Fonte: Le Monde Diplomatique
O padrão de produção e consumo típico do capitalismo, e hegemônico há séculos, está em crise. Em seu lugar, emergem relações sociais mais sustentáveis, democráticas e… prazerosas. Artigo de Ladislau Dowbor.
O deslocamento sísmico mais importante na teoria econômica se refere ao gradual esgotamento da competição como principal instrumento de regulação econômica, além de principal conceito na análise da motivação, da força propulsora que estaria por trás das nossas decisões econômicas.
A visão herdada, é que se nos esforçarmos todos o máximo possível para obter o máximo de vantagem pessoal na corrida econômica, no conjunto tudo vai avançar mais rápido. Misturando a visão de Adam Smith sobre a soma de vantagens individuais, de Jeremy Bentham e Stuart Mill sobre o utilitarismo, e de Charles Darwin sobre a sobrevivência do mais apto, geramos um tipo de guerra de todos contra todos, o que os americanos chamam de global rat race, que está se esgotando como mecanismo regulador, e que está inclusive nos levando a impasses planetários cada vez mais inquietantes.
O que está despontando com cada vez mais força, é que somos condenados, se quisermos sobreviver, a desenvolver formas inteligentes de articulação entre os diversos objetivos econômicos, sociais, ambientais e culturais, e consequentemente formas inteligentes de colaboração entre os diversos atores que participam da construção social destes objetivos. O deslocamento sísmico consiste na gradual substituição do paradigma da competição pelo paradigma da colaboração.
Hazel Henderson conta como “entrou” para a economia. Em Nova Iorque os apartamentos eram equipados com pequenos incineradores. Resolvia problemas individuais, mas o resultado era roupa suja nos varais de todos, crianças sujas nos parques onde a poeira negra se depositava, doenças respiratórias, etc. Quando protestou junto às autoridades, foi-lhe explicado que os incineradores geravam empregos, dinamizando a economia. Hazel ficou perplexa: construir com muito esforço coisas inúteis ou nocivas, é bom porque dinamiza a economia? E o esforço das mães que lavam a roupa e os filhos não é custo porque não custa? Não foi a máquina econômica que acabou com os incineradores, e sim o movimento de mães organizadas em torno aos seus interesses.
Hazel se voltou para a economia, chegando gradualmente à visão que hoje expõe no seu livro Construindo um mundo onde todos ganhem, em torno do hoje popular conceito de win-win [1]. A idéia básica é simples, e se reflete na popular imagem de dois burrinhos puxando em direções opostas para atingir cada um o seu monte de feno, e que descobrem o óbvio: comem juntos o primeiro, e depois comem juntos o segundo. Segundo Hazel, “as redes da atual era da informação funcionam melhor com base em princípios em que todos ganham (win-win), mas ainda são dominadas pelo paradigma da guerra econômica global” [2].
“Construindo um mundo onde todos ganhem explora o cenário e mapeia a colisão entre o paradigma do crescimento econômico externamente focalizado e tecnologicamente acionado, que culminou numa guerra econômica global insustentável, e a ascensão de preocupações globais populares no paradigma emergente e nos movimentos a favor do desenvolvimento humano sustentável…Uma mudança sistêmica do paradigma de maximização da competição econômica global e do crescimento do produto nacional bruto para um paradigma do desenvolvimento mais cooperativo, sustentável – o que, em épocas mais antigas, teria exigido centenas de anos –, é pelo menos possível no sistema mundial interdependente e em rápida evolução dos dias de hoje” [3].
Há uma dimensão que vai inclusive além da ética no processo: a colaboração para criar coisas novas ou simplesmente úteis é uma das fontes mais importantes de prazer. O conceito moderno de liderança, inclusive, evoluiu da visão do chefe que dá ordens para a visão do coordenador que organiza processos colaborativos. O sentimento de realização de uma equipe que terminou um trabalho bem feito é muito grande [4].
