Fonte: www.cartamaior.com.br

Reunidos pela Carta Maior em Porto Alegre, um grupo de produtores e representantes de entidades ligadas à agricultura familiar garante que o setor está diante de uma oportunidade para construir um novo padrão de desenvolvimento pautado pelos princípios da segurança alimentar e energética.

PORTO ALEGRE – A produção de etanol e biodiesel pela agricultura familiar é uma realidade. Por todo o país, esse setor da economia aposta nesta nova frente como uma oportunidade para aumentar a renda de suas famílias. Mas o investimento nos biocombustíveis pode significar uma diminuição da área plantada para a produção de alimentos? Sim e não. Sim, se esse investimento se traduzir em grandes monoculturas de cana, por exemplo. Não, se ele for orientado por um compromisso com a diversificação e com o conceito de soberania alimentar. Reunidos pela Carta Maior em Porto Alegre, um grupo de produtores e representantes de entidades ligadas à agricultura familiar garante que o setor está caminhando na segunda direção, apontada por eles como uma oportunidade para construir um novo padrão de desenvolvimento pautado pelos princípios da segurança alimentar e energética.

André Raupp, engenheiro agrônomo da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul (Fetag), entidade que reúne 350 sindicatos de trabalhadores rurais, acredita que esse caminho é possível e viável, tendo em vista os avanços importantes que a agricultura familiar conquistou nos últimos anos. Para Raupp, os desafios a serem enfrentados agora estão relacionados à aquisição de maior conhecimento técnico, condição para a viabilidade econômica. Na mesma direção, Gildo Bratz, secretário da Cooperativa de Produtores de Cana de Porto Xavier (Coopercana), acredita que a possibilidade de produzir biocombustíveis representa uma oportunidade para a agricultura familiar ajudar a fortalecer políticas de soberania energética e alimentar. O caso da Coopercana é apontado como um exemplo disso.

O exemplo da Coopercana

Constituída em 1985 pela Alpox, a usina de álcool de Porto Xavier faliu no final da década de 1990. Em 1999, os funcionários da empresa se organizaram e formaram uma cooperativa que alugou a massa falida da companhia e começou a operar com o nome de Produtores de Cana Porto Xavier (Coopercana). Em 2004, os agricultores conseguiram finalmente comprar a empresa. A partir daí, adotaram um novo sistema de gestão, com 300 sócios cooperativados, onde os próprios funcionários e agricultores passaram a administrar o processo produtivo. Hoje, a Coopercana produz cerca de 2% de todo o álcool consumido no Rio Grande do Sul. Bratz relata que os agricultores sócios da Coopercana não trabalham com a idéia de estabelecer uma monocultura de cana. As propriedades têm, em média, de 7 a 8 hectares, e produzem também milho, soja e gado.

A agricultura familiar está aumentando a produção de alimentos, não diminuindo, garante o secretário da cooperativa. Para ele, as críticas que vêm sendo feitas à produção de biocombustíveis encontram explicação na crise da economia norte-americana. “Os Estados Unidos estão perdendo força na sua economia e alguns países em desenvolvimento, como o Brasil, estão crescendo”, resume. Mas para que o projeto de compatibilidade entre produção de biocombustíveis e soberania alimentar se concretize há algumas condições que devem ser cumpridas. Uma delas é a construção de um marco regulatório para a atividade, defendeu a engenheira agrônoma Cecília Bernardi, do Fórum de Energias Renováveis Missões. Para ela, a definição de um marco regulatório fortalecerá a produção de biocombustíveis como alternativa de diversificação de culturas nas propriedades familiares.

A agricultura familiar como modo de vida

Na região das Missões (noroeste do Estado), o Fórum tem apoiado iniciativas de instalação de micro-destilarias junto à produção de alimentos como possibilidade de geração de renda para a agricultura familiar. Bernardi também enfatizou a necessidade de superar a visão da agricultura familiar apenas como uma produtora de matérias-primas. “Uma das principais riquezas da agricultura familiar é que ela organiza comunidades e imprime uma cultura, um modo de vida que respeita o meio ambiente e a noção de sustentabilidade. Precisamos nos livrar desse rótulo de ser meramente produtores de matérias-primas”. Ela relatou ainda que a experiência desenvolvida por Marcelo Guimarães em Minas Gerais vem servindo de inspiração para os agricultores da região das Missões. Consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Guimarães defende que a produção de fontes energéticas como biodiesel e etanol deve estar subordinada a um projeto de desenvolvimento mais amplo, gerador de trabalho e renda, e ambientalmente sustentável.

Nesta mesma direção, André Santos, da União das Associações Comunitárias do Interior de Canguçu (UNAIC), município localizado na região Sul do Estado, destacou que a agroenergia é hoje uma demanda mundial e que não é possível fugir dela. Para ele, a agricultura familiar é o modelo ideal para evitar que essa demanda não vire uma nova onda de monocultura. “Sofremos muito nos últimos quarenta anos com esse modelo de agricultura empresarial baseado na monocultura. Não podemos repetir esse erro”, defendeu. O trabalho desenvolvido pela UNAIC está comprometido com essa visão. É uma luta que já tem vinte anos. Os associados da entidade trabalham no desenvolvimento de sementes crioulas (de milho e feijão, por exemplo), na promoção de feiras de sementes, na industrialização que agrega valor à produção dos agricultores e agora também na produção de biodiesel a partir das culturas de mamona, canola, girassol e soja.

As demandas: marco regulatório, pesquisa e mais crédito

Além da necessidade da definição de um marco regulatório para a produção de biocombustíveis, os agricultores familiares têm outra reivindicação em comum: o aumento das linhas de crédito e a desburocratização do processo de liberação de recursos. José Kochhann Sobrinho, gerente de agronegócio do Banco do Brasil no Rio Grande do Sul, reconheceu que é preciso avançar nessas questões, mas defendeu o trabalho que o banco vem desenvolvendo no fortalecimento da agricultura familiar. Ele forneceu alguns números desse trabalho. No RS, através do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o Banco do Brasil já ajudou a financiar o trabalho de mais de 200 mil famílias de agricultores. Foram mais de 300 mil contratos em 2007 (com uma média de R$ 7.000 por família) e, para a próxima safra, a previsão de investimentos é de R$ 1,5 bilhão. Das 340 agências que o BB possui no Estado, 250 delas trabalham com os agricultores, destacou Kochhann.

Para Heitor Álvaro Petry, vice-presidente da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), no setor da fumicultura, a agroenergia representa uma possibilidade de diversificação e de sustentabilidade para as famílias de agricultores que produzem tabaco (a quase totalidade é de agricultores familiares). “Cada família de pequenos agricultores é como uma pequena empresa. Esse é o verdadeiro agronegócio que deve ser incentivado”, defendeu. No Rio Grande do Sul, informou, já está em curso a segunda safra de uma produção experimental de girassol, por parte de agricultores do setor fumicultor. “Precisamos de mais pesquisa nesta área. A bioenergia não é uma tábua de salvação, mas é um remo importante”, enfatizou. Petry citou o caso da Coopercana como um exemplo a ser seguido. É uma prova, afirmou, de que é possível produzir energia consorciada com a produção de alimentos. “O que não pode acontecer é a agricultura familiar ficar de fora deste processo”.

Marco Aurélio Weissheimer, 23/04/2008