Fonte: Revista do Brasil
O economista e professor da USP, Paulo Singer, é modesto. Ele diz que não pode afirmar com certeza se a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), dentro do Ministério do Trabalho e Emprego, logo no início do governo Lula, em 2003, ajudou a impulsionar essa modalidade de organização econômica e social. “Acredito que sim”, diz.
Baseada na autogestão e no compartilhamento coletivo de decisões e de resultados de um empreendimento, a economia solidária, muito conhecida pelos modelos de cooperativismo que já existiam no país há algumas décadas, é uma opção que tem se revelado tão democrática quanto eficaz como solução de geração de trabalho e renda sem patrão.
Isso vale para os pequenos empreendimentos que unem grupos de comunidades tradicionais, como pescadores, quilombolas, indígenas, quebradeiras de coco, até grandes empreendimentos agrícolas e industriais, nos quais os trabalhadores assumiram o comando de negócios que os proprietários não deram conta.
Cita como exemplos dessa experiência a Uniforja, do ramo metalúrgico, em Diadema (SP), e a Usina Catende (PE, a 150 quilômetros de Recife), do setor sucroalcooleiro. A usina foi instalada em 1890 e um século depois, após falir, foi assumida pelos trabalhadores. Hoje, 4 mil famílias respondem pela maior experiência de autogestão da América Latina. O espaço de 26 mil hectares passou recentemente por processo de reforma agrária e as gerações mais jovens dessas famílias se organizam para dar continuidade a esse sonho, tendo a economia solidária e sustentável como horizonte.
A Senaes já mapeou, até 2007, a existência de 22 mil empreendimentos econômicos coletivos e solidários, que geram trabalho e renda para 1,7 milhão de pessoas. Isso porque o mapeamento só atingiu 52% dos municípios do país.
Nesta entrevista, Paul Singer faz um balanço do papel da Senaes, da transformação desse “modesto” e revolucionário movimento em política pública de Estado e da importância de sua continuidade como forma de “candidatar” esse modelo econômico e social a um modelo do futuro.
Revista do Brasil – Como evoluiu a economia solidária de 2003 para cá, quando ela se tornou uma política pública nacional?
Vou ser muito franco: evoluiu muito nesses seis anos. Eu diria, explodiu pelo país, englobando setores sociais, e passando a incorporar grupos que já estavam na economia solidária, principalmente indígenas e quilombolas, e hoje com muitas chamadas comunidades tradicionais, como pescadores, caiçaras e ribeirinhos, as quebradeiras de coco. Sabe quantas quebradeiras de coco temos no Brasil? Quatrocentas mil! São mulheres que vivem da extração do coco-babaçu, em seis estados do Norte e do Nordeste, e agora organizadas em cooperativas, em uma luta ecológica memorável ao se opor à destruição dos babaçuais. Quando o preço da soja sobe interessa aos fazendeiros cortar os babaçus para plantar mais soja, que é uma monocultura, e se os babaçuais forem cortados elas não terão mais o que fazer. Elas são especializadas. É um exemplo de população tradicional que veio para a economia solidária, todos eles vieram.
RdB – Em que medida a aproximação do Estado muda a vida delas?
Nos países andinos, que agora têm governo de esquerda e onde os indígenas são dominantes, como no Equador e na Bolívia, eles se reconhecem na economia solidária. As novas constituições – e você deve ter acompanhado o trabalho que deu para aprová-las em referendos –, definem a economia tanto do Equador como da Bolívia como economia social e solidária. No Brasil, acredito que a criação da Senaes deve ter ajudado, porque conseguimos, por meio das delegacias regionais do trabalho (hoje Superintendências Regionais do Trabalho, SRT) estender a economia solidária para o Norte e o Centro-Oeste. Ela está mais forte no Acre, Amazonas, Rondônia, Roraima, Amapá, Pará, também no Tocantins, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A economia solidária se tornou efetivamente um movimento nacional. O Fórum Nacional de Economia Solidária representa uma diversidade cultural econômica, religiosa e linguística muito ampla.
RdB – Diversidade econômica também?
Nós temos 3 mil quilombos no Brasil hoje, ninguém sabia disso antes, e muitos estão vindo para a economia solidária. É uma ação de etnodesenvolvimento. Temos uma parceria com a Secretária Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Enfim poderia ficar falando por horas, mas esse é só um aspecto, um dos que me toca mais.
RdB – E os grandes empreendimentos econômicos solidários no setor agrícola e no setor industrial, como estão?
Nas indústrias, são empreendimentos, sobretudo, recuperados (de massas falidas). São empresas capitalistas que quebram e os trabalhadores exerceram o direito de solicitar que a empresa permaneça operando sob forma de arrendatários da massa falida. Como aconteceu com a Uniforja (metalúrgica em Diadema) ou a Catende (setor sucroalcooleiro, Pernambuco). Recentemente falou-se muito da Varig. Tive uma reunião com as presidentes dos sindicatos dos aeronautas e dos aeroviários discutindo se a Varig podia se transformar numa (empresa de) autogestão. Mas não deu certo. A editora Bloch, da revista e TV Manchete, também não deu certo. Nem sempre dá.