O mundo, naturalmente, não é um mar de rosas, e tende a predominar a esperteza burra de quem vê nos processos colaborativos uma oportunidade de aumentar as suas próprias vantagens: a colaboração, para esta gente, consiste em fazer com que os outros colaborem para os seus lucros. A visão da luta pela sobrevivência do mais apto está sem dúvida generalizada. Impregna a escola com as suas lutas pelo primeiro lugar ou a melhor nota, a competição pela sobrevivência que representa o vestibular, aparece em cada programa de televisão. A idéia é “vencer” os outros, ainda que a batalha seja fútil, e os resultados ruins para todos.
Vale a pena citar aqui o aporte de David Korten, no seu livro O Mundo Pós-Corporativo. Korten parte da compreensão que teve das limitações da visão biológica do mundo como um espaço de competição pela sobrevivência das espécies: na realidade, o pássaro que come a fruta dissemina a semente, a raiz que nasce precisa dos microorganismos para assimilar o nitrogênio e assim por diante. Ou seja, a dimensão colaborativa é amplamente dominante no processo, e assegura que a vida no planeta se desenvolva de forma sistêmica. Não se “arquiva” a competição, que é real: trata-se de entender a presença maior da dimensão colaborativa.
Na visão de Korten, o mercado, dentro de condições muito precisas, pode constituir um ambiente de colaboração sistêmica, mas não é o que acontece na economia real: “Os mercados, constituem uma instituição humana notável para agregar as escolhas de muitos indivíduos para conseguir uma alocação eficiente e equitável de recursos produtivos com o fim de responder às necessidades humanas. A sua função, no entanto, depende da presença de numerosas condições críticas. Reconhecendo o poder do ideal de mercado, o capitalismo se veste com uma retórica de mercado. Mas busca apenas o seu próprio crescimento, e assim as suas instituições procuram destruir sistematicamente as funções saudáveis dedo mercado. Eliminam as regulamentações que protegem os interesses humanos e ambientais, removem fronteiras econômicas para se colocar além do alcance do Estado, negam aos consumidores acesso a informações essenciais, buscam monopolizar tecnologias benéficas, e utilizam fusões, aquisições, alianças estratégicas e outras práticas anticompetitivas para minar a capacidade do mercado de auto-organizar” [5].
A realidade é que a economia está mudando, em geral mais rapidamente do que a nossa ciência. As atividades hoje se tornaram muito mais amplas, complexas e interativas, fazendo com que as economias de colaboração, materializadas no capital social, sejam cada vez mais importantes. Nas grandes empresas, esta necessidade em geral já foi compreendida, levando à redução do leque hierárquico, à organização de equipes e assim por diante. A partir dos anos 1980, ampliou-se a compreensão da necessidade de colaboração já não só dentro da empresa, mas entre empresas, dando lugar a conceitos como “capitalismo de alianças”, “arranjos colaborativos” inter-empresariais, managed market e assim por diante.
No plano das empresas, o livro que marcou um deslocamento da visão é Alliance Capitalism, de Michael Gerlach, que analisa as formas realmente existentes de colaboração inter-empresarial, em particular no Japão, e sugere que “a teoria econômica pode e deve enfrentar os limites dos mercados atomizados e anônimos, visando explicar as formas institucionais que se desenvolveram nas economias modernas para vencer estas limitações. Particularmente interessante tem sido o papel das contratações de longo prazo e a organização corporativa como alternativas aos mercados competitivos. Os mercados e as empresas capitalistas são vistas, assim, não como entidades isoladas que seguem a sua própria lógica, mas como arranjos institucionais complexos inseridos na ordem legal da sociedade e nas regras básicas sob as quais os atores operam” [6].
Na Terceira Italia formou-se a compreensão de que além dos processos colaborativos inter-empresariais, seria útil organizar a colaboração com iniciativas públicas e do Terceiro Setor que podem gerar economias que são externas à empresa, mas internas a uma região, tornando o trabalho de todos mais produtivo. O livro de Carlo Trigiglia, citado acima, representa bem esta compreensão do território como espaço de construção de arranjos colaborativos.
