Publicado no Boletim Internacional de Desenvolvimento Local Sustentável nº 34
Circulam muitos mitos sobre a questão e é necessário chamar à atenção para os limites do micro crédito. A quase unanimidade em torno das supostas virtudes do micro crédito é tão forte que parece sacrilégio interrogarmo-nos sobre as razões pelas quais o Comité norueguês do Nobel atribuiu o seu prémio a Muhammad Yunus e ao Grameen Bank.
Após um período de euforia, a decepção arrisca-se a lançar um anátema sobre uma técnica que, aplicada com moderação em circunstâncias locais oportunas e com métodos de acompanhamento apropriados, revela alguma eficácia.
Para dar resposta às necessidades do planeta, seria necessário uma mudança mais importante e uma vontade bem mais forte do que estes pequenos empréstimos. Hoje, a micro finança não se limita apenas ao micro crédito. Uma poupança segura é, muitas vezes, um serviço mais importante que o crédito. As transferências financeiras para emigrantes e os micro seguros desenvolvem-se. Mas onde existem carências de hospitais, médicos e medicamentos, os micro seguros não vão fazê-los aparecer por milagre, pelo simples efeito da procura. Propor serviços que não existem é mais desajustamento que eficaz. As necessidades de água, de educação, de saúde, de transportes são, para os pobres, as necessidades mais urgentes a resolver.
Um erro normal é dizer que Muhammad Yunus foi o primeiro a praticar o micro crédito, já que as primeiras iniciativas provêem principalmente de activistas cristãos da América latina. Um outro erro seria considerar que o Grameen Bank se guia apenas por modelos de empréstimos solidários a pequenos grupos, depois de uma forte crise provocada por reembolsos não pagos, o que o levou, em 2002, a promover os empréstimos individuais. Um terceiro erro é o de pensar que o micro crédito se dirige aos mais pobres dos pobres. Os condicionalismos exercidos pelas cooperações multilaterais e bilaterais levaram-nos a virarem-se para clientelas cada vez menos pobres. Entre 7000 e 10000 instituições de micro crédito recenseadas, só uma centena pode aspirar a ter uma clientela pobre e serem autónomas, cobrindo os seus custos com a actividade. Há, se bem que em número limitado, oportunidades reconhecidas para certos fundos de risco elevado, investimentos éticos ou de participação (…) No Peru, instituições de micro crédito emprestam a 5% ao mês mas não atendem, no essencial, senão as populações abaixo da linha de pobreza nas zonas urbanas, deixando para ONG subvencionadas a intervenção nas zonas rurais de grande pobreza e onde a densidade populacional é baixa e o analfabetismo elevado.
Medidas do impacto
Elas mostram que o micro crédito melhora a gestão dos orçamentos familiares (ligando os períodos de carência e a recepção dos rendimentos). Estabiliza pequenas actividades empresariais, o que é extremamente útil. Mas o micro crédito não pode pretender ser um elemento indispensável para erradicar a pobreza ; o que é afirmado pelo Comité do prémio Nobel. Frequentemente, os fundos do micro crédito são utilizados para despesas de saúde e de alimentação, o que prova o seu carácter indispensável. Mas estas despesas estão longe de ser investimentos geradores de rendimento. O micro crédito pode assim conduzir ao sobre endividamento e criar ainda mais dramas do que esperanças.
As expectativas do Comité Nobel ilustram o desconhecimento da realidade : o micro crédito revela-se como factor de paz, após os conflitos Nenhuma referência é feita ao papel essencial do micro crédito em situações pós-conflito. Ora esta original técnica financeira foi um factor importante de rearticulação dos laços sociais no Camboja, no Uganda, na Bósnia, no Ruanda e até no Bangladesh. O Grameen Bank foi criado precisamente após a divisão do Paquistão, que tinha lançado o novo Estado na guerra e numa crise profunda. A visão do Comité Nobel aponta somente sobre os fundamentos económicos do micro crédito, arriscando-se a difundir muitas ilusões.
Resumo do artigo de Jean Michel Servet publicado na Tribune de Genève, em 25 de Outubro de 2006, p.15. Jean Michel Servet é professor no IUED de Génova, fundador do programa de pesquisa sobre micro finança no Instituto francês de Pondichéry (Índia). É autor de Banqueiros de pés descalços. A Micro finança (Paris, Odile Jacob, 2006). Ver ainda a recensão de leitura de Sylvain Allemand nas Alternatives économiques, Setembro de 2006 www.alternatives-economiques.fr/lectures/L251/NL251_005.html
O título original desse texto é “O micro crédito não pode ter a pretensão de ser um elemento indispensável para a erradicação da pobreza Muhammad Yunus e o prémio Nobel : um comentário”.