Fonte: Rede de Tecnologia Social www.rts.org.br
Há mais de um século, um episódio da luta do sertanejo contra a miséria e a opressão, a Insurreição de Canudos, na Bahia, popularizou o nome de uma planta que emprestou sua denominação às favelas brasileiras. Do Morro da Favela, em Canudos, a fava d’anta, ou favela, foi levada, após o massacre dos revoltosos, ao Morro da Providência, no Rio de Janeiro, por soldados que passaram a viver em condições precárias no local. De lá para cá, as favelas se multiplicaram nas cidades, mas a favela, a planta, continua como símbolo de outras lutas no campo.
Exemplo disso é o projeto “Agroextrativismo Sustentável da Favela”, que está mudando a realidade de mais de 1,3 mil famílias organizadas na Rede de Comercialização Solidária de Agricultores Familiares e Extrativistas do Cerrado. Vencedor do Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social, em 2007, na categoria Centro-Oeste, o projeto está criando, com o valor do prêmio – R$ 50 mil -, um fundo rotativo solidário destinado à compra de carroças e animais para transporte dos frutos. Os recursos foram utilizados, ainda, para imprimir 3 mil cartilhas de orientação ao agroextrativista.
A premiação, realizada em parceria com a Petrobras, com apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e da KPMG Auditores Independentes, é concedida, a cada dois anos, para identificar, certificar, premiar e difundir tecnologias sociais. O conceito compreende produtos, técnicas ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade, que representem soluções efetivas de transformação social.
Com apoio do Centro de Desenvolvimento Agroecológico do Cerrado (Cedac), a rede desenvolve, desde 2000, ações de organização social coletiva, manejo sustentável, beneficiamento e comercialização de frutos do cerrado. A favela (Dimorphandra sp), por exemplo, é uma leguminosa de grande interesse para a indústria farmacêutica. De seus frutos são extraídas substâncias como a rutina, usada no tratamento do glaucoma e de doenças circulatórias, e a quercetina, açúcar utilizado em complementos alimentares.
Autonomia – Segundo a coordenadora técnica do Cedac, Alessandra Karla da Silva, o novo projeto, de fortalecimento do agroextrativismo sustentável no cerrado, bancado com os recursos do prêmio, busca melhorar a autonomia do agroextrativista para organizar a produção, aumentar a capacidade de coleta dos frutos da favela e, conseqüentemente, a renda familiar. Valorizar a organização das cooperativas, promover a capacitação de novas famílias e propiciar condições mais dignas de locomoção são outras das metas do projeto.
A maior dificuldade enfrentada era justamente a falta de condições de transporte dos frutos, pois os agricultores têm que percorrer longas distâncias, a cavalo ou de bicicleta, sem conseguir carregar muitas favelas. “O projeto vai melhorar as condições de trabalho das famílias e o resultado será revertido para os próprios produtores”, ressalta.
A gestão do fundo rotativo será compartilhada com a Rede de Comercialização Solidária, fortalecendo sua dinâmica social. A execução do projeto será realizada pelo Cedac e a administração ficará por conta da Cooperativa Mista dos Agricultores Familiares, Extrativistas, Pescadores, Vazanteiros e Guias Turísticos do Cerrado (Coopcerrado). Já as despesas com o funcionamento serão custeadas com recursos fornecidos por outros parceiros institucionais do Cedac.
Financiamento
O fundo atenderá, diretamente, no primeiro ano de funcionamento, 30 famílias dos municípios de São Domingos e São João d’Aliança, em Goiás, e Lassance, Ibiaí, Jequitaí e Paracatu, em Minas Gerais. A previsão é que os agricultores recebam, em agosto, as primeiras 30 carroças aro 21 com os arreios. Os agroextrativistas terão quatro anos para pagar o financiamento por meio da produção da favela.
Segundo Alessandra, o Prêmio Fundação BB de Tecnologia Socialfoi importante para divulgar o projeto junto aos agroextrativistas. “Com a divulgação, novos grupos, especialmente do Piauí e de Tocantins, já entraram em contato para participar da rede. E quando apresentamos o vídeo sobre a tecnologia, durante as reuniões com as comunidades, os produtores ficam sempre muito animados”, conta Alessandra.
Outro ganho, segundo a coordenadora, é a propagação das utilidades da favela para as indústrias farmacêuticas e de complementos alimentares.”Este reconhecimento valoriza o agroextrativista lá na ponta, que está gerando renda, conservando um bem maior que é o cerrado”, acredita.
Atualmente, a rede vende o fruto para a unidade industrial farmacêutica Merck Maranhão, que realiza o processamento e vende o produto para o exterior. O agricultor recebe o valor bruto de R$ 1,28 por quilo do fruto seco, o que equivale a um rendimento líquido de R$ 0,70. Somente na safra deste ano, 60 toneladas serão enviadas para a indústria. “A meta é ampliar o número de participantes da rede, aumentando a capacidade de produção e de negociação”, revela Alessandra.
Tecnologia Social
Em 2000, o Cedac fez um diagnóstico sócio-ambiental do extrativismo da favela em sete municípios do nordeste goiano. Os resultados indicaram extração predatória, baixa produtividade, desequilíbrio na cadeia de comercialização regional “já que os coletores ficavam com a menor parte dos rendimentos”, trabalho infantil e desvalorização da força de trabalho feminina. Para reverter a situação, o Cedac organizou o
Projeto Agroextrativismo Sustentável da Favela para envolver extrativistas de Minas Gerais, Goiás e Bahia em uma rede do bioma cerrado. A proposta era promover uma série de capacitações que resultasse no desenvolvimento da coleta dos frutos, na implementação do manejo sustentável, domínio sobre a cadeia da comercialização e aumento da renda.
A atividade começou com um grupo-piloto de 52 pessoas de seis comunidades do município de São Domingos/GO. O primeiro passo foi eliminar a figura do atravessador. Em 2006, o número de famílias passou para 400, organizadas em núcleos comunitários. Cada um tem um monitor responsável por devolver à comunidade as informações repassadas nas reuniões mensais, pela mobilização e organização do pessoal para o trabalho em rede e pela implementação das atividades. A participação dos agroextrativistas da favela na Rede de Comercialização Solidária de Agricultores Familiares e Extrativistas do Cerrado e na Coopcerrado possibilitou o aumento da produção e da renda, a venda direta às indústrias e a criação das primeiras reservas extrativistas do cerrado, a Lago do Cedro, em Aruanã, e a Recanto das Araras de Terra Ronca, em São Domingos, ambas em Goiás.
Atualmente, o projeto reúne 1.305 famílias de agricultores, assentados, pescadores, extrativistas, vazanteiros e guias turísticos, que vivem em 28 municípios dos estados de Goiás, Minas Gerais e Bahia.
Por Priscilla Carvalho, da Fundação Banco do Brasil