Esta dimensão prática está apoiada em mudanças estruturais dos processos de reprodução social vistos ao longo deste ensaio. Ao tornar-se o conhecimento crescentemente o principal fator de produtividade, e já que o conhecimento compartilhado não tira conhecimento de ninguém, pelo contrário tende a multiplicar-se, a evolução natural não é a de nos trancarmos numa floresta de patentes e proibições, mas sim de criar ambientes colaborativos abertos, como vemos por exemplo no caso do Linux, da Wikipedia, ou nas formas colaborativas da Pastoral da Criança. A guerra baseada no “isto é meu” não tem sentido quando se trata de conhecimento.
Outra dinâmica que torna a colaboração muito mais presente é a conectividade: é tão fácil colaborar inclusive entre agentes muito distantes, que a idéia medieval do castelo isolado e autosuficiente torna-se cada vez mais ridícula, como se torna cada vez mais limitada a visão da empresa com o seu “capitão” empresário, indo à luta contra todos, trancando os seus segredos. As redes inter-universitárias de colaboração neste sentido estão demonstrando caminhos mais inteligentes e modernos, ainda que o grosso do mundo universitário tenda também a se proteger nas suas torres.
Uma terceria dinâmica está ligada à nossa forma básica de organização demográfica, a cidade, com o seu entorno rural. Já não somos populações rurais dispersas, e mesmo os espaços rurais pertencem a um processo de modernização “rurbano”, como têm definido os pesq uisadores da Unicamp. Neste sentido, como vimos, cada cidade com o seu entorno passa a constituir uma unidade de acumulação econômica que será mais ou menos produtiva, como sistema, segundo consiga ou não organizar-se num espaço colaborativo e coerente dentro do seu território e na região onde está situada.
Enfim, uma quarta dinâmica que também vimos acima está ligada ao deslocamento da composição intersetorial das atividades econômicas, cada vez mais centradas em políticas sociais como saúde, educação, cultura, informação, lazer e outras. Estas atividades, muito mais do que a produção industrial, envolvem processos colaborativos intensos, não se regulam adequadamente pelo lucro, e dependem vitalmente da constituição do capital social e de processos participativos de decisão. A resitância a formas mais modernas de gestão é natural. Anos atrás, houve grandes lutas contra a vacinação obrigatória das crianças, em nome da liberdade de cada um decidir segundo as suas preferências. Naturalmente, vacinar uma parte da população não erradica doença alguma.
Estas quatro macro-tendências, da economia do conhecimento, da conectividade, da urbanização e da primazia do social, geraram condições profundamente renovadas no conjunto do processo de reprodução social, e as velhas práticas que privilegiam a competição, o segredo, os clubes fechados, constituem simplesmente a aplicação de uma ideologia econômica antiga a uma realidade nova. Ou seja, o paradigma da colaboração, além de constituir uma visão ética, e de materializar valores das pessoas que querem gozar uma vida agradável, trabalhar de maneira inteligente e útil, em vez de ter de matar um leão por dia, – constitui hoje bom senso econômico em termos de resultados para o conjunto da sociedade.
Voltando ao princípio, à “rentabilidade social” de que fala Celso Furtado, a colaboração tem de se dar em torno ao objetivo simples da alocação racional de recursos em função da qualidade de vida social.
Hoje sem dúvida as grandes empresas de medicamentos têm entre elas arranjos colaborativos que lhe permitem realizar lucros fabulosos, ao restringirem acesso à livre fabricação das drogas, o que por sua vez permite elevar os preços. Os banqueiros no Brasil colaboram intensamente na manutenção de um sistema de restrição ao crédito, de juros elevados e de tarifas caríssimas, o que lhes permite drenar grande parte da riqueza produzida pela sociedade, sem precisar contribuir para produzí-la. Os grandes grupos da mídia colaboram com as grandes empresas que compram espaço publicitário, e adaptam o conteúdo da informação aos interesses empresariais. Os exemplos não faltam deste tipo de círculos fechados em torno de interesses minoritários.
