Fonte: www.rts.org.br
Mais de 70 pessoas participaram do painel “A interlocução entre as Tecnologias Sociais e as iniciativas de Economia Solidária”, realizado por instituições associadas à RTS no Fórum Social Mundial (FSM), em Porto Alegre (RS).
O objetivo do encontro, realizado na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, foi debater o papel estratégico desta aliança para a construção de um novo modelo de desenvolvimento.
Segundo definição pactuada no âmbito da RTS, Tecnologias Sociais são “produtos, técnicas e/ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social”. Durante o encontro, o conceito foi discutido à luz do papel das universidades e do Estado diante do atual modelo de produção técnico-científica, dirigido ao mercado e incapaz de incluir ao processo de desenvolvimento aqueles que não se enquadram como “consumidores de inovação”.
O desequilíbrio é evidente quando observados os investimentos públicos na área de inovação, aponta tese de doutorado defendida na Unicamp pelo pesquisador Rodrigo Fonseca. Em 2006, apenas 3% dos recursos destinados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), o equivalente a R$ 35 milhões, foram investidos no eixo “Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Social”. O eixo estratégico “Expansão e consolidação do sistema nacional de CT&I” amealhou 39% (R$ 428 milhões), seguido da “Promoção da Inovação Tecnológica nas Empresas”, com 32% dos recursos (R$ 352 milhões).
“Quando a Economia Solidária pauta uma nova forma de organização social do trabalho, ela precisa de uma nova tecnologia capaz de atender a seus princípios”, avaliou Lais Fraga, analista da incubadora de empreendimentos econômicos solidários da Unicamp. Segundo ela, isso implica compreender que as tecnologias não são simples ferramentas neutras, mas sobretudo construções sociais que possuem características específicas dependendo do ambiente em que são concebidas. “A autogestão muitas vezes bate na inadequação tecnológica. E se é a Economia Solidária que dá uma visão de futuro para a Tecnologia Social, a TS é peça fundamental para viabilizar a própria Economia Solidária”, afirmou.
Para o secretário-adjunto da Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego (Senaes-MTE), Fábio Sanchez, a relação entre as duas temáticas deve ser permanente. A aliança, lembra, consta da própria Plataforma da Economia Solidária. Pactuada no âmbito do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES), a carta já cobra “o desenvolvimento de tecnologias apropriadas à Economia Solidária, respeitando a cultura e os saberes locais, agregando-lhes maior valor e a melhoria das condições de trabalho, de saúde e de sustentabilidade ambiental dos empreendimentos”.
“Qualquer atividade econômica está em estreito diálogo com a tecnologia. E no mapeamento nacional da Economia Solidária, que registrou 22 mil empreendimentos, uma das necessidades mais apontadas foi justamente o acesso ao conhecimento e à tecnologia”, destacou Sanchez, para quem é imprescindível “construir elementos de políticas públicas de ciência e tecnologia para a Economia Solidária”.
Para Niro Barrios, representante da Agência de Desenvolvimento Solidário da Central Única dos Trabalhadores (ADS/CUT), o tema coloca em questão a disputa pelo próprio modelo de desenvolvimento científico. Recursos para o desenvolvimento de tecnologia, disse, já existem. A questão é quem os acessa. “A tecnologia talvez seja um dos principais fatores de acumulação do capital em toda a história. Isso não pode ser um tema distante de nós, como tem sido” alertou.
Universidade
O papel das universidades para a construção de pontes entre o conhecimento científico e os saberes populares foi destacado por todos os participantes da mesa. Segundo o gerente de Parcerias, Articulações e Tecnologias Sociais da Fundação Banco do Brasil, Jefferson D’Ávila de Oliveira, um dos principais desafios é levar o diálogo sobre as Tecnologias Sociais para dentro das universidades aproveitando a enorme diversidade de atores envolvidos com o tema. “Se por um lado essa gama tão grande de atores dificulta um pouco este diálogo, por outro o enriquece. A soma de 2 e 2 não é 4. É 5, na medida em que essas parcerias agregam novos conhecimentos”, afirmou.
Ele dá como exemplo a própria RTS, que viu saltar de 30 para 786 o número de instituições associadas em menos de cinco anos. São organizações não governamentais, centros de pesquisa, cooperativas, empresas, escolas de ensino médio, fundações e institutos, sindicatos, universidades e órgãos de governo nos níveis federal, estadual e municipal. “Precisamos trabalhar na linha da organização. E um dos principais desafios da RTS para 2010 será inserir mais instituições de ensino superior”.
Segundo Laís, o que está em jogo é a disputa por novos modelos de extensão e produção de conhecimento. “A grande maioria das universidades não está comprometida nem com a Economia Solidária nem com a Tecnologia Social. Ao mesmo tempo, a missão da universidade é formar gente e produzir conhecimento. Por isso, elas, mais do que nunca, precisam trabalhar em função destes princípios de solidariedade”, criticou.
