Fonte: www.unisinos.br
Apesar da importância que os empreendimentos da Economia Solidária vêm adquirindo, eles apresentam, ao mesmo tempo, grandes fragilidades, aponta o Coordenador-Geral de Estudos da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) Roberto Marinho Alves da Silva. Ele explica que “61% dos Empreendimentos da Economia Solidária afirmaram ter dificuldades na comercialização, 49% para acesso a crédito, e 27% não tiveram acesso a apoio ou assistência técnica”.
Há quatro anos, segundo ele, a Economia Solidária era quase invisível para grande parte da sociedade. Embora as articulações da Economia Solidária tenham recebido impulso na década de 1990, Silva ressalta a necessidade de a sociedade conhecê-la e “reconhecer o seu papel estratégico na construção de alternativas de desenvolvimento”, já que ela “aponta para uma nova lógica de desenvolvimento sustentável”.
Roberto Marinho Alves da Silva é graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. Atualmente, ele é requisitado do Ministério do Trabalho e Emprego, onde exerce o cargo de Coordenador-Geral de Estudos da Secretaria Nacional de Economia Solidária. De suas produção bibliográfica, destacamos os artigos Desenvolvimento solidário e sustentável (Cadernos Cáritas, Brasília, v. 6, n. 1, p. 5-72, 2005) e Das alternativas de sobrevivência à Economia Solidária: a trajetória da Cáritas Brasileira (Revista Proposta, Rio de Janeiro, n. 97, p. 80-89, 2003).
Confira a entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line:
IHU On-Line – Que tipo de políticas públicas devem ser desenvolvidas pelo governo para fortalecer a Economia Solidária? Como o senhor avalia o desempenho da secretaria nacional de Economia Solidária e suas ações até o momento?
Roberto Marinho Alves da Silva – Partimos de uma compreensão de que a Economia Solidária se refere a um conjunto de iniciativas coletivas de produção, comercialização, finanças e consumo que privilegia a autogestão e a cooperação em empreendimentos coletivos, sob a forma de cooperativas ou associações, redes e cadeias produtivas.
O mapeamento da Economia Solidária no Brasil, iniciado em 2005, identificou a existência de quase 15 mil desses empreendimentos econômicos solidários, com mais de um milhão e duzentos mil homens e mulheres que realizam uma extensa variedade e expressiva quantidade de produtos e serviços. Apesar da importância que vêm adquirindo, esses empreendimentos apresentam grandes fragilidades. Essa realidade requer o fortalecimento do processo organizativo para a conquista de política pública de Economia Solidária.
A Economia Solidária no Brasil está avançando na sua organização política, constituindo fóruns e redes. Essas articulações ganharam impulso no final da década de 1990 e se consolidaram com a criação do Grupo de Trabalho Brasileiro de Economia Solidária, no ano 2001. Em junho de 2003, foi criado o Fórum Brasileiro de Economia Solidária. A Economia Solidária no Brasil também vem conquistando o apoio e reconhecimento público. Criada em junho de 2003, a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) tem o objetivo de promover o fortalecimento e a divulgação da Economia Solidária, visando à geração de trabalho e renda, à inclusão social e à promoção do desenvolvimento justo e solidário. Desde a sua criação, vem implementando um conjunto de ações de apoio e fomento a empreendimentos e redes econômicas solidárias, em parceria com diversos órgãos do Governo Federal. Essas iniciativas buscam expressar uma nova lógica de ação pública de apoio às iniciativas econômicas solidárias como um direito e garantia de acesso ao trabalho digno.
IHU On-Line – De que maneira projetos de fomento e assistência tecnológica podem contribuir para a consolidação e ampliação dos trabalhos realizados através da Economia Solidária?