Putnam resume bem a questão, no seu Bowling Alone já citado, ao lembrar que a Ku Klux Klan é uma organização da sociedade civil, mas cujo objetivo é excluir um segmento da sociedade, em vez de incluir de forma equilibrada os diversos interesses. Isto não é colaboração, é corporativismo na sua pior manifestação. Ou seja, a construção dos processos colaborativos mecessários a uma economia moderna passa por romper os diversos tipos de fortificações que constituem os cartéis, trustes e outros clubes de ricos que desequilibram o desenvolvimento. Não há como escapar à busca ativa de processos econômicos mais democráticos, descentralizados e paticipativos.
Korten busca soluções na articulação dos espaços de desenvolvimento local, onde os agentes econômicos se conhecem e podem construir sistemas colaborativos: “Resolver a crise depende da mobilização da sociedade civil para resgatar o poder que as corporações e os mercados financeiros globais usurparam. A nossa maior esperança para o futuro está com economias apropriadas e geridas localmente que se apoiem predominantemente em recursos locais para responder às necessidades de vida locais dos seus membros em formas que mantenham um equilíbrio com a terra. Um tal deslocamento nas estruturas institucionais e prioridades poderá abrir caminho para a eliminação da escassez e extrema desigualdade das experiências humanas, instituindo uma verdadeira democracia cidadã, e liberando um potencial presentemente não realizado de crescimento e criatividade individuais e coletivos” [7].
Não há soluções simples nesta área, mas o paradigma da colaboração abre sem dúvida uma visão renovada, onde a simples competição não resolve, e os mercados se tornaram cada vez menos operantes. A visão renovada envolve o resgate do planejamento, mecanismos de gestão participativa local, articulações inter-empresariais, e também mecanismos tradicionais de mercado onde ainda sejam úteis, além de mecanismos de concertação internacional cada vez mais necessários, apontando no conjunto para uma articulação diversos mecanismos de regulação em vez das alternativas simplificadas em torno do estatização versus privatização [8].
A nossa intuição simplificada – aqueles argumentos não explicitados mas poderosos que temos em algum lugar profundo da nossa cabeça – nos sugere que a política não funcional, e que a economia de mercado, ao definir regras de jogo iguais para todos os agentes econômicos, ainda constitui o melhor mecanismo de regulação. A realidade é que a própria política está mudando, evoluindo para a democracia participativa, enquanto os mecanismos de mercado sobrevivem em espaços cada vez mais limitados da economia tradicional, substituídos pela força das articulações corporativas. A democracia econômica constitui um complemento necessário que pode racionalizar tanto a política como a economia.
O deslocamento sísmico mais importante na teoria econômica se refere ao gradual esgotamento da competição como principal instrumento de regulação econômica, além de principal conceito na análise da motivação, da força propulsora que estaria por trás das nossas decisões econômicas.
A visão herdada, é que se nos esforçarmos todos o máximo possível para obter o máximo de vantagem pessoal na corrida econômica, no conjunto tudo vai avançar mais rápido. Misturando a visão de Adam Smith sobre a soma de vantagens individuais, de Jeremy Bentham e Stuart Mill sobre o utilitarismo, e de Charles Darwin sobre a sobrevivência do mais apto, geramos um tipo de guerra de todos contra todos, o que os americanos chamam de global rat race, que está se esgotando como mecanismo regulador, e que está inclusive nos levando a impasses planetários cada vez mais inquietantes.
O que está despontando com cada vez mais força, é que somos condenados, se quisermos sobreviver, a desenvolver formas inteligentes de articulação entre os diversos objetivos econômicos, sociais, ambientais e culturais, e consequentemente formas inteligentes de colaboração entre os diversos atores que participam da construção social destes objetivos. O deslocamento sísmico consiste na gradual substituição do paradigma da competição pelo paradigma da colaboração.