Segundo ela, a aproximação do conhecimento científico às demandas populares precisa se dar de forma interativa. Por isso, lembrou, um dos elementos fundamentais rumo às Tecnologias Sociais é o conceito de reaplicação, que implica que as tecnologias contemplem as especificidades locais e incentivem a criatividade do produtor direto e dos usuários, o que varia de lugar para lugar. Significa, ainda, a valorização de formas de conhecimento que não apenas o científico, como os conhecimentos tradicionais. “Quem conhece efetivamente os problemas a enfrentar são os próprios empreendimentos. Eles têm que estar ao lado das universidades, um aprendendo com o outro”, afirmou.
Na prática
Um dos momentos mais celebrados do encontro foi a apresentação da experiência da Justa Trama, marca da Cadeia Ecológica do Algodão Solidário e vencedora do Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social. Com 700 trabalhadores e capacidade para produzir até 40 mil peças por ano, a cooperativa cobre com sustentabilidade todos os elos da indústria têxtil – do plantio do algodão à roupa.
O processo começa com o cultivo nos municípios de Tauá, Massapé, Choró e Quixadá, no Ceará, onde agricultores familiares plantam e colhem o algodão agroecológico empregando técnicas de conservação do solo e da água, valorizando a biodiversidade sem o uso de agrotóxicos. Enquanto isso, mulheres e homens de sete estados da Amazônia, reunidos na Cooperativa Açaí, produzem corantes naturais, coletam e beneficiam sementes e outros elementos da Amazônia que são utilizados nas roupas da Justa Trama.
Em Nova Odessa (SP), trabalhadores da Cooperativa Nova Esperança realizam a fiação do algodão agroecológico, enquanto em Santo André é a vez dos trabalhadores da Textilcooper fabricarem os vários tipos de tecidos. Por fim, em Itajaí (SC) e em Porto Alegre (RS), costureiras da Fio Nobre e da Cooperativa de Costureiras Unidas Venceremos confeccionam as peças, que são vendidas no Brasil e na Itália.
“Não abrimos mão de ter a nossa marca e percebemos que é preciso trabalhar em rede e em cadeias produtivas tendo em vista a escala. Nisso precisamos aprimorar todas as tecnologias que podemos para melhorar o nosso trabalho”, defendeu a coordenadora da Justa Trama, Nelsa Nesposo. A renda dos trabalhadores, avisa, varia hoje entre R$ 550 e R$ 1.200. Toda a produção atende os princípios do comércio justo: é economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente correta.
O algodão agroecológico utilizado pela Justa Trama é cultivado em sistemas consorciados com culturas alimentares como milho, feijão, gergelim e guandu, além de espécies arbóreas como nim e leucena. A prática, que se alastrou do município de Tauá para o Sertão Central e o Norte do Ceará pelas mãos do Centro de Pesquisa Esplar, reúne hoje 320 agricultores e agricultoras. Toda a produção é beneficiada pela Associação de Desenvolvimento Educacional e Cultural de Tauá (Adec), que comercializa a fibra ecológica para a Justa Trama. Resultado? No Ceará, uma usina compra a arroba do algodão tradicional por cerca de R$ 12. Com o comércio justo, os produtores orgânicos têm a venda garantida e recebem R$ 24,90 pela mesma quantidade de algodão agroecológico.
Organização
O Painel “A interlocução entre as Tecnologias Sociais e as iniciativas de Economia Solidária” foi organizado pelo Fórum Estadual de Tecnologia Social do Rio Grande do Sul, que abriga instituições gaúchas associadas à RTS. A formação do grupo foi um dos principais desdobramentos da I Mostra de Tecnologia Social do Rio Grande do Sul, organizada pela Fundação Irmão José Otão (Fijo), Centro Social Marista (Cesmar), PUC-RS, Núcleo de Economia Alternativa da UFRGS (NEA) e ONG Guayí. Além destas instituições, participam atualmente do Forum as ONGs Redecriar e Patuá e a UNISINOS.
Realizada no campus da PUC-RS em outubro de 2009, a Mostra reuniu mais de 120 participantes e 19 TSs já reaplicadas no Rio Grande do Sul. Além da exposição de banners com experiências vinculadas à RTS e/ou certificadas pela Fundação Banco do Brasil, os participantes dividiram-se em oficinas onde conheceram, com mais profundidade, quatro experiências de TSs em desenvolvimento no Rio Grande do Sul: “Geração de Renda: Rede Industrial de Confecção Solidária-RICS”, “Projeto Social Eco Óleo: Biodiesel Ecológico”, “Contraponto: Entreposto de Saúde, Cultura e Saber” e “Tramando Justiça e Meio Ambiente: Cooperativa Central Justa Trama”.
Por Vinícius Carvalho, jornalista do Portal da RTS