Fonte: Le Monde Diplomatique (www.diplo.uol.com.br)
No momento em que um conjunto de crises revela o fracasso dos modelos baseados na competição e na ditadura dos mercados, a economia solidária desponta como alternativa. Mas para ocupar o espaço, ele precisa ter consciência de seus limites atuais – e disposição para rompê-los.
Em dezembro de 2008, quando este novo número dos livros temáticos de Le Monde Diplomatique era concluído, a economia capitalista parecia prestes a mergulhar numa das maiores crises de sua história. A pirâmide de créditos que sustentara o consumo, nas décadas anteriores, havia se rompido. A falência em série de grandes instituições financeiras, ocorrida nos meses anteriores, gerava uma onda de desconfiança, paralisava as operações de empréstimo e reduzia bruscamente a atividade produtiva, em múltiplos setores e países. Para tentar retomar os negócios, os bancos centrais injetavam montanhas de dinheiro no sistema. Ainda que fosse possível superar o colapso de liquidez, pareciam inevitáveis, nos anos seguintes, recessão profunda e desemprego em massa.
À crise financeira e econômica sobrepunham-se outras, igualmente dramáticas. Por enxergar a natureza como mero recurso a ser explorado, a humanidade estava à beira de um desastre climático, cujas conseqüências ambientais e sociais poderiam ser trágicas. O agravamento das desigualdades estava resultando em outro fenômeno paradoxal: a fome de centenas de milhões de pessoas, no preciso instante em que a produção de alimentos chegava ao máximo.
Todas estas crises indicavam o ocaso de algumas das idéias em que se apoiou o sistema econômico dominante – primeiro na Europa e suas colônias, depois em todo o mundo – desde o início da modernidade. Nascido da resistência aos poderes medievais, o capitalismo opôs a eles a alternativa do indivíduo. Colocou-o no centro de todas as decisões relevantes sobre o que produzir ou consumir. Acreditou, desde Adam Smith, que o mercado e sua “mão invisível” seriam capazes de converter o egoísmo (que caracteriza as escolhas puramente individuais) em virtude. Rejeitou por isso todas as formas de planejamento coletivo, procurando associá-las a totalitarismo e retrocesso.
Quinhentos anos mais tarde, tais opções, que foram libertadoras em seu tempo, pareciam conduzir a humanidade a desastres em série. Como preservar natureza, sob um sistema em que ter dinheiro legitima, automaticamente, opções como possuir quatro automóveis, ou iniciar a exploração de uma mina de nióbio na Amazônia? Como evitar a ocorrência simultânea de abundância e miséria, se o mercado, ao invés de temperar o egoísmo, estimula a a produzir para quem pode pagar (por exemplo, garrafinhas de água Bling, a 50 dólares a embalagem de 750 mililitros), e recomenda esquecer as populações sem poder aquisitivo (1,2 bilhões de seres humanos, sem acesso à água potável)? Como impedir que a economia trave, quando se busca sistematicamente o aumento dos lucros e a redução dos salários, até o ponto de não haver consumidores para a enorme massa de riquezas produzidas?
No bojo de todas as crises há oportunidades. O grande trauma iniciado em 2008 parecia suficientemente forte para liquidar a idéia de “fim da História”. Bloqueado durante trinta anos pelo fundamentalismo de mercado, o pensamento político e econômico via-se novamente livre para ousar. Hostilizadas durante décadas, idéias como a ampliação dos investimentos estatais em obras e serviços públicos, o apoio financeiro às famílias endividadas, a recuperação do seguro-desemprego, a adoção de programas de renda cidadã recuperavam prestígio.
Era o momento de avançar. Havia espaço, inclusive, para colocar na mesa propostas que afirmassem a prioridade dos direitos sociais sobre os lucros; as vantagens da colaboração sobre a competição; a distribuição, ao invés da concentração de riquezas. Em outras palavras, espalhar sementes de pós-capitalismo.