Hazel Henderson conta como “entrou” para a economia. Em Nova Iorque os apartamentos eram equipados com pequenos incineradores. Resolvia problemas individuais, mas o resultado era roupa suja nos varais de todos, crianças sujas nos parques onde a poeira negra se depositava, doenças respiratórias, etc. Quando protestou junto às autoridades, foi-lhe explicado que os incineradores geravam empregos, dinamizando a economia. Hazel ficou perplexa: construir com muito esforço coisas inúteis ou nocivas, é bom porque dinamiza a economia? E o esforço das mães que lavam a roupa e os filhos não é custo porque não custa? Não foi a máquina econômica que acabou com os incineradores, e sim o movimento de mães organizadas em torno aos seus interesses.
Hazel se voltou para a economia, chegando gradualmente à visão que hoje expõe no seu livro Construindo um mundo onde todos ganhem, em torno do hoje popular conceito de win-win [1]. A idéia básica é simples, e se reflete na popular imagem de dois burrinhos puxando em direções opostas para atingir cada um o seu monte de feno, e que descobrem o óbvio: comem juntos o primeiro, e depois comem juntos o segundo. Segundo Hazel, “as redes da atual era da informação funcionam melhor com base em princípios em que todos ganham (win-win), mas ainda são dominadas pelo paradigma da guerra econômica global” [2].
“Construindo um mundo onde todos ganhem explora o cenário e mapeia a colisão entre o paradigma do crescimento econômico externamente focalizado e tecnologicamente acionado, que culminou numa guerra econômica global insustentável, e a ascensão de preocupações globais populares no paradigma emergente e nos movimentos a favor do desenvolvimento humano sustentável…Uma mudança sistêmica do paradigma de maximização da competição econômica global e do crescimento do produto nacional bruto para um paradigma do desenvolvimento mais cooperativo, sustentável – o que, em épocas mais antigas, teria exigido centenas de anos –, é pelo menos possível no sistema mundial interdependente e em rápida evolução dos dias de hoje” [3].
Há uma dimensão que vai inclusive além da ética no processo: a colaboração para criar coisas novas ou simplesmente úteis é uma das fontes mais importantes de prazer. O conceito moderno de liderança, inclusive, evoluiu da visão do chefe que dá ordens para a visão do coordenador que organiza processos colaborativos. O sentimento de realização de uma equipe que terminou um trabalho bem feito é muito grande [4].
O mundo, naturalmente, não é um mar de rosas, e tende a predominar a esperteza burra de quem vê nos processos colaborativos uma oportunidade de aumentar as suas próprias vantagens: a colaboração, para esta gente, consiste em fazer com que os outros colaborem para os seus lucros. A visão da luta pela sobrevivência do mais apto está sem dúvida generalizada. Impregna a escola com as suas lutas pelo primeiro lugar ou a melhor nota, a competição pela sobrevivência que representa o vestibular, aparece em cada programa de televisão. A idéia é “vencer” os outros, ainda que a batalha seja fútil, e os resultados ruins para todos.
Vale a pena citar aqui o aporte de David Korten, no seu livro O Mundo Pós-Corporativo. Korten parte da compreensão que teve das limitações da visão biológica do mundo como um espaço de competição pela sobrevivência das espécies: na realidade, o pássaro que come a fruta dissemina a semente, a raiz que nasce precisa dos microorganismos para assimilar o nitrogênio e assim por diante. Ou seja, a dimensão colaborativa é amplamente dominante no processo, e assegura que a vida no planeta se desenvolva de forma sistêmica. Não se “arquiva” a competição, que é real: trata-se de entender a presença maior da dimensão colaborativa.
