Por Daniel Tygel para a Revista Rio Ecosol – núm. 3, jan/fev de 2012*
A Economia Verde nada mais é que uma tentativa de solucionar a crise com os mesmos elementos que a geraram
A diabetes é uma doença crônica exigente. Trata-se da incapacidade do corpo processar a glicose, que pode então existir em excesso e com isso gerar graves problemas para a saúde, desde a cegueira à morte. As causas são normalmente uma predisposição genética, mas ela se manifesta no caso de uma alimentação inadequada (excesso de carboidratos e açúcar) e vida sedentária. Quando o nível de glicose aumenta demais, é necessário injetar insulina no corpo, uma proteína que consegue processar a glicose, mas que tem também seus efeitos colaterais se utilizada em excesso. Resumindo, quem tem diabetes precisa alterar totalmente o seu modelo de alimentação e de vida: reduzir o consumo de açúcar, modificar seus hábitos alimentares, praticar exercícios físicos. A insulina é um pacote emergencial que não resolve efetivamente a situação, mas alivia uma crise.
O que isso tem a ver com a Economia Solidária e a Rio +20? Bem, imaginemos um médico que diga a um paciente de diabetes que encontrou uma solução mágica. Um novo alimento, delicioso, que não exige que se mude nada da sua alimentação, nem do seu modelo de vida. Vamos supor que este alimento é produzido da glicose, que por sua vez é a base do açúcar. É possível uma solução proposta a partir da própria glicose resolver a diabetes, e com isso livrar o paciente de ter que mudar seu estilo de vida? Esta solução é a Economia Verde.
A doença de diabetes é a atual crise da humanidade. A insulina são os pacotes estatais de ajuda de bilhões de dólares para salvar bancos e grandes empresas. A glicose é o poder das grandes corporações e a financeirização e mercantilização da vida. A Economia Verde nada mais é que uma tentativa de solucionar a crise com os mesmos elementos que a geraram. E a alimentação e modo de vida é o modelo de desenvolvimento. Se não atacamos a raiz dos problemas, o resto é invencionice para tentar manter tudo do jeito que está. E é isso que os “médicos” do capitalismo querem oferecer como solução mágica na Rio +20, sob a égide do bonito nome “Economia Verde”. Uma falácia.
Esta falácia se torna crime contra a humanidade quando constatamos que há alternativas à crise. Alternativas que mexem nas estruturas de poder, no modelo de desenvolvimento e produção agrícola e industrial. Que mexem na forma como se faz a economia. O caminho se encontra nos territórios, nas pessoas, numa economia centrada na vida e nas mãos dos 99% da população, como dizem os indignados em centenas de ocupações pelo mundo.
A Economia Solidária traz contribuições para uma efetiva cura desta doença civilizatória que estamos vivendo.
Para começar, o fato de não diferenciar entre quem é dono do empreendimento e quem é trabalhador faz com que as reações da Economia Solidária a momentos difíceis não gere desemprego. O “corte de mão de obra” não é uma via possível na Economia Solidária: como todas e todos são sócios, arcam com a responsabilidade e buscam outras formas de lidar com a situação. Já nas empresas convencionais, a primeira coisa que se faz num momento de baixo crescimento é a demissão em massa, descartando seres humanos de seus lugares de trabalho, de modo a manter os lucros e ganhos dos acionistas acima de tudo.
A Economia Solidária se baseia na autogestão, ou seja, no exercício da democracia nas relações econômicas e de produção dentro de um empreendimento. E todos sabemos que a democracia é uma das grandes conquistas da humanidade: onde não há democracia, há o poder indiscriminado e os abusos, como é o caso da ciranda financeira e do controle das economias por poucos agentes econômicos poderosos. A Economia Solidária contribui com uma democratização da economia. É uma economia nas mãos das pessoas.
A base prática da Economia Solidária é a cooperação, a solidariedade, a territorialização e a equidade de gênero, raça e etnia. Isso é um antídoto aos principais malefícios advindos da competição desenfreada, da desterritorialização dos espaços a partir dos mercados globais que destróem o jeito de ser de cada comunidade e os vínculos comunitários e de reciprocidade, e da hegemonização da propaganda de um modo único de ser no mundo: um jeito consumista, individualista e desconectado da vida. Mas um tipo de economia nas mãos das pessoas é viável para atender às necessidades de todas e todos?
Para responder a esta pergunta, é importante apontar uma outra falácia vendida para nós: a de que as empresas e corporações capitalistas são eficientes e não dependem de apoio do governo. É o exato contrário: elas recebem subsídios, isenções tributárias; financiamento abundante e barato (só em 2010 o BNDES efetuou mais de 190 bilhões de reais em empréstimos, praticamente tudo para grandes empresas e corporações, a juros irrisórios e quase sem condicionantes); obras de infra-estrutura (portos, desvios de rios, mega hidroelétricas, estradas, ferrovias) construídas por empresas privadas com recurso público e destinadas à logística empresarial privada; fomento na forma de acesso das empresas a universidades públicas para pesquisas, entre outros benefícios. As empresas privadas vivem do governo, por isso financiam campanhas eleitorais e têm em suas mãos o congresso nacional e câmaras municipais e estaduais.
