Fonte: Terra Magazine*
Titular da Secretaria Nacional de Economia Solidária, Singer foi o responsável pela implementação da pasta, ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego, ainda no início do governo Lula – no já longínquo ano de 2003. Foi também um dos fundadores do Cebrap (Centro Brasileiro de Planejamento e Inteligência), criado em 1969 por um grupo de intelectuais perseguidos pelo regime militar.
Nesta entrevista exclusiva a Terra Magazine, o economista faz uma análise detalhada da crise, além de propor mecanismos para conter seus efeitos no Brasil, como o controle de fluxo de capitais. Prevê ainda a expansão de formas de economia solidária em meio ao turbilhão financeiro, como o trabalho em cooperativas e a autogestão.
Para o registro devido, economia solidária é o nome que se dá para novas formas de produção e consumo que priorizem o preço justo e a associação dos trabalhadores. Na prática, a economia solidária é exercida por cooperativas, associações e redes de auxílio entre trabalhadores e consumidores.
O sistema de finança solidária não é especulativo, em nenhuma hipótese. Ele é autogerido. Os próprios depositantes administram as cooperativas de crédito. Além disso, os empreendimentos de economia solidária não despedem. Ninguém nunca é despedido porque todos são sócios. Você não pode demitir um sócio.
Confira a íntegra da entrevista:
Na sua avaliação, como o Brasil tem sido atingido pela crise?
Paul Singer – Em termos de comparação, está sendo pouco atingido. Os Estados Unidos, a Espanha, o Japão… tem uma série de países que vem sendo atigindos com muito mais violência que o Brasil. Vinham sendo afetados desde o meio do ano passado; nós, somente desde o final do ano. E o grau de redução da atividade econômica é muito maior lá fora. Não obstante, de um ponto de vista não comparativo, a partir do Brasil mesmo, o impacto está sendo brutal. Muita gente está perdendo o emprego, o que não havia antes. Isso é realmente resultado da crise, e a atividade econômica está indo para trás.
Isso mostra que, apesar de ter investido bastante no mercado interno, o país ainda está bastante dependente de suas relações econômicas internacionais?
Não é só isso não. Efetivamente, você tem razão, porque a crise vem de fora para dentro. É a grande finança globalizada que é a origem da crise, então ela atingiu os países pelo lado financeiro, em geral internacionalmente. No Brasil isso foi óbvio, porque, por várias razões, os bancos brasileiros não estão em crise; apesar disso, eles estão reduzindo enormemente as suas atividades de crédito, aumentando os juros e isso está afetando agora a economia nacional. O efeito externo começou (a crise), mas agora ela está se desenvolvendo dentro do país.
Essa postura do sistema bancário era esperada? Não é uma atitude contraproducente para a economia do país?
Era esperado em termos de precedente histórico, sempre que há um pânico internacional, os bancos põem as barbas de molho. Porque o seu próprio capital é uma parcela pequena em relação as suas obrigações com os depositantes. É o que se chama de alavancagem; o grau de alavancagem dos bancos é extremamente alto. Isso significa que se eles perderem uma parte dos seus créditos – foi exatamente o que aconteceu com as hipotecas nos EUA -, eles estão quebrados.
Eles fazem alavancagem de até 30 vezes o valor do capital próprio… Pois é, isso é um absurdo. Pelas normas da Basiléia, que não são nada, digamos, admiráveis, mas tem um mínimo de bom senso, os bancos deveriam ter pelo menos 8% de suas obrigações em capital próprio, o que é uma garantia que o banco oferece aos depositantes. Isso seria uma alavancagem de 12 vezes. Como você pode ver, há bancos com alavancagem de 30, até 40 vezes. Os bancos americanos que foram pegos no contra-pé estavam alavancados em 40 vezes o seu capital próprio.
Como acha que o Brasil vem reagindo à crise?
O Brasil tem sido dos mais ágeis, e inclusive agindo na direção certa. Temos, digamos, uma sorte muito grande de termos o PAC. Eu acho que o PAC não foi feito em função dessa crise, mas veio a calhar. O Brasil tem hoje um volume muito grande de investimentos em infra-estrutura que são importantes; e tem o PAC social também, que não é de se jogar fora. Investimentos em educação, habitações populares, saúde… Todas são medidas anti-cíclicas, e elas explicam, em grande parte, porque, comparativamente, a economia brasileira foi pouco atingida.
O que mais pode ser feito para minimizar os efeitos da crise? O senhor é um defensor do controle de fluxo de capitais, por exemplo…
Ah, sim. Essa (a falta de controle) foi uma das razões da crise. As finanças foram globalizadas… Foram cometidos erros piores do que crimes: um deles foi esse, liberar completamente a transferência de capitais. Um das consequências terríveis disso são os chamados paraísos fiscais, que agora começam a ser objeto de crítica e propostas de eliminação. Mas isso é de qualquer forma um absurdo. Você cria pseudopaíses onde não se paga impostos, então a sonegação internacional tornou-se regra, e isso evidentemente contribui para a crise, porque você eleva o grau de especulação, de sonegação de impostos, de falsificação de balanços, a níveis insuportáveis. De modo que não basta acabar com os paraísos fiscais; a movimentação de capitais tem que ser regulada por cada país, em função de suas prioridades socioeconômicas, e não em função da defesa do lucro máximo dos detentores de capitais privados. E provavelmente o sistema financeiro tenha de ser estatizado.