Na visão de Korten, o mercado, dentro de condições muito precisas, pode constituir um ambiente de colaboração sistêmica, mas não é o que acontece na economia real: “Os mercados, constituem uma instituição humana notável para agregar as escolhas de muitos indivíduos para conseguir uma alocação eficiente e equitável de recursos produtivos com o fim de responder às necessidades humanas. A sua função, no entanto, depende da presença de numerosas condições críticas. Reconhecendo o poder do ideal de mercado, o capitalismo se veste com uma retórica de mercado. Mas busca apenas o seu próprio crescimento, e assim as suas instituições procuram destruir sistematicamente as funções saudáveis dedo mercado. Eliminam as regulamentações que protegem os interesses humanos e ambientais, removem fronteiras econômicas para se colocar além do alcance do Estado, negam aos consumidores acesso a informações essenciais, buscam monopolizar tecnologias benéficas, e utilizam fusões, aquisições, alianças estratégicas e outras práticas anticompetitivas para minar a capacidade do mercado de auto-organizar” [5].
A realidade é que a economia está mudando, em geral mais rapidamente do que a nossa ciência. As atividades hoje se tornaram muito mais amplas, complexas e interativas, fazendo com que as economias de colaboração, materializadas no capital social, sejam cada vez mais importantes. Nas grandes empresas, esta necessidade em geral já foi compreendida, levando à redução do leque hierárquico, à organização de equipes e assim por diante. A partir dos anos 1980, ampliou-se a compreensão da necessidade de colaboração já não só dentro da empresa, mas entre empresas, dando lugar a conceitos como “capitalismo de alianças”, “arranjos colaborativos” inter-empresariais, managed market e assim por diante.
No plano das empresas, o livro que marcou um deslocamento da visão é Alliance Capitalism, de Michael Gerlach, que analisa as formas realmente existentes de colaboração inter-empresarial, em particular no Japão, e sugere que “a teoria econômica pode e deve enfrentar os limites dos mercados atomizados e anônimos, visando explicar as formas institucionais que se desenvolveram nas economias modernas para vencer estas limitações. Particularmente interessante tem sido o papel das contratações de longo prazo e a organização corporativa como alternativas aos mercados competitivos. Os mercados e as empresas capitalistas são vistas, assim, não como entidades isoladas que seguem a sua própria lógica, mas como arranjos institucionais complexos inseridos na ordem legal da sociedade e nas regras básicas sob as quais os atores operam” [6].
Na Terceira Italia formou-se a compreensão de que além dos processos colaborativos inter-empresariais, seria útil organizar a colaboração com iniciativas públicas e do Terceiro Setor que podem gerar economias que são externas à empresa, mas internas a uma região, tornando o trabalho de todos mais produtivo. O livro de Carlo Trigiglia, citado acima, representa bem esta compreensão do território como espaço de construção de arranjos colaborativos.
Esta dimensão prática está apoiada em mudanças estruturais dos processos de reprodução social vistos ao longo deste ensaio. Ao tornar-se o conhecimento crescentemente o principal fator de produtividade, e já que o conhecimento compartilhado não tira conhecimento de ninguém, pelo contrário tende a multiplicar-se, a evolução natural não é a de nos trancarmos numa floresta de patentes e proibições, mas sim de criar ambientes colaborativos abertos, como vemos por exemplo no caso do Linux, da Wikipedia, ou nas formas colaborativas da Pastoral da Criança. A guerra baseada no “isto é meu” não tem sentido quando se trata de conhecimento.
Outra dinâmica que torna a colaboração muito mais presente é a conectividade: é tão fácil colaborar inclusive entre agentes muito distantes, que a idéia medieval do castelo isolado e autosuficiente torna-se cada vez mais ridícula, como se torna cada vez mais limitada a visão da empresa com o seu “capitão” empresário, indo à luta contra todos, trancando os seus segredos. As redes inter-universitárias de colaboração neste sentido estão demonstrando caminhos mais inteligentes e modernos, ainda que o grosso do mundo universitário tenda também a se proteger nas suas torres.
Uma terceria dinâmica está ligada à nossa forma básica de organização demográfica, a cidade, com o seu entorno rural. Já não somos populações rurais dispersas, e mesmo os espaços rurais pertencem a um processo de modernização “rurbano”, como têm definido os pesq uisadores da Unicamp. Neste sentido, como vimos, cada cidade com o seu entorno passa a constituir uma unidade de acumulação econômica que será mais ou menos produtiva, como sistema, segundo consiga ou não organizar-se num espaço colaborativo e coerente dentro do seu território e na região onde está situada.