Roberto Marinho Alves da Silva – A SENAES apóia a constituição e o fortalecimento de empreendimentos econômicos solidários, incentivando a cooperação e a formação de redes solidárias em todo o território nacional, o que acaba por facilitar o acesso à infra-estrutura para produção e o apoio nas atividades organizativas e formativas. No total, desde 2004, cerca de 2.500 empreendimentos receberam apoio do Governo Federal para aprimorar sua capacidade de geração de trabalho e renda. Os agentes de desenvolvimento solidário, por exemplo, estão atuando em cerca de 500 comunidades, propiciando o apoio e assessoria para constituição de empreendimentos econômicos solidários e beneficiando milhares de trabalhadores. Também foi dado início a parcerias com Bancos Públicos, que financiam iniciativas de Economia Solidária, a exemplo do BNB, com o apoio a Fundos de Projetos Produtivos Solidários. As Feiras de Economia Solidária têm beneficiado milhares de empreendimentos em todos os estados da federação. Deve-se destacar, também, o apoio a processos de recuperação de empresas por trabalhadores organizados em autogestão.
IHU On-Line – Que mudanças são necessárias na sociedade, para que o projeto da Economia Solidária consiga expandir com maior amplitude? Há preconceito na sociedade em relação a esse tipo de atividade?
Roberto Marinho Alves da Silva – Em primeiro lugar, a sociedade precisa conhecer a Economia Solidária e reconhecer o seu papel estratégico na construção de alternativas de desenvolvimento. Há quatro anos atrás, tínhamos consciência de que ela era quase que invisível para a sociedade, para o Estado e havia pouca identidade em torno daqueles sujeitos sociais que atuam nela. O Sistema de Informações em Economia Solidária ajudou a sociedade brasileira a conhecer melhor essa realidade, dando visibilidade aos empreendimentos econômicos solidários.
Em grande parte, ainda hoje, considera-se que os empreendimentos econômicos solidários são iniciativas compensatórias para pessoas pobres que não conseguem acesso ao mercado formal de trabalho. É claro que a Economia Solidária tem parte dessas características, mas ela comporta valores e práticas emancipatórias para essas pessoas que participam dos empreendimentos e para a sociedade como um todo. Ao democratizar as relações sociais de produção, supera a subalternidade do trabalho em relação ao capital, desenvolve as capacidades do trabalhador, valorizando o trabalho familiar, das mulheres e de outros setores excluídos da sociedade. Seus resultados econômicos, políticos e culturais são compartilhados pelos participantes. Implica na reversão da lógica capitalista, ao se opor à exploração do trabalho e dos recursos naturais, considerando o ser humano na sua integralidade como sujeito e finalidade da atividade econômica. Considerando essas características, a Economia Solidária aponta para uma nova lógica de desenvolvimento sustentável.
IHU On-Line – Ao falar de Economia Solidária, quais são as diferenças entre teoria a prática? Qual é a realidade da Economia Solidária, hoje?
Roberto Marinho Alves da Silva – As concepções sobre a Economia Solidária devem ser entendidas como expressão de um contexto muito recente de expansão dessa outra economia no cenário nacional. Tem pouco mais de uma década que o conceito de Economia Solidária passou a ser utilizado no Brasil de forma mais sistemática, por militantes e pesquisadores. Ainda hoje permanecem várias concepções e formas de nomeação em relação a este fenômeno. Em sua maior parte, essas formulações ainda idealizam a realidade da Economia Solidária. Daí a importância do Sistema de Informações em Economia Solidária, que revela os seus avanços socioeconômicos, suas práticas e valores emancipatórios, mas também leva a uma compreensão sobre as dificuldades enfrentadas pelos empreendimentos econômicos solidários.
Com base no SIES, foi constatado, por exemplo, que 61% dos Empreendimentos de Economia Solidária (EES) afirmaram ter dificuldades na comercialização, 49% para acesso a crédito, e 27% não tiveram acesso a apoio ou assistência técnica. As dificuldades de comercialização estão relacionadas à insuficiência de capital de giro. Os investimentos iniciais dos empreendimentos têm origem, em sua esmagadora maioria, dos próprios sócios (com 61,1% das menções). Pode-se supor que a dependência de recursos dos próprios associados ou de doações cerceia o surgimento e o desenvolvimento dos empreendimentos, e compromete as condições necessárias à sustentabilidade deles. As dificuldades de acesso ao crédito, à assistência técnica e à comercialização, explicam o baixo faturamento mensal de mais de dois terços dos EES e, conseqüentemente, da baixa remuneração dos seus associados: dos 