Por Sandro Gomes
Recentemente vivi uma das experiências mais constrangedoras de minha vida. Estive no município de Pedras de Fogo para acompanhar um caso onde um empreendimento organizado por catadores de materiais recicláveis foi vitimado por um incêndio criminoso que consumiu o material armazenado e os equipamentos, adquiridos a duras penas. Julgava que enfrentaria, neste caso, a pior experiência da viagem, pois sei como tem sido difícil adquirir bens para apoiar a organização de uma das categorias mais empobrecidas de nossa sociedade. Ignorava que poderia me deparar com qualquer situação mais forte, até o momento que, ao me dirigir à delegacia de política, acompanhado por uma militante da Cáritas, a fim de saber sobre a perícia que a polícia civil deveria ter feito no dia seguinte ao sinistro – diga-se de passagem, com mais de quinze dias de atraso – acabamos nos deparando, no interior da delegacia, com outro fato que também nos causou perplexidade.
Ao adentrar as dependências da delegacia, com o propósito de dialogar sobre o incêndio e a respeito da citada perícia, encontramos uma mãe e sua filha adolescente, essa com 13 anos de idade. Recorriam à polícia em busca de apoio, quando a mãe da adolescente relatava um abuso sofrido por sua filha, denunciando um visinho – de meia idade – que a teria seduzido e, posteriormente, violentado-a sexualmente, sob a promessa de presenteá-la com um aparelho celular. O município de Pedras de Fogo é reconhecido pela violência e pelas mazelas de uma região de fronteira (Paraíba-Pernambuco), onde a pobreza impera e as relações de poder se sobrepõem ao Estado de Direito. Não dessemelhante do que acontece em todos os bolsões de pobreza, o celular é um daqueles produtos que se apresenta como símbolo de status e de bem estar para os jovens, afetados pelo fetiche do produto, capaz de causar desejo ilimitado a ponto de subjugar os seres humanos às mais degradantes condições de humilhação, causando tamanho furor, a ponto de motivar o crime que banaliza a vida e, até mesmo, a violação da dignidade de uma adolescente de treze anos. Mas, se essa questão já é motivo de indignação, ela não se apresentou no citado episódio como o único motivo de minhas revoltas.
A mãe nervosa e sua filha, constrangida, buscando o auxílio da justiça, pois já haviam tentado o apoio, sem sucesso, de um conselho tutelar desaparelhado e despreparado, típico de um município onde os conselheiros são escolhidos sob a influência das relações políticas locais, estavam expostas a um serviço de polícia preconceituoso e machista, em sua pior expressão. Como resposta a denúncia, o delegado, que mais se assemelhava a um bad boy, em momento algum demonstrou qualquer reação de profissionalismo, ou sequer se deu conta de seus deveres, a luz do Estatuto de Criança e do Adolescente, muito menos da Lei Maria da Penha, que asseguram o direito a vitima da violência sexual – pois a mãe tentava desesperadamente fazer-se compreendida em sua situação de humilhação.
Ao contrário, o delegado às expôs ao ridículo, à contestação pública e a uma séria de outros comentários preconceituosos, pejorativos, levantando a tese de que a violentada teria sido a provocadora do crime cometido. Digo que a delegacia possui sala adequada, que a permite ser fechada para que se tome, com privacidade, qualquer depoimento necessário, contudo, o delegado parecia estar mais interessado coma publicidade do fato e, com a exposição de suas experiências semelhantes, do que com o seu dever de apurar e de fazer cumprir a lei.
Durante cerca de vinte minutos nós, os visitantes, fomos submetidos aos mesmos argumentos preconceituosos, pejorativos e, seguramente fascistas, quando o representante da lei tentava nos impor sua compreensão equivocada de que os crimes daquela natureza são banais, ou que são culpa da mulher – simplesmente por que em sua compreensão carregam consigo a culpa da sensualidade. Outros tantos comentários revoltantes foram proferidos, sempre em público, expondo a mãe e adolescente ao vexame e a certeza de que naquele local encontrar-se-ia de tudo, menos o atendimento aos seus direitos.
Como lição, não obstante às nossas expressões de revolta, ficou o sentimento de impotência e a certeza de como as injustiças imperam, sobretudo para os empobrecidos, principalmente em desfavor das minorias: pobres, mulheres, negros, crianças e adolescentes. Senti como as mulheres vitimadas pela violência são tratadas nos corredores das delegacias por policiais “trogloditas” e por um Estado que teima em negar à dignidade ao povo trabalhador. Sentei como são necessárias as delegacias exclusivas para o atendimento dos casos de violência contra mulheres e de combate à violência e a exploração sexual de crianças e de adolescentes.
Paraíba, setembro de 2012.