Fonte: Correio Brasiliense
Eles são os verdadeiros guardiães do ECA. Sabem os artigos decor, batem à porta das casas para apurar denúncias e, muitas vezes, percorrem longas distâncias, a pé, com o objetivo de garantir os direitos de crianças e adolescentes. Não à toa, 71% do diagnóstico da situação da infância nos municípios, de acordo com uma pesquisa da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), é fruto do trabalho dos conselheiros tutelares.
A função foi criada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente para consolidar o sistema de proteção aos brasileirinhos. E o mais importante: trata-se de um órgão autônomo, que coloca nas mãos da sociedade civil o dever — e o poder — de zelar pelos direitos da infância. Com membros eleitos pela comunidade, o conselho tutelar trabalha em conjunto com a Justiça, mas sem qualquer vínculo hierárquico.
A lei estabelece que todos os municípios brasileiros tenham um conselho composto por cinco membros. Dezoito anos depois da promulgação do ECA, 12% das cidades ainda não contam com conselhos tutelares. E a condição dos existentes está longe do ideal. A pesquisa Conhecendo a realidade, da SEDH, revela que 52% dos conselheiros consideram o local de trabalho ruim ou regular. Em 15% das sedes, faltam cadeiras e mesas para atendimento.
Em Abaetetuba (PA), onde a denúncia de conselheiros levou ao conhecimento público o caso da adolescente encarcerada com homens numa delegacia comum, por exemplo, apenas um computador tem acesso à internet. E os cinco conselheiros só têm à disposição três salas, o que dificulta a manutenção da privacidade, fator essencial num trabalho que se baseia, principalmente, na relação de confiança entre o conselheiro e a criança vítima de violação dos seus direitos.
Não é preciso ir tão longe para constatar a carência de recursos. No conselho tutelar de Ceilândia, um dos 10 que existem no Distrito Federal, faltam divisórias, as cadeiras estão quebradas e não há copos para servir água à população. No lugar, onde são atendidos em média 10 casos por dia, os conselheiros tiram dinheiro do próprio bolso para manter as condições básicas. “Se eu quiser mandar um fax, por exemplo, tenho de pagar. Aqui, é muito comum as pessoas trazerem de casa aparelhos de telefone e cadeiras”, relata Selma Aparecida da Costa Santos, que cumpre seu primeiro mandato.
“Embora seja um órgão autônomo, o conselho depende do orçamento do governo para manter sua estrutura. E, hoje, o poder público é o principal violador dos direitos da criança. Uma coisa é você ter atribuições e outra é poder fazer valer o que o Estatuto determina”, critica o conselheiro Domingo Francisco, 34 anos. A conselheira Rogéria Moura de Sousa, 36, que atua em Samambaia, por exemplo, aponta a dificuldade de garantir o atendimento humanizado às crianças vítimas de agressões físicas e sexuais. “A criança já é vitimizada. Chega numa delegacia comum e vê mais violência. Precisamos avançar muito na questão do atendimento.”
Dedicação de sobra
Se faltam condições adequadas, sobra dedicação. Com uma média de 600 atendimentos em um ano e meio como conselheira tutelar, Selma, 42 anos, é tratada com carinho pelas pessoas que recebe. Como Tamara*, 16 anos, ex-dependente química. “Hoje, eu e a Selma somos amigas. Se trabalho hoje é graças a ela, que me encaminhou para o emprego”, diz a adolescente, que conseguiu uma vaga num viveiro de plantas. No caso de Fabiana da Silva Lima, 26 anos, mãe de três crianças com idades entre 7 meses e 3 anos e em situação de pobreza extrema, a conselheira foi atrás da inclusão da família em programas sociais. “Agora, ela tenta colocar minha filha na creche. A Selma é meu anjo da guarda.”
Mãe de um jovem de 23 anos, a conselheira conta que a motivação para concorrer ao cargo foi evitar que outras crianças passassem pelo o que ela viveu na infância. Órfã de pai e mãe aos 8 anos, ela e os outros seis irmãos criaram-se sozinhos. Aos 12, saía de Ceilândia todos os dias para trabalhar como doméstica no Plano Piloto. O irmão de 14 anos também ajudava em casa, empacotando compras num supermercado. “Era isso ou comer. Para comer, tinha que trabalhar”, conta. “Naquela época, não havia conscientização sobre o trabalho infantil, muito menos fiscalização.”
Aos 16 anos, ela resolveu voltar a estudar. “Tive de largar os estudos, mas tinha desejo de estudar, me formar. Então fui atrás e concluí o ensino médio”, conta. Todos os dias, Selma vê histórias como a dela. São meninas trabalhando como domésticas, meninos vigiando carros, vendendo doces no sinal. Mas, ao contrário do que aconteceu com Selma, essas crianças, hoje, têm quem zele por elas.
Para o presidente da Associação dos Conselhos Tutelares do DF, Antônio Roldino, porém, muitas pessoas ainda desconhecem a função. “A impressão que a sociedade tem é que o conselho é um órgão de repressão. Trata-se de um ranço do Código de Menores”, acredita Roldino, que atua em Samambaia. O código ao qual se refere foi substituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e legislava sobre os “menores em situação irregular”: de órfãos a adolescentes em conflito com a lei. “É preciso saber, porém, que hoje a realidade é completamente diferente”, ensina.
Saiba mais sobre o Conselho Tutelar
O que é o Conselho Tutelar?
Órgão autônomo, o Conselho Tutelar está presente em 88% dos municípios brasileiros: são 4.880 unidades implementadas em 5.564 cidades. De acordo com uma pesquisa da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 49% dos conselhos têm carência de condições e recursos.
São atribuições dos Conselhos Tutelares:
Receber denúncias de violações dos direitos
Prover orientações
Aplicar medidas de proteção, que podem podem valer para crianças e adolescentes, suas famílias, entidades de atendimento, Poder Executivo, Ministério Público, autoridade judiciária e para suas próprias decisões
Assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente
Presença dos conselhos tutelares nas regiões:
Região por Percentual de conselhos com relação ao número de municípios .. Norte 88%
Nordeste 70%
Sudeste 100%
Sul 94%
Centro-Oeste 92%
Brasil 88%
Escolaridade dos conselheiros
Ensino médio completo: 55%
Ensino superior ou mais: 15%
Ensino superior incompleto: 15%
Sem nível de escolaridade ou até o ensino médio incompleto: 15%
Avaliação do espaço físico, segundo os conselheiros:
48% consideram a conservação do local de trabalho boa
37% consideram que os locais proporcionam boa privacidade
15% dos conselhos não têm mobiliário básico (mesa e cadeira) para o atendimento da população
39% dos conselhos dispõem de veículo automotor para uso nas atividades