Já a Economia Solidária não tem tido nenhum tipo de apoio direto. Um empreendimento solidário tem que se virar em ambientes extremamente adversos, sem capital, sem assessoria técnica, com uma carga tributária pesadíssima. E ainda sim, temos mais de 20 mil empreendimentos solidários no Brasil (não se sabe a quantidade exata, pois os mapeamentos não atingiram todo o país). Isso é prova de viabilidade em condições precárias. Imagine se a Economia Solidária tivesse a mesma quantidade de benefícios, isenções e apoios públicos que é oferecida às empresas capitalistas? Quem é mais viável neste caso, ou seja, quem dá mais felicidade às pessoas, mais proteção ambiental, responde mais aos anseios e necessidades de cada comunidade, bairro e cidade? Quem trabalha num empreendimento solidário é um/a cidadã/o ativa/o, que vê sentido no que faz, o que é bem diferente de um operário de uma empresa mundial que é explorado dia e noite por algum proprietário e acionistas que moram em São Paulo ou Nova Yorque, e que não se interessam pela comunidade em que este operário está nem por seu futuro.
Estamos nos aproximando da Rio +20, em junho de 2012. Este grande encontro internacional só terá sentido se o próprio modelo de desenvolvimento e as estruturas que o mantém forem questionados. Dourar a pílula criando novos mecanismos de mercado, os mesmos que geraram toda a crise e concentração de renda e poder que temos hoje será uma grande derrota para a humanidade. Se a Economia Verde sair vitoriosa, simbolizará este fracasso.
Com o objetivo de ampliar o olhar sobre as questões ambientais para além da ótica do poder das grandes corporações, ocorrerá, paralelamente ao evento oficial, a Cúpula dos Povos Rio +20. Nela estão envolvidas várias organizações, redes e movimentos populares, para discutir soluções efetivas para a crise que estamos vivendo. O movimento de Economia Solidária está contribuindo com esta atividade através da Rede Intercontinental de Promoção da Economia Social e Solidária (RIPESS), e aqui no Brasil pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES).
As propostas do movimento de Economia Solidária para a Cúpula dos Povos Rio +20 ainda estão em construção. Um marco importante neste processo será o Fórum Social Temático em Porto Alegre, no final de janeiro de 2012, em que um dos temas será “Finanças e economia justa, sustentável e solidária”. Outro momento desta construção será o V Encontro Latinoamericano de Economia Solidária, organizado pela RIPESS-Latino América e Caribe, a ocorrer nos dias anteriores à Rio +20.
Mesmo sem estarem definidas, aponto abaixo, em linhas gerais, algumas possíveis propostas da Economia Solidária para a Rio +20:
Alteração dos fundamentos e pressupostos do modelo de desenvolvimento: Alteração de indicadores – submeter a economia à vida, e não o contrário; fim de agrotóxicos e transgênicos; reformas rural e urbana; mobilidade humana; energia descentralizada e de fontes limpas; redução drástica do consumo individual, produtivo e institucional e do uso de automóveis individuais; desenvolvimento a partir das populações e iniciativas econômicas nos territórios, de forma democrática direta; produção agroecológica, e não do agronegócio, etc.
Fomento e apoio a uma Economia Solidária: a garantia efetiva do direito ao trabalho associado, sem patrões nem empregados, e à organização colaborativa em redes solidárias, através de formação e assessoria técnica com base na educação popular, do acesso a crédito e tributação diferenciada, e em programas de priorização de empreendimentos e redes solidários em compras e contratações públicas, etc.
Por um Sistema de Finanças Solidárias: valorização da economia real ao invés da economia financeira especulativa; fomento aos instrumentos populares e democráticos de financiamento, como bancos comunitários, fundos rotativos e cooperativas de crédito, ao invés de sustentar os grandes bancos cuja finalidade maior é o lucro de seus proprietários e acionistas; criação de fundos geridos com a participação de movimentos sociais e governos com o objetivo de fomentar e apoiar iniciativas de economia solidária; orientação das linhas de crédito dos Bancos Nacionais de Desenvolvimento e outros fundos públicos para os empreendimentos de Economia Solidária, através de indicadores e critérios de democracia interna, autogestão, preservação ambiental, equidade de gênero, raça e etnia e enraizamento comunitário.
Por um Comércio Justo e Solidário: alta tributação e divulgação ampla, através de selos e marcas, dos produtos que exploram trabalhadores e geram danos ambientais e sociais; fomento a relações comerciais justas ao longo da cadeia, de forma que os produtores, consumidores e comerciantes possam cooperar de maneira transparente e democrática, como nos sistemas participativos de garantia, no fomento às feiras e comércios locais, nas redes e cadeias de produção, comercialização e consumo solidários, na organização do consumo responsável e coletivo, nas compras e contratações públicas, etc.
Por maior transparência e democracia real nos Estados: proibição do apoio de empresas a campanhas eleitorais, realização de consultas populares e plebiscitos sobre questões estratégicas nos países, construção de mecanismos de participação e controle social sobre os governos e empresas, tanto na elaboração como na implementação de programas e ações, etc.
Além de levar propostas, é fundamental que a Economia Solidária esteja articulada com os demais movimentos sociais envolvidos e as demais pautas. É momento de união na diversidade, de cooperação, inovação e fortalecimento mútuo das organizações do campo popular. Iniciativas neste sentido já vêm ocorrendo, como o Encontro de Diálogos e Convergências em setembro de 2011.
Quando um médico insiste em oferecer como cura da diabetes os mesmos remédios baseados na glicose dos lucros desenfreados e mercantilização da vida, com a roupagem atraente de “Economia Verde”, prometendo que tudo se resolverá sem necessidade de mudança do modelo de desenvolvimento, começamos a desconfiar: será que este médico aí não está sendo patrocinado pelas grandes corporações para defender a sua sobrevida?
É hora de trocar de médico.
Está na hora de trilhar novos caminhos.
* Fonte: http://cirandas.net/dtygel/blog/a-economia-solidaria-e-a-rio-20-por-uma-economia-nas-maos-dos-99