Qual a avaliação que o senhor faz do ritmo de redução dos juros pelo Banco Central?
É completamente inadequado. Isso deveria ter começado seis meses atrás. Não havia nenhuma razão para ainda se aumentar os juros há poucos meses; 2008 já era um ano de crise, que acabaria atingindo o país – inclusive agora. Eles praticamente esperaram o fim de 2008 para fazer uma redução de 1%. É muito pouco, e tarde demais. Mas se continuar reduzindo pelo menos 1% a cada reunião do Copom (Comitê de Política Econômica), já ajuda um pouco.
Qual a importância do mercado interno para o Brasil, hoje? Por muito tempo as exportações o deixaram em segundo plano…
A importância é total. Quer dizer, durante a bolha que precedeu a crise, o Brasil foi beneficiado pela alta (nos preços) das matérias-primas. É sempre assim: as commodities, junto com o setor imobiliário, são o centro da especulação. O petróleo e os metais foram lá para as nuvens, e agora estão no chão. Como houve uma redução enorme na renda dos países mais ricos do mundo, houve uma diminuição na demanda também. O petróleo hoje vale menos de um terço do que valia em meados do ano passado. Isso reduz, portanto, a importância do mercado externo para o Brasil. Nós somos exportadores de máterias-primas. Não só, mas bastante. Com a retração desses mercados, o mercado interno tem de tomar o seu lugar. Então todas as medidas que o governo tem tomado, sobretudo as redistributivas, são de enorme importância. A elevação do salário mínimo, a ampliação do bolsa-família e do ensino público gratuito, inclusive o superior, muitas medidas redistributivas do governo, além de socialmente justas, também ampliam o mercado interno.
Como a economia solidária pode contribuir para o país em meio à crise?
Ela é uma alternativa de todos os pontos de vista. Primeiro lugar, o financeiro. O sistema de finança solidária não é especulativo, em nenhuma hipótese. Ele é autogerido. Os próprios depositantes administram as cooperativas de crédito, os bancos comunitários e assim por diante. Eles não têm o menor interesse de arriscar seu dinheiro por meios especulativos, inclusive gente pobre. Você tem aí o exemplo de um sistema financeiro não especulativo e, portanto, imune à crise. Além disso, os empreendimentos de economia solidária não despedem. Ninguém nunca é despedido porque todos são sócios. Você não pode demitir um sócio. Os empreendimentos de economia solidária também são atingidos pela crise, mas eles têm de repartir o que eles têm entre todos, não tem essa de mandar gente embora como a Embraer fez, por exemplo.
Até porque a idéia não é otimizar os lucros a qualquer custo…
Sim. As empresas, sob a economia solidária, se adaptam. Tem gente que se dispõe a sair porque tem oportunidade de ganho próprio, ou porque é qualificado, e isso alivia o prejuízo dos que ficam. A solidariedade funciona.
Então o senhor vê espaço para o crescimento, em meio à crise, do trabalho associado, em cooperativas, que conhecemos com o nome de economia solidária? Há espaço para essa forma de organização dos trabalhadores?
Deve aumentar. A grande emergência, vamos dizer assim, da economia solidária, foi a grande crise dos anos 90. Crise nossa, em que milhões de empregos industriais foram perdidos. Foi nessa ocasião que as empresas cooperadas emergiram, e a economia solidária firmou raízes no país. E está crescendo agora com muito ímpeto. E vai crescer mais. Agora, eu não fico feliz com isso, porque, infelizmente, é motivado por uma crise que atinge cruelmente a população.
É o fim do chamado neoliberalismo, como vem sendo alegado, ou as práticas de liberalização financeira devem ser retomadas com o fim da crise?
Enterrado é bobagem, isso não existe. Quando o neoliberalismo estava no auge, na década de 70, 80, o keynesianismo tinha sido enterrado. Quer dizer, agora ressurge com mais vigor do que nunca porque nunca foi enterrado. Mesmo no período do neoliberalismo, medidas keynesianas foram adotadas, principalmente pelo Fed (o banco central norte-americano). Havia um keynesianismo não-explícito sendo praticado. Várias bolhas especulativas foram estouradas pelo Fed, isso é política keynesiana. Agora, da mesma forma, há uma reversão de 100%, de quando as políticas keynesianas era dispensáveis. O neoliberalismo está preso tanto a visões ideológicas quanto a interesses materiais. Ele não desaparece. Ele fica, digamos, na berlinda, um pouco afastado dessas práticas econômicas, mas poderá ressurgir a qualquer momento.
Parece que, historicamente, há um revezamento entre essas políticas… É muito possível que seja isso. A minha impressão é de que foi exatamente isso o que aconteceu na metade do século passado. Tivemos 30 anos de políticas keynesianas, que aliás deram muito certo, e depois cerca de 20 anos de políticas neoliberais, que deram muito errado.
*Entrevista de Diego Salmen – 03/03/2009