O conjunto de práticas enfeixado pelo termo Economia Solidária aparecia com destaque neste elenco, por pelo menos três motivos. Não eram propostas abstratas ou apenas experimentais, mas linhas de ação que reuniam séculos de experiência. As cooperativas, por exemplo, acompanham o capitalismo desde o início da industrialização, funcionando como ao mesmo tempo como resistência à ganância dos patrões e alternativa de organização autônoma dos trabalhadores. A Economia Solidária também não se limita a enxergar a possibilidade de um mundo novo no futuro. Ela oferece desde já, além de ocupações, a oportunidade pedagógica de ser empreendedor sem explorar; de assumir responsabilidades e ter iniciativa sem reivindicar privilégios; de dirigir sem oprimir.
Por fim, o desenvolvimento acelerado das tecnologias da informação dava, no exato instante de eclosão da crise, nova força a estas lógicas alternativas. A internet tornava possível estabelecer, num número crescente de atividades humanas, relações diretas entre seres humanos – superando a necessidade de intermediação, antes exercida pelo capital. Na criação de programas para computador, por exemplo, as comunidades de desenvolvedores que trabalhavam em colaboração, mantendo abertos os códigos desenvolvidos (softwares livres) superavam, em muitos terrenos, as empresas que trabalhavam em regime de propriedade intelectual. E a indústria cultural parecia fortemente pressionada pela difusão de produtos artísticos via rede. As receitas das gravadoras e estúdios estavam em queda livre, mas artistas com pouquíssimos recursos podiam tornar conhecida sua produção e os produtos culturais circulavam livres das restrições impostas pelo pagamento mercantil.
Esta série de fatos favoráveis, contudo, não seria suficiente para tornar tranqüila a ascensão da Economia Solidária. Primeiro, porque as lógicas capitalistas, e os interesses por trás delas, criam poderosos e resistiriam. Segundo, porque era preciso superar inúmeras insuficiências no próprio mundo das novas práticas. É a esta distância entre potência e realidade que estão voltados os nove textos da nova edição dos livros temáticos de Le Monde Diplomatique Brasil.
A série é aberta por Rosalvo Schuutz, doutorando em filosofia na Universidade de Kassel, Alemanha. Em Economia Popular Solidária: referência para uma nova aliança estratégica das esquerdas?, ele procura afastar as visões mistificadoras e triunfalistas, segundo as quais as iniciativas de economia social seriam sempre positivas e libertadoras. Em alguns casos, sustenta o autor, a precariedade extrema dos empreendimentos transforma os trabalhadores que deles participam em exploradores de si mesmos. Isso porque, sem meios de produção adequados, só são capazes de fornecer os produtos requeridos pelo mercado rebaixando as próprias condições de trabalho e salários. Ao invés de adotar uma atitude auto-complacente, propõe o autor, a economia solidária deveria ampliar sua ambição. Seus desafios são superar o caráter de economia marginal e secundária que ainda caracteriza certas iniciativas; encarar o desafio de oferecer produção, consumo e circulação mais eficientes que os proporcionados pela economia capitalista.
Na seqüência, Henrique Rattner (Economia Solidária: por que?) aborda os padrões éticos e projetos de mundo que há por trás das duas formas de economia. Ele lembra que vivemos num tempo marcado por rápido desenvolvimento tecnológico e enorme multiplicação de riquezas. Ressalta, contudo que estas vantagens não foram capazes de livrar a humanidade da miséria, da exploração (às vezes brutal) do trabalho, competição destrutiva, desperdício e pressão constante contra a natureza. Em meio a tal contradição, o papel da Economia Solidária é, para Rattner, o de relembrar a possibilidade da cooperação e uso racional dos recursos. É um valor que marcou as sociedades humanas durante boa parte da História, foi retomado nas diversas tradições socialistas dos séculos 18 a 20 e está ressurgindo, sob forma de diversos experimentos de participação. O autor inclui neste rol, além das modalidades de produção já tradicionalmente tratadas como Economia Solidária, invenções como o Orçamento Participativo iniciado em Porto Alegre, ou as articulações de municípios com interesses comuns. Cooperação e busca de modos de vida alternativos são, para ele, caminho para evitar que se realizem contra-utopias totalitárias e homogenizantes, como as descritas por George Orwell ou Aldous Huxley.
Os arranjos produtivos que podem ser articulados a partir dos municípios ou redes intermunicipais são o tema de Ladislau Dowbor em A Organização das iniciativas locais. Ele lembra que o aumento populacional provocou, no Brasil, o surgimento de um novo ambiente, distinto tanto das grandes metrópoles quanto das zonar rurais. São as cidades médias e pequenas, nas quais está frutificando, com rapidez, milhares de iniciativas econômicas — muitas delas com forte característica de Economia Solidária. O desafio, sugere Ladislau, é criar condições de colaboração e sinergia, para que os empreendimentos não se percam na pequena escala de sua produção ou no eventual despreparo técnico e administrativo de seus líderes. Há uma vantagem a ser explorada: no plano municipal, o poder está mais próximo da sociedade. É possível reivindicar mais facilmente do prefeito, ou dos vereadores, que nos grandes centros. Mas é preciso criatividade: o texto aponta como exemplos os fruticultores da região de São Joaquim (SC), que deslancharam ao se articular em cooperativas. Ou os coletores de castanha e essências do Amapá, que além de se cooperativarem estabeleceram parceria com a universidade, tiveram acesso a um laboratório e passaram a exportar diretamente para a França – livres, portanto, de intermediários.
Vêm na seqüência dois textos da espanhola Carola Reintjes, participante ativa da rede IFAT – Organização Internacional do Comércio Justo. Em Outra Economia, além do capital, Carola debate a necessidade de incorporar a dimensão econômica ao discurso e prática dos movimentos que lutam por outra sociedade. A ausência desta dimensão, sustenta a autora, revela que tais movimentos ainda não passaram da denúncia do capitalismo (essencial, porém insuficiente), à construção concreta de alternativas. Porque é necessário e possível, prossegue ela, demonstrar desde já que a produção pode ser organizada a partir de outros padrões éticos, baseados na distribuição das riquezas e no respeito à natureza.
Este ponto-de-vista é desenvolvido em A revolução das segundas-feiras. A partir de um relato sobre a VI Feira Nacional de Economia Solidária do Uruguai, realizada em 2007, Carola aprofunda sua crítica às concepções tradicionais de esquerda. Para a autora, elas limitam-se a enxergar a transformação num futuro longínquo, a partir do qual, como por milagre, relações humanas hoje marcadas pelo egoísmo e pela predação passarão a ser presididas pela bondade. A esta visão mítica e sem-religiosa da idéia de Revolução, a autora opõe algo mais concreto. É o esforço de milhares de empreendedores que estão ousando construir, mesmo sob a hegemonia do capital, novas relações sociais. É, certamente, uma construção imperfeita – já que estes produtores estão imersos num mercado mundial que reproduz constantemente as desigualdades. Mas planta-se, no coração do sistema, o germe de mudança.
Ocupar, resistir, produzir, de Cécile Raimbeau traz, sob a forma de reportagem, o relato de uma destas ousadias. Trata-se da ocupação do Hotel Bauen, em Buenos Aires. Inaugurado em 1978 (para a Copa do Mundo da Argentina) e fechado por seus proprietários no final de 2001, em meio à crise aguda da moeda nacional, ele foi retomado em março de 2003 pelos trabalhadores. Começou então um experimento emblemático, num país que está se tornando referência mundial para a recuperação de empresas, esta nova forma de Economia Solidária. Cécile concentra seu foco em dois aspectos essenciais e polêmicos. O primeiro é o esforço penoso para evitar o individualismo (que caracteriza a lógica capitalista) ultrapassando, ao mesmo tempo o desejo de “ser assalariado” – ou seja limitar-se a cumprir planos e ordens de uma empresa, para receber ao final do mês a recompensa mercantil. A reportagem se detém, por exemplo, nas dificuldades vividas devido à ausência de quadros (já que a grande maioria dos administradores e gerentes recusou-se a participar da recuperação. O segundo aspecto são as relações com o Estado. Na Argentina, após intensas pressões sociais, os governos que se seguiram à crise concordaram em oferecer facilidades jurídicas fiscais e creditícias às empresas recuperadas. A autora pergunta: “se o Estado desapropria para construir estradas, porque não pode fazê-lo para garantir o direito ao trabalho?”
Penúltimo texto da série, Economia Solidária, fundamento para a globalização humanizadora é um documento. Foi produzido coletivamente pelo Grupo de Trabalho de Economia Solidária formado em Porto Alegre para o Fórum Social Mundial (FSM) de 2002. Em torno do grande encontro mundial das alternativas surge, a cada ano, uma grande rede de economia pós-capitalista. Tanto quanto possível, o abastecimento (alimentação, vestuário, material de escritório, artesanatos etc) das dezenas de milhares de participantes é realizado por empreendimentos da Economia Solidária. Em 2002, os organizadores desta grande feita alternativa puseram-se também a refletir sobre o sentido de sua ação. Alguns dos tópicos abordados por eles merecem destaque. Aborda-se, por exemplo, a necessidade de redefinir o papel e o controle do dinheiro – o que envolve desde o apoio aos bancos éticos e instituições de microcrédito até o repensar dos sistemas financeiros. Debate-se a chamada “dimensão feminina” da Economia Solidária, ou seja, o sentido de acolhimento e integração, ausente nas empresas voltadas essencialmente para o lucro. Discute-se a necessidade de lutar por um Estado nacional que seja ao mesmo tempo forte (no sentido da garantia dos direitos sociais e apoio aos empreendimentos solidários) e democrático (para manter, com tais iniciativas, uma relação que respeite sua autonomia). Enfatiza-se a necessidade de enfrentar as concepções correntes no senso comum – segundo as quais a Economia Solidária é essencialmente paliativo para a exclusão – e apontar a validade universal de alguns dos objetivos que o setor não-capitalista persegue: em especial uma forma alternativa e igualitária de distribuição dos excedentes.
O lixo nosso de cada dia, de Edivaldo del Grande fecha nossa série de artigos. Em 2007, a cidade italiana de Nápoles viveu uma crise urbana, em conseqüência do colapso da coleta de resíduos. A partir deste episódio o autor debate o papel da Economia Solidária na construção de soluções racionais para o tratamento do lixo. Num texto curto porém denso, Edivaldo aborda do desperdício (característica do consumismo) à importância da conscientização sobre a reciclagem. Mas lembra que não basta ficar nas idéias. Pesquisas recentes de opinião pública revelam que 92% da população brasileira dizem-se dispostos a participar de coleta seletiva. No entanto, mesmo numa cidade como São Paulo, apenas 4% dos descartes são reciclados. Boa parte da diferença deve-se à ausência de sistemas de reaproveitamento eficientes. O texto lembra que o papel de empreendimentos como as cooperativas de catadores na busca de soluções. Além de viabilizar a coleta, elas dão nova auto-estima e papel social a seus membros, que passam a atuar (e se enxergar) como agentes ambientais. Os resultados são ainda mais animadores se as prefeituras desenvolvem – como ocorreu em São José dos Campos-SP – oficinas continuadas de formação ética e técnica.
As possibilidades de mudança implícitas nas crises só se realizam se há consciência das alternativas. Com esta nova edição temática, Le Monde Diplomatique Brasil espera contribuir para que os próximos meses sejam marcados por reflexão e mobilização pessoal e socialmente transformadoras. Boa leitura!
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