Fonte: Brasil Autogestionário

Economia Solidária começa a compor agenda da esquerda no século XXI – Entrevista com Esther Vivas

A Outra Economia: Economia Solidária, comércio justo, consumo solidário, começa a compor a nova agenda programática da esquerda no século XXI, não só na América Latina mas também na Europa. No Brasil o movimento da Economia Solidaria que conta hoje com mais de 3 mil militantes (dados do FBES), ainda não obteve por parte da maioria dos partidos de esquerda a importância que deveria ter, principalmente pelo que representa enquanto prática com potencial transformador. Com exceção do PT, a pauta da “outra economia” no Brasil, permanece a margem dos programas partidários da esquerda que se identifica como anti-capitalista. Por isso, a experiência do novo partido da Esquerda Anticapitalista, o IA (Izquierda Anticapitalista) constitui-se como um importante exemplo de incorporação da agenda a “outra economia”, no programa e na prática dos militantes da esquerda. No caso espanhol, no movimento do comércio justo e solidário.

Esse movimento que é, assim como a ES no Brasil, um movimento muito recente, que enfrenta dois desafios, de um lado o próprio mercado capitalista monopolista e de outro a lógica de “comércio justo” das grandes corporações e ONGS, que utilizam o comércio justo como estratégia de marketing. É nesse cenário que está o movimento de comércio justo organizado pela esquerda anti-capitalista da Espanha, que constrói um movimento social articulado com sindicatos, cooperativas, grupos solidários e movimentos internacionais numa perspectiva estratégica que vincula o comércio justo ao tema da soberania alimentar, pautando o tema do desenvolvimento local, redes e cadeias de distribuição a partir da auto-organização dos consumidores e produtores.

Para conhecermos essa importante experiência da esquerda relacionada com a prática da “outra economia” realizamos uma entrevista exclusiva com Esther Vivas, uma das principais lideranças do partido IA- Izquierda Anticapitalista- da Espanha (Esther foi cabeça de lista do partido IA nas eleições Européias de junho deste ano); Esther é licenciada em jornalismo e diplomada em estudos superiores de sociologia, militante do movimento de comércio justo e solidário, sendo coordenadora da área de Sensibilização da Xarxa de Consum Solidari da Catalunha (Rede de Consumo Solidário da Catalunha); que reúne diversas cooperativas e grupos de consumo solidário. Organizou junto com Xavier Montagut os livros “Adónde va el comércio Justo? Modelos y experiências” ( 2006), e “Supermercado, no gracias. Grandes cadenas de distribución: impactos y alternativas” (2007) ambos da editora Icária.

Nessa entrevista exclusiva para o BA, que vamos publicar em duas partes, hoje (06/10) e amanhã (07/10), Esther fala do surgimento do movimento de comércio justo e consumo solidário, as disputas entre dois campos antagônicos do movimento, as experiências dos grupos e cooperativas; a relação com os movimentos sociais e com a esquerda anticapitalista.

Por Paulo Marques – Brasil Autogestionário

Como surgiu o movimento social do comércio justo na Espanha?

O movimento de comercio justo no Estado Espanhol tem como referencia o movimento social surgido na França e Itália que estiveram na cabeça do movimento pelo comercio justo na Europa. Por aqui (Estado Espanhol) o movimento surgiu alguns anos mais tarde, no transcurso dos anos noventa, quando as manifestações de comercio justo começaram a ser conhecidas. Passamos de uma primeira etapa mais voluntarista em torno do comércio justo, que se limitava a prática de comprar um pacote de café e vender aqui para uma etapa mais profissional. Nos primeiros anos, da década de noventa, o discurso em geral do comercio justo era um pouco mais uniforme, centrado no tema do comercio justo dos países do sul, com o foco nos critérios de compra e origem, critérios cumpridos pelos produtores, desde um ponto de vista, em minha opinião, um pouco assistencial, ou seja, um “comercio justo” apenas como instrumento de apoio a camponeses do sul. Esse é o discurso hegemônico no transcurso dos anos 90 por parte de organizações que praticam o comércio justo a partir dessa lógica como algumas Ongs, importadoras de comércio justo e lojas, até então não existia a participação de cooperativas de trabalhadores.