RdB – Aí não se trata de escolha político-econômica, mas de falta de opção, não é?
Os trabalhadores estão diante de uma situação de perda dos empregos. Todas as empresas de que falamos eram antigas e seus trabalhadores, mais velhos, teriam muito dificuldade de recomeçar em outro lugar. Para eles, manter as empresas é questão de vida ou morte; ou isso, vão ficar desempregados crônicos. Mas quando eles assumem a empresa não serão mais empregados convencionais, com aqueles direitos trabalhistas – não tem mais patrão. E isso é um obstáculo. Muitas vezes há uma divisão dos trabalhadores, alguns que acham que não: “a gente quer emprego, mas com carteira assinada, nada de ficar responsável etc.”. Muitas vezes os que assumem são até minoria, mas eles podem assumir, depende do juiz da falência e dos outros credores. Para os credores a fábrica funcionando vale muito mais do que ela fechada, porque tudo que se pode arrancar é levado embora, fica só a casca, que vale muito menos. Em geral os outros credores, os bancos etc. são favoráveis a isso. No caso da Uniforja, 40% dos trabalhadores assumiram a empresa.
RdB – Os bancos ajudam no processo de recuperação?
Não há nenhuma notícia, acho que não. O BNDES ajudou, mas anos depois, no início não. Mas eles (trabalhadores) conseguem recuperar a empresa. Quando a empresa funciona, voltam a ganhar mais ou menos o que recebiam antes, mas já não é mais salário, agora é uma participação na receita. Para que 13º salário, fundo de garantia, essas coisas todas passem a fazer parte da vida desses trabalhadores novamente depende de aprovarmos uma lei agora.
RdB – E a previdência?
Sim, a previdência eles recolhem. O interessante é que quando a empresa se recupera mesmo os antigos trabalhadores que não conseguiram emprego vão pedir emprego lá e depois se associam – entram numa outra etapa, depois que o pior já aconteceu. Nós temos centenas de empresas no Brasil recuperadas, principalmente industriais, mas também agrícolas; tem uma mina de carvão que já está com 20 anos.
RdB – A Catende está por aí e é a maior. Como participam hoje os jovens que eram criancinhas quando seus pais assumiram a usina falida?
Catende está com 15 anos e é a maior autogestão da América Latina, são 4.300 famílias, 13 mil e tantas pessoas, é uma grande comunidade. Estive várias vezes em Catende nos últimos meses e levantei essa questão: a nova geração depois de 15 anos. Fiz uma reunião com 20 jovens e foi muito interessante. Tem uma associação de jovens com “apenas” 4 mil sócios que promove várias atividades. Perguntei a cada um deles o que vai fazer, o que está estudando, qual é a sua perspectiva e mais da metade fala em ambientalismo, em ecologia, o que é bem interessante, sobretudo para quem pretende viver em uma agroindústria, numa propriedade de 25 mil hectares. Já incorporaram a sustentabilidade, já foi feita a reforma agrária lá, hoje as terras são deles. O que está em disputa é a fábrica. Mas, enfim, estou dando alguns exemplos, eu podia ficar o final de semana falando para você, porque está acontecendo muita coisa na economia solidária e eu acho mais importante explicar com detalhes.
RdB – De todo modo, ainda não se sabe plenamente onde estão, o que fazem, como vivem e do que precisam esses grupos que se organizam para tocar um negócio coletivo?
Na Senaes, estamos fazendo um mapeamento da economia solidária, e isso não havia. Nós estamos investindo muito mais e indo pela terceira vez a campo, agora de outubro até fevereiro. No último levantamento, em 2007, recenseamos ou cadastramos quase 22 mil empreendimentos, nos quais trabalham 1,7 milhão pessoas. Então a economia solidária não é mais uma coisa microscópica, já é uma realidade em todos os estados brasileiros. Esse levantamento foi feito só em 52% dos municípios. Nessa nova ida a campo, nós pretendemos atingir o conjunto do território nacional. Isto vai nos dar provavelmente uma cifra ainda maior. O mapeamento é muito importante politicamente, para dispor de informações para o público e para o Estado, para que todos saibam do que se trata, e com isso almejar mais recursos para apoiar e desenvolver a economia solidária no país. Mas também tem a importância prática, de gerar um banco de dados, em que cada um desses milhares de empreendimentos tenham sua localização geográfica; e dispor dessa informação online, e também sobre o que eles produzem, o que eles consomem, permite que empreendimentos que vendem coisas que não estão prontas ainda, que é matéria-prima, possam encontrar cooperativas que precisam dessa matéria-prima, e pela internet.
RdB – Formar uma rede?
É essa ideia, é política da Senaes fomentar cadeias produtivas de redes. Há uma diferença, cadeia é quando você tem um produto final e você tem, na mesma organização, numa cooperativa de segundo grau, todos os elos da cadeia, a Justa Trama é um famoso exemplo disso. É uma cooperativa de segundo grau, em que se usa algodão orgânico produzido no Ceará, depois fiado e tecido em empresas recuperadas em São Paulo e finalmente transformado em objetos que se vendem em cooperativas de costureiras do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. E tem, além disso, uma cooperativa de mulheres que faz biojóias em Rondônia, com sementes da Amazônia, muito bonitas, que viram adereços em bolsas ou roupas da Justa Trama. São coisas muito bonitas e que são vendidas geralmente quando há eventos de economia solidária.