Enfim, uma quarta dinâmica que também vimos acima está ligada ao deslocamento da composição intersetorial das atividades econômicas, cada vez mais centradas em políticas sociais como saúde, educação, cultura, informação, lazer e outras. Estas atividades, muito mais do que a produção industrial, envolvem processos colaborativos intensos, não se regulam adequadamente pelo lucro, e dependem vitalmente da constituição do capital social e de processos participativos de decisão. A resitância a formas mais modernas de gestão é natural. Anos atrás, houve grandes lutas contra a vacinação obrigatória das crianças, em nome da liberdade de cada um decidir segundo as suas preferências. Naturalmente, vacinar uma parte da população não erradica doença alguma.
Estas quatro macro-tendências, da economia do conhecimento, da conectividade, da urbanização e da primazia do social, geraram condições profundamente renovadas no conjunto do processo de reprodução social, e as velhas práticas que privilegiam a competição, o segredo, os clubes fechados, constituem simplesmente a aplicação de uma ideologia econômica antiga a uma realidade nova. Ou seja, o paradigma da colaboração, além de constituir uma visão ética, e de materializar valores das pessoas que querem gozar uma vida agradável, trabalhar de maneira inteligente e útil, em vez de ter de matar um leão por dia, – constitui hoje bom senso econômico em termos de resultados para o conjunto da sociedade.
Voltando ao princípio, à “rentabilidade social” de que fala Celso Furtado, a colaboração tem de se dar em torno ao objetivo simples da alocação racional de recursos em função da qualidade de vida social.
Hoje sem dúvida as grandes empresas de medicamentos têm entre elas arranjos colaborativos que lhe permitem realizar lucros fabulosos, ao restringirem acesso à livre fabricação das drogas, o que por sua vez permite elevar os preços. Os banqueiros no Brasil colaboram intensamente na manutenção de um sistema de restrição ao crédito, de juros elevados e de tarifas caríssimas, o que lhes permite drenar grande parte da riqueza produzida pela sociedade, sem precisar contribuir para produzí-la. Os grandes grupos da mídia colaboram com as grandes empresas que compram espaço publicitário, e adaptam o conteúdo da informação aos interesses empresariais. Os exemplos não faltam deste tipo de círculos fechados em torno de interesses minoritários.
Putnam resume bem a questão, no seu Bowling Alone já citado, ao lembrar que a Ku Klux Klan é uma organização da sociedade civil, mas cujo objetivo é excluir um segmento da sociedade, em vez de incluir de forma equilibrada os diversos interesses. Isto não é colaboração, é corporativismo na sua pior manifestação. Ou seja, a construção dos processos colaborativos mecessários a uma economia moderna passa por romper os diversos tipos de fortificações que constituem os cartéis, trustes e outros clubes de ricos que desequilibram o desenvolvimento. Não há como escapar à busca ativa de processos econômicos mais democráticos, descentralizados e paticipativos.
Korten busca soluções na articulação dos espaços de desenvolvimento local, onde os agentes econômicos se conhecem e podem construir sistemas colaborativos: “Resolver a crise depende da mobilização da sociedade civil para resgatar o poder que as corporações e os mercados financeiros globais usurparam. A nossa maior esperança para o futuro está com economias apropriadas e geridas localmente que se apoiem predominantemente em recursos locais para responder às necessidades de vida locais dos seus membros em formas que mantenham um equilíbrio com a terra. Um tal deslocamento nas estruturas institucionais e prioridades poderá abrir caminho para a eliminação da escassez e extrema desigualdade das experiências humanas, instituindo uma verdadeira democracia cidadã, e liberando um potencial presentemente não realizado de crescimento e criatividade individuais e coletivos” [7].