Quais foram os caminhos para a prática do comercio justo tornar-se um movimento social?

A partir do principio dos anos 2000, na medida que o movimento vai crescendo e se consolidando, começam a aparecer os primeiros debates em torno do que entendemos que seja o comércio justo. A questão colocada era: o que é comercio justo para nós? É quando começam a visualizar as primeiras diferenças entre os seus protagonistas, com debates que também vão sendo realizados por outros países como França e Italia. Aqui (Espanha) nos anos 2000 começam os debates sobre o tema do “selo” de comércio justo, se nos interessava aumentar a distribuição dos produtos de comércio justo através dos grandes supermercados ou se tínhamos outra estratégia; começam assim a aparecer essa série de debates e divergências. Essa situação se torna mais tensa a partir de 2004, quando se propõe a criação do “selo espanhol de comércio justo”. “Assim promovemos um espaço alternativo, chamado, “Espacio por un comercio justo”, como marco de trabalho independente da Coordenadoria, com uma visão de comércio justo vinculada a soberania alimentar, a produção local, contra a certificação realizada para os grandes supermercados.” Esther Vivas

Em que espaço político são realizados esses debates sobre o comércio justo?

Já na metade dos anos 90, se cria de fato a “Coordenadoria Estatal de Comércio Justo”, que é o espaço onde participam todas as organizações de comércio justo: ONGs, lojas e importadoras. Esse espaço foi organizado pelo movimento, pois o Estado sempre esteve à margem dos debates em torno do comércio justo. Existem alguns apoios e investimentos, mas nada muito significativo, o que tem mudado um pouco.

O movimento do comércio justo, portanto, surgiu basicamente do interesse das ONgs, das lojas um pouco do tecido associativo existente (cooperativas e grupos de consumo). Logo, como existia esse marco da Coordenadoria Estatal de Comércio Justo, em 2004 quando se apresentam esses debates, se abordam nesse marco: Vamos apoiar a certificação, que era uma certificação do Estado Espanhol? Esses eram debates pautados na coordenadoria que tinha que definir uma posição. Logo ali havia um setor com uma visão mais mercantilista de comércio justo, que dizia: “temos que vender mais, é necessário que o consumidor possa ter acesso aos produtos do comércio justo”, e com um selo que permita aos supermercados vender e, portanto, o produtor estará mais contente por que as pessoas conhecem seu produto e conseqüentemente vendem mais.

Por outro lado, havia outro setor que era mais alternativo, vinculado aos movimentos sociais, aos movimentos alter-mundialistas que dizia que o comercio justo não implica somente a “vender mais café dos países do sul em um supermercado”, mas sim é um instrumento de transformação política social e portanto, não tem nenhum sentido somente a certificação. Porque basicamente vai ser utilizada para os supermercados venderem cada vez mais, ou para multinacionais como a Nestlé que colocam em seus cafés o selo do comercio justo, muito mais como uma estratégia de marketing empresarial do que instrumento de transformação.

Portanto, se propõe esse debate, e esses setores mais radicais do qual participamos, eram os que já trabalhavam com a rede de comércio Justo, com a Via Campesina, movimento Anti-globalização, e que defendia os princípios da soberania alimentar. Porque defendemos que o comercio justo somente tem sentido quando vinculado com a soberania alimentar. No sentido de que o comercio justo internacional, também local, fortalece a agricultura local no sul e no norte e por isso vinculamos o comércio justo com a soberania alimentar.

Como ficou o movimento a partir dessas diferenças de concepção e estratégia?

Em 2004 a coordenadoria se posicionou a favor da criação da certificação gerando uma divisão importante no movimento. Basicamente de um lado ficaram os setores com uma visão mais mercantilista, assistencial e tradicional como a Oxfan, que é a grande ONG de comercio justo do Estado Espanhol e algumas entidades cristãs que se situam nessa posição majoritária. No outro campo, o setor mais critico, onde estamos nós, como o maior grupo entre os pequenos. E a partir dessa hegemonia do setor mercantilista na Coordenadoria de Comércio Justo, nós seguimos na coordenadoria, mas baixando o nível de envolvimento nesse espaço. Assim promovemos um espaço alternativo, chamado, “Espacio por un comercio justo”, como marco de trabalho independente da Coordenadoria, com uma visão de comércio justo vinculada a soberania alimentar, a produção local, contra a certificação realizada para os grandes supermercados.

Quem são os protagonistas, atores e atrizes sociais desse novo espaço de articulação do movimento de comércio justo?

Esse espaço é integrado por lojas, cooperativas de consumo ecológico locais, grupos que tem cooperativas de consumo que existem aqui. Na Catalunha são mais de 100 grupos de consumo. Formalmente não são cooperativas, são grupos solidários. Algumas estão formalizadas como cooperativas, outras, como associações, outros são grupos formados nas “casas Okupasi”. São diversas iniciativas, muito amplas e nos últimos anos tem crescido muito, e muitas destas participam do “Espacio por un comercio justo”.

E qual é a forma que seu grupo se organiza dentro desse Espaço?

Nós participamos como Xarxa de Consum Solidari (Rede de Consumo Solidário, em Catalão) formado por diversos grupos de consumo local. Com a divisão do movimento, no espaço mais radical foram criadas algumas pequenas lojas, cooperativas de consumo, grupos de consumo com esse perfil e como rede importadora, nós criamos uma associação, somos importadora de produtos do sul, somos ONG de cooperação ao desenvolvimento e temos grupos de consumo, portanto, é uma organização pouco peculiar, por ser importadora, ONG e ter grupos de consumo local. E com uma visão global do que é comércio justo. Entendendo o produto que vem do sul como comércio internacional, mas também o comércio justo local, vinculado a lógica de soberania alimentar. Para nós o comercio justo e soberania alimentar são duas caras da mesma moeda.

Como está o movimento atualmente?

Nestes últimos anos, desde 2004, começam a implementar a certificação, através do selo de Comércio Justo”, e muitas entidades que davam apoio ao setor mercantilista, estão agora um pouco críticas, pois o impacto negativo que teve para o movimento foi o fato de que se por um lado as corporações e multinacionais se interessavam para ter o selo e certificação e as pequenas importadoras acreditavam que venderiam mais, o problema é que quando foram competir com as multinacionais que tem o selo, porque agora qualquer um pode ter o selo, as cooperativas de trabalhadores alternativas não podiam fazer frente ao poder das multinacionais. Ou seja, o que passou é que no mercado as pequenas cooperativas não conseguem competir com as grandes importadoras. E portanto, esses setores que a principio estavam de acordo com a certificação, estão agora mais precavidos e portanto, se em 2004, houve essa polarização, nesses últimos anos há uma mudança importante, pois setores pró selo tem se voltado mais críticos porque tem visto os problemas quando tem a certificação.

O que caracteriza esse movimento social de comércio justo articulado a partir dos militantes alter-mundialistas? Qual o projeto do movimento?

O setor de comercio justo mais tradicional dominante, moderado, não tem relação com as cooperativas de consumo, porque para eles comércio justo é “comprar café no sul”, para eles as cooperativas de consumo e de produtores locais é consumo justo. Portanto, o setor mais radical, vinculado ao movimento alter-mundialista, vinculado a Via Campesina e a soberania Alimentar, considera que o comercio justo é comercio justo norte-sul mas, também, é consumo local e é quem trabalha com as cooperativas e consumo de produtores locais. Normalmente às cooperativas de consumo tem produtos de comercio internacional e compram na rede para ter seu produto internacional. Mas sobretudo, na Catalunha, das 100 cooperativas que existem aqui, que foram criadas nos últimos 5 anos, são vinculadas ao movimento anti-globalização, muitos dos que criaram as cooperativas são pessoas que participam dos movimentos anti-globalização. Sobretudo, são cooperativas de consumidores que mantém uma relação direta com os produtores, pode ser um produtor que tenha uma cooperativa de produção, pode ser um produtor individual, grupos de jovens que estão no campo fazendo agro-ecologia. Todos numa lógica de relação direta.

*Conheça mais, visite os sites: www.anticapitalistas.org e www.revoltaglobal.cat