RdB – No mercado externo também há espaço para esse tipo de empreendimento?
Sim, o comércio justo é uma modalidade em que os trabalhadores ganham mais. O comércio justo é mais justo para os produtores. Mas voltando ao mapeamento, o último dado, de 2007, surpreendentemente é que 40% dos nossos empreendimentos estão ou em redes ou em cadeias, ou seja, estão no que a gente chama de organizações complexas, isso é muito mais do que a gente imaginava.
RdB – Seria um passo para resolver um gargalo antigo que é o escoamento?
Escoamento e o acesso ao capital. O lema da economia solidária é de que a união faz a força, elementar assim. Ajuda mútua é vital, não tem forma de sobrevivência sem solidariedade entre as pessoas pobres. A partir daí é que se constrói a economia solidária e é nossa política fomentar o máximo possível a união entre os empreendimentos que são frágeis.
RdB – E são atividades formais?
Não, infelizmente, porque a formalização desses empreendimentos seria em cooperativas. A cooperativa responde exatamente aos princípios da economia solidária, foi feita para isso. O diabo é que é dificílimo você formalizar uma cooperativa no Brasil. Então, 90% dos empreendimentos que vemos ou são informais ou são associações que, em tese não podem ter atividade econômica, mas pelo menos ficam formalizadas. E 10% são cooperativas, mas há uma enorme quantidade de grupos informais que gostariam de ser formalizados se não fosse tão complicado para gestar uma cooperativa. (Pela lei do cooperativismo) precisa ter pelo menos 20 pessoas como sócios, tem que fazer o registro na junta comercial, que são contra a economia solidária, avessas, dificultam o máximo que podem, além de estarem sediadas só na capital de cada estado – na Amazônia, por exemplo, significa dias e dias de barco. São processos enormes, com um monte de documentação que as pessoas suam para conseguir reunir. Quando conseguem, apresentam a um funcionário que olha e diz: “Aqui falta um carimbo”. É uma via crucis, leva seis meses ou mais para se formalizar, e isso custa dinheiro também. São necessários ajustes na legislação para que possamos simplificar os procedimentos, a exemplo do que está acontecendo com esse programa que estimula a formalização de empreendedores individuais.
RdB – Por outro lado tem muitas falsas cooperativas formalizadas que se enquadram em uma modalidade jurídica para garantir uma situação fiscal e trabalhista mais vantajosa, mas tem “empregados” e “donos” com papéis e retornos distintos.
Existe essa ironia. Em meio a tanta dificuldade para se formalizar uma cooperativa autêntica existirem essas que são completamente falsas. Agora, eu acho que elas estão perdendo a importância, porque o desemprego está bem menor do que quando elas começaram a proliferar. Mesmo nessa crise o desemprego não aumentou, continua perto da metade do era quando chegou ao auge em 2003. Assim não tem tanto trabalhador disposto a entrar nessas situações.
RdB – A menos que seja uma opção política do trabalhador, fazer parte de uma organização que pratica a autogestão.
Veja o caso dos médicos recém-formados e que vivem de dar plantão em hospitais. Há hospitais que não os aceitam a não ser que sejam membros de uma cooperativa, e uma cooperativa dos próprios hospitais, ou seja, falsa na prática. Então o médico vai, se inscreve na cooperativa e é chamado para dar plantões, mas não tem nenhum direito – nem a férias, nem 13º salário, nem FGTS. Para o hospital é bom, mas para o médico é terrível. É uma exploração horrorosa. Nós estamos com um projeto de lei, que conseguimos que o presidente da República mandasse ao Congresso, exigindo que as cooperativas de trabalho garantissem aos seus próprios sócios o mínimo de direitos trabalhistas. É uma legislação que copiamos deliberadamente da França, da Espanha, da Itália e de outros países europeus onde foi adotada exatamente por isso: porque lá também, quando desemprego foi lá pra cima, sugiram essas falsas cooperativas para tornar o emprego barato. Nosso projeto já passou pela Câmara, foi aprovado com um longo trâmite, e agora está no Senado na bica de ser votado.
RdB – O Senado vota alguma coisa neste ano?
É uma boa pergunta. Mas está para ser votado. Não conseguimos aprovar ainda esse projeto porque as cooperativas e sindicatos de médicos querem ser excluídas da abrangência dessa lei com vários argumentos a meu ver não-aceitáveis. Pelo que sei, muitas delas são falsas cooperativas que nós temos de combater para defender os direitos dos médicos, enfermeiros, anestesistas e tudo mais. Nós queremos que os assalariados sejam nossos aliados defendendo os direitos deles também. De alguma maneira estamos lutando contra as falsas cooperativas, com o apoio da OCB, Organização das Cooperativas do Brasil, que representa o cooperativismo capitalista, a primeira vista uma surpresa.
Por Paulo Donizetti de Souza – Publicado em 14/10/2009 na Revista do Brasil.