Fonte: www1.folha.uol.com.br
No capitalismo, o ócio é o usufruto de um tempo conquistado na relação entre trabalhadores e empregadores. Sem trabalho, não existe ócio. Portanto, nos países capitalistas avançados que convivem com altas taxas de desemprego, os jovens “não têm futuro, a não ser que quebrem o sistema”.
Esse foi o raciocínio exposto na noite de terça-feira no Rio pelo sociólogo Francisco de Oliveira, professor emérito de USP, convidado a fazer uma abordagem marxista do “elogio à preguiça” no ciclo de conferências organizado pelo filósofo Adauto Novaes, e que ocorre também em São Paulo e Belo Horizonte.
“A reprodução do sistema vai levando a formas cada vez mais sofisticadas de uso do trabalho que desmontam as velhas estruturas”, disse Oliveira. Citou um exemplo europeu: “A Espanha, um sucesso formidável depois que entrou na União Europeia, agora tem 25% da força de trabalho desempregada, a maioria jovens. O tipo de emprego que o capitalismo industrial criou durante 50 anos, dos anos 1930 aos 80, desapareceu. O sistema tem mais capacidade de produzir esses jovens desempregáveis do que antes.”
Segundo Oliveira, o Brasil não está imune a essa tendência maximizada pela revolução digital, “que economiza trabalho e multiplica sua potência por dez, 20 vezes”. Ele comparou a euforia econômica recente no país a um orgasmo de velho.
“O Brasil está em êxtase porque o salário mínimo cresceu, o emprego formal cresceu. Esse êxtase é quase como um orgasmo de velho. São os indicadores de 1956. Já ingressamos em todos os problemas e contradições do capitalismo desenvolvido, embora nossa taxa de miséria seja altíssima.”
Disse que há um descolamento entre a produção e a escola e deu como exemplo as listas de candidatos a concursos públicos, cheias de universitários: “Somos a sociedade da cópia. A não ser que reinvente a roda, você vai copiar a forma do capitalismo mais desenvolvido, e essa desemprega”.
Em sua palestra, Oliveira contrastou o elogio à preguiça “um tanto romântico” da tradição clássica com as “contradições” modernas. Lembrou que, na Grécia antiga, o ócio criativo que “produziu as obras fundamentais da cultura ocidental” era sustentado pelo trabalho escravo.
“Todo ócio repousa sempre no fato de que alguém trabalha para você. Outro ponto é que o ócio, lido como a capacidade de usufruir do próprio tempo, só se sustenta se houver uma força de trabalho capaz de produzir as condições materiais para sustentá-lo.”
Dessa forma, um desempregado à procura de emprego não usufrui do ócio, mas apenas os trabalhadores organizados que conseguem “instaurar a preguiça” numa relação em que o tempo é “constantemente vigiado”.
“O capitalista quer igualar tempo de trabalho e tempo de produção. Os trabalhadores tratam de desigualá-los para sobreviver melhor”, explicou o sociólogo.
Para Oliveira, a cultura brasileira ainda está impregnada do olhar antigo sobre o ócio. “Não valorizamos o trabalho, mas o talento, como se Pelé fosse uma força da natureza. Como se pudesse ter havido um Machado de Assis se ele não tivesse trabalhado dia e noite nas redações de jornais.”
O sociólogo disse ainda que o próprio Karl Marx tinha preconceitos próprios aos “cavalheiros do século 19” ao tratar dos trabalhadores: “Ele tinha desprezo pelo desempregado, o lumpemproletariado, bagaço de cana já moída. Marx não é teórico do trabalho, mas do capital e da mercadoria”.
No entanto, brincou, o autor de “O Capital” era um “preguiçoso arrematado” em outro sentido, o daqueles que não vendem seu trabalho e exercem atividades no interior do sistema que vão contra ele. “Marx nunca teve emprego de carteira assinada.”