Fonte: Rosemary Gomes (rgomes@fase.org.br)

Autor: Luis Fernando Novoa Garzon – ATAC-Brasil (l.novoa@uol.com.br)

Qual o lugar da América Latina, e especificamente da América do Sul, na hierarquia do capitalismo global? Uma enorme “zona econômica especial” a ofertar custos competitivos de produção? Competir com a China nestes quesitos seria esforço vão. Por isso mesmo o entreguismo clássico de nossas elites tradicionais não comove mais ninguém acima da linha oligopólica. O que se espera de nossos países é que reformatem contínua e ativamente a própria dependência, o que quer dizer pontualmente: a elaboração de marcos regulatórios favoráveis aos negócios, a montagem de arcabouços fiscais, cambiais e creditícios que reforcem a progressão dos conglomerados e a consecução de projetos de infra-estrutura que otimizem a transnacionalização do território através de duradouras parcerias público-privadas.

Os governos dos países centrais, as transnacionais e instituições financeiras neles sediadas esperam porque precisam. Precisam reposicionar-se vantajosamente em bordas amigáveis e conhecidas para explicitar sua hegemonia no centro, e mesmo frente à China, em outros termos. Precisam ensaiar e consolidar aqui, neste Ocidente decaído, a primazia absoluta dos capitais e os padrões infra-humanos que lhes correspondem. Assim poderão colocar em xeque os últimos e incômodos resquícios das instituições de bem-estar social em seus países de origem. O problema dessa fórmula ainda é político. Não é tarefa simples consensuar, entre nossas heterogêneas elites, um programa que sacrifica o mercado interno dos nossos países e todas suas interdependências, em função de ilhas de prosperidade associadas. Mais difícil ainda é obter continuado aval eleitoral e consentimento das populações que garantam alguma exeqüibilidade a esse programa.

O projeto de “Reconquista” tem exigido, portanto, constantes ajustes e reajustes. A partir de 1999, em um contexto de maior oscilação dos fluxos de capital, de variação descendente dos níveis de crescimento e ascendente dos níveis de concentração de riqueza, inviabilizaram-se as coalizões políticas nucleadas nos partidos organicamente vinculados aos capitais, como o PSDB no Brasil. Um novo ciclo político se estabeleceu com vitórias de forças de centro-esquerda no continente com o compromisso de reverter ou revisar as políticas que, ao longo dos últimos 15 anos, fragilizaram nossas nações e afrouxaram os laços de articulação entre elas.

Se, por um lado, se configurava um cenário de crise de legitimidade das políticas do Consenso de Washington, por outro se mantinha praticamente intacta a hegemonia dos conglomerados transnacionais. Foi neste quadro de ambivalência que os novos governos, e o de Lula em particular, forjaram suas iniciativas de integração regional. Iniciativas que têm procurado contornar polarizações à medida que apostam no redirecionamento das estratégias espaciais do investimento estrangeiro direto.

A integração desse ponto de vista reduz-se a um meio para alavancar as potencialidades dos países do continente de integração no mercado mundial. A persistência do enfoque exógeno neste modelo de integração, mesmo depois dos impactos desestruturadores e vulnerabilizadores que resultaram da nossa franca exposição no mercado mundial no último decênio, evidencia que as cartas continuam nas mãos dos mesmos jogadores. Se a integração tem por meta a inserção potencial e real da região no mercado mundial, e essa inserção é devedora do protagonismo do capital estrangeiro nas cadeias de valor de nossas economias, então essa integração não passa de uma cartelização regional, estimulada mais que regulada por nossos governos.

É preciso definir claramente se a meta é construir um mercado comum como elemento de atração de investimentos externos ou um mercado comum voltado para a cooperação e complementaridade em escala ampliada. A primeira versão significa tão somente harmonizar mecanismos de atração e proteção dos investimentos estrangeiros. Os que a advogam que tratem de explicar por que uma integração subordinada em bloco seria menos subordinada por isso. O fato é que não importa captar um maior fluxo de investimentos diretos se o tecido econômico a ser adicionalmente irrigado já foi previamente privatizado e transnacionalizado. Neste modelo de economia de enclaves e clusters, os capitais continuarão atravessando nossos países para incorporar valor sem oferecer nenhuma reciprocidade. O pior é que não se prevêem nem ao menos mecanismos que induzam transbordamentos dos investimentos, tais como índices de nacionalização, seletividade tecnológica nos financiamentos públicos e políticas industriais aglomeradoras.

Temos que nos contrapor às políticas comerciais ativas dos conglomerados escoradas pelos governos e blocos da OCDE com políticas comerciais efetivamente nacionais e regionais. Não podemos esquecer que as empresas globalizadas são projeções de suas economias nacionais de origem, são o resultado de suportes concatenados e de uma somatória de bases de impulso. Por isso não temos que ter nenhum pudor em nos resguardarmos delas, em criarmos pré-requisitos, obrigações e salvaguardas. O território ou é lócus de agregação continuada, com crescente densidade industrial, tecnológica, informacional e cultural, ou é terra de ninguém, um cantão de barbárie.

Em um quadro de rivalidade e competição inter-monopolista, os conglomerados vão determinando o que podemos e que devemos produzir e servir. Se, por um lado, a percepção dos espaços abertos por essa rivalidade é crucial para compormos o cenário em que vamos atuar combinada e progressivamente, por outro, não pode servir apenas para programarmos uma ocupação passiva de nichos, funções e atividades com maior elasticidade de preço. Não queremos ascender em uma hierarquia perversa que exclui de antemão os não encaixáveis. Se ficarmos à espera das externalidades positivas criadas pelos investimentos estrangeiros, iremos no limite do seu embalo ou reboque.

É preciso ir além das tecnologias consolidadas, ir além da produção realizada e avançar sobre as atividades de conhecimento que determinam as possibilidades mesmas da produção. As vocações e as potencialidades dos nossos países precisam ser vistas como gerações subseqüentes, as últimas desdobrando-se das primeiras. Temos que nos dedicar ao desenvolvimento de novas especializações em setores de alto valor agregado, com base na capacitação tecnológica e na formação de núcleos endógenos de inovação. As possibilidades de criação de riqueza dependerão da possibilidade de contínua geração de informações e de tecnologias compreensivas dos entornos em trânsito.

Se formos e somos capazes de criar fontes próprias de dinamismo econômico, podemos recusar e deslegitimar essas sub-hierarquias que nos oferecem tão dadivosamente. Inaceitável, portanto, que países e regiões, instrumentados suficientemente para diversificar e modernizar suas economias, se especializem regressivamente em setores rebaixados e estagnados. Isso equivale a uma sinistra condenação não só da geração presente, mas de todos os que aqui ainda não nasceram, a um futuro medíocre, encapsulado e pré-determinado.