Não há soluções simples nesta área, mas o paradigma da colaboração abre sem dúvida uma visão renovada, onde a simples competição não resolve, e os mercados se tornaram cada vez menos operantes. A visão renovada envolve o resgate do planejamento, mecanismos de gestão participativa local, articulações inter-empresariais, e também mecanismos tradicionais de mercado onde ainda sejam úteis, além de mecanismos de concertação internacional cada vez mais necessários, apontando no conjunto para uma articulação diversos mecanismos de regulação em vez das alternativas simplificadas em torno do estatização versus privatização [8].
A nossa intuição simplificada – aqueles argumentos não explicitados mas poderosos que temos em algum lugar profundo da nossa cabeça – nos sugere que a política não funcional, e que a economia de mercado, ao definir regras de jogo iguais para todos os agentes econômicos, ainda constitui o melhor mecanismo de regulação. A realidade é que a própria política está mudando, evoluindo para a democracia participativa, enquanto os mecanismos de mercado sobrevivem em espaços cada vez mais limitados da economia tradicional, substituídos pela força das articulações corporativas. A democracia econômica constitui um complemento necessário que pode racionalizar tanto a política como a economia.
[1] Hazel Henderson – Construindo um mundo onde todos ganhem (Building a Win-Win World), ed. Cultrix, São Paulo 1996.
[2] id., ibid., p. 293 – É interessante ver também o texto de Daniel Cohen, em La Mondialisation et ses ennemis, sobre esta defasagem entre a economia real e as instituições: “A melhor maneira, em princípio, de encontrar uma idéia nova para resolver um problema dado é de coordenar a pesquisa dos que a desenvolvem e, uma vez realizada a descoberta, colocá-la à disposição de todos. O “bom” modelo de referência aqui não é o do mercado, mas o da pesquisa acadêmica que recompensa por diversas distinções o “bom pesquisador”, ao mesmo tempo que deixa as suas descobertas livres para todos. O sistema da propriedade intelectual conduz a fazer exatamente o contrário. As equipes que competem na mesma área, por um determinado medicamento por exemplo, não compartem os seus conhecimentos, e uma vez realizada, a descoberta será a propriedade exclusiva de quem a realizou primeiro. Temos aqui, para o mundo moderno, uma idéia que Marx havia enunciado, de uma contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas, aqui da inovação, e o das relações de propriedade” – p. 228.
[3] Henderson, ibid., p. 19 e 24
[4] O texto já mencionado de Frey e Stutzer desenvolve este tema: “As pessoas têm tendência a se sentirem felizes não só pelo resultado mas também pelo próprio processo…Scitovsky propõe que ‘a diferença entre gostar ou não gostar do trabalho que se faz pode ser mais importante do que a diferença na satisfação econômica gerada pelas disparidades na nossa renda’. As pessoas podem também se sentir mais eatisfeitas ao agirem de maneira correta e ao serem honestas, independentemente do resultado…Assim, a utilidade é colhida do processo de tomada de decisão mais além do resultado gerado” (“Thus utility is reaped from the decision-making process itself over and above the outcome generated”.) – Happiness and Economics, op. cit., p. 153
[5] David Korten – The Post-Corporate World – Berrett-Koehler, San Francisco, 1999., p. 62 – Edição brasileira pela Editora. Vozes, Petrópolis, 2003
[6] Michael L. Gerlach – Alliance Capitalism – University of California Press, Berkeley, 1992, p. 39 – Gerlach constata que as trocas propriamente baseadas no espaço anônimo de mercado “na prática se tornaram raras e limitadas a uma faixa relativamente estreita de transações rotineiras” (p. 41); ver também os trabalhos de James E. Austin, The collaboration Challenge, publicado pela Drucker Foundation, bem como a visão institucionalista de Douglass C. North, Institutions, Institutional Change and Economic Performance, Cambridge University Press, 1990
[7] – Korten, op. cit. p. 7
[8] O argumento da articulação dos mecanismos de regulação foi desenvolvido no nosso A Reprodução Social, vol. II