ainda buscava alternativas de renda no mercado informal de trabalho. Foi exatamente nessa época que um grupo de pesquisadores, liderados por Márcia de Paula Leite, do Programa de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), iniciou estudo com o objetivo de identificar e compreender as diferentes modalidades de inserção produtiva constituídas em tempos de crise, principalmente o cooperativismo, já estimulado, na época, por política oficial.
Ao longo dos cinco anos seguintes, o cenário mudou e o índice de desemprego descendeu para um patamar próximo dos 5%, o que possibilitou aos pesquisadores praticamente presenciar o rearranjo desse mercado. “O trabalho precário ainda existe, mas o cooperativismo e o associativismo ganharam contornos diferentes, que desafiam o ideário de algumas correntes de pensamento ligadas à economia solidária”, afirma Márcia, coordenadora do projeto temático A crise do trabalho e as experiências de geração de emprego e renda: as distintas faces do trabalho associado e a questão de gênero, com o apoio da FAPESP.
O conceito de economia solidária tem origem na crise econômica e de emprego dos anos 1960 e identifica formas de organização do trabalho distintas dos padrões do mercado, entre elas o associativismo. Ganhou status de política oficial do governo federal desde 2003 e é considerada uma iniciativa a favor da inclusão social. “Economia solidária é um jeito diferente de produzir, vender, comprar e trocar o que é preciso para viver. Sem explorar os outros, sem querer levar vantagem, sem destruir o ambiente”, explica a página do programa no site do Ministério do Trabalho e Emprego. Envolve “práticas econômicas e sociais organizadas sob a forma de cooperativas, associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes de cooperação, entre outras, que realizam atividades de produção de bens, prestação de serviços, finanças solidárias, trocas, comércio justo e consumo solidário”.
A pesquisa coordenada por Márcia – e que teve Jacob Carlos Lima, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e Ângela Maria Carneiro Araújo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), como pesquisadores principais – começou com um amplo levantamento, em várias fontes, dessas formas “diferentes de produzir” no estado de São Paulo, que identificou um total de 107 cooperativas: de alimentação (3), artesanato (21), costura e confecção (11), fábricas recuperadas (13) e, principalmente, de reciclagem (59). “Visitamos todas as cooperativas e associações de São Paulo, com equipe de alunos bolsistas, para aplicação de questionário”, conta Márcia.
© EPITÁCIO PESSOA /AGÊNCIA ESTADO /AE Tempos passados: desempregados mostram carteiras de trabalho há uma década; ao lado, camelô na capital paulistana
Tempos passados: desempregados mostram carteiras de trabalho há uma década; ao lado, camelô na capital paulistana
A análise das informações mostrou que as cooperativas de alimentação, artesanato, costura eram literalmente informais, não organizadas, e que o trabalho coletivo dizia respeito mais à comercialização do que à produção. Pouco contribuía para aumentar a renda ou a condição de vida dos associados. As fábricas recuperadas eram experimentos mais “estruturados”, com vínculos mais estreitos com o sindicato, já que agregavam trabalhadores migrados do mercado formal, sem perspectiva de retorno. As empresas autogestionadas, no entanto, revelaram-se um fenômeno cada vez mais raro numa economia em desenvolvimento, sublinha Márcia.
A experiência mais representativa – e que ganhou mais atenção dos pesquisadores – foi, e segue sendo, a das cooperativas de reciclagem, que reúnem trabalhadores urbanos “extremamente excluídos”, desempregados e inativos, ex-catadores de lixo ou empregados domésticos, analfabetos e sem condições de ingresso no mercado formal de trabalho. “Essa forma de inserção pode, efetivamente, contribuir para tirá-los da miséria social e lhes garantir cidadania.”
Essas cooperativas também se diferenciam pela organização: são ligadas ao Movimento Nacional de Catadores de Recicláveis (MNCR), que, segundo a pesquisadora, conseguiu a regulamentação da ocupação e aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, em agosto de 2010. “E, diferentemente das demais, têm grande potencial de crescimento, considerando que o país possui ainda uma porcentagem significativa da população, cerca de 16,2 milhões de pessoas, com rendaper capita inferior a R$ 70”, argumenta ela, com base em dados do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), coletados em junho de 2012.
A cooperativa de reciclagem, por suas características, é o tipo de empreendimento que mais se aproxima dos preceitos da economia solidária, já que apresenta um elemento de “resistência” dos trabalhadores à situação de exclusão, de desemprego e de subordinação ao trabalho assalariado. Trata-se, no entanto, de empreendimento extremamente “frágil”, nota Márcia, e há enormes dificuldades a serem superadas para alcançar condições de sustentabilidade econômica e de reprodução. A primeira delas é a distância que ainda mantém dos princípios da solidariedade e da prática da autogestão propugnados pela economia solidária e, como ela diz, “dificilmente alcançáveis nas condições políticas atuais”.
© EDUARDO CESAR Além disso, o mercado já compreendeu que a reciclagem agrega valor ao produto, transformando lixo e sucata em matéria-prima a baixíssimo custo. “No barracão, o lixo é separado, ensacado ou empacotado e vendido por centavos de reais a intermediários que vendem para os recicladores. Poucas cooperativas têm prensas ou espaço para armazenamento”, descreve. “É preciso implementar políticas públicas que de fato permitam às cooperativas de catadores agregar valor ao seu produto.” A Lei de Resíduos Sólidos, aprovada em 2011, por exemplo, estimula as prefeituras a negociar o tratamento de resíduos sólidos com cooperativas de catadores, mas, até o momento, poucas adotaram essa política.
Márcia reconhece que o cooperativismo propicia, de alguma forma, a inclusão social e política de indivíduos que, até então, viviam em situação de absoluta miséria. Conta que, em visita a associações de reciclagem, era frequente ouvir dos cooperados declarações de que o trabalho organizado os tirara do silêncio. “Trata-se, sem nenhuma dúvida, de um processo de libertação e de empoderamento, que vai ao encontro da economia solidária”, ela sublinha.
A “inclusão” e o “empoderamento” – palavra traduzida literalmente do termoempowerment, em inglês, que significa a ação coletiva desenvolvida por indivíduos e que propicia a consciência social dos direitos sociais – parecem ser o ponto forte das iniciativas da economia solidária. Adriane Vieira Ferrarini, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos, no Rio Grande do Sul, uma estudiosa do tema, pondera que, se consideradas apenas da perspectiva da renda, essas iniciativas podem parecer ineficientes. “Elas têm um efeito de inclusão social significativo, já que pressupõem um modelo coletivo e democrático de gerenciamento do empreendimento e de autogestão, o que muitas vezes pode representar um ganho maior que a renda.” Dentre muitos casos pesquisados, ela cita o exemplo de um grupo de mulheres empreendedoras gaúchas cuja organização levou a que elas se mobilizassem contra a violência doméstica, passassem a desempenhar uma liderança política na sua comunidade e retornassem aos estudos.
No Rio Grande do Sul, onde o cooperativismo é forte, a maior parte das experiências formalizadas da economia solidária ocorre no meio rural ou, em menor escala, por meio de empresas autogestionadas. “No meio urbano é mais difícil essas iniciativas se consolidarem, em função das características da pobreza urbana.” Adriane considera, no entanto, que os ganhos sociais significativos muito provavelmente serão registrados apenas em médio e longo prazo, já que se trata de processo de inclusão de pessoas que vivem “um processo histórico de degradação” e, no caso do Brasil, ser iniciativa recente. “Quem conceber os empreendimentos de economia solidária como ilhas de prosperidade em contexto de precariedade corre sério risco de ter frustradas suas expectativas”, adverte. “Uma conquista importante é que o movimento conseguiu pautar na agenda política um conjunto de iniciativas públicas, em especial na última década. Hoje, por exemplo, já existem recursos para pequenos empreendimentos e programas vinculados à formação destes empreendedores.” A economia solidária, sublinha, não é panaceia para a pobreza – “seria até pretensioso pensar assim!” –, mas se inscreve no campo das “alternativas para a pobreza” e vai além, quando propõe um projeto de desenvolvimento pautado na sustentabilidade, na justiça social e econômica e na democracia participativa, ela acrescenta.
Na avaliação da coordenadora do projeto temático apoiado pela FAPESP, a baixa repercussão do cooperativismo solidário na renda reforça a cultura do assalariamento, sobretudo quando os indicadores de emprego estão em ascensão. “No Brasil, a cidadania regulada, tendo como referência o trabalho formal, impacta a construção identitária do trabalhador e suas perspectivas futuras no mercado de trabalho.” Assim, a ideia de autogestão ou de propriedade coletiva dos meios de produção não aparece como possibilidade a ser conquistada. “A construção de uma nova cultura do trabalho associado supõe uma vontade política que se expresse em políticas públicas para mudanças efetivas nas prioridades e nos rumos do desenvolvimento econômico, dando primazia ao trabalho frente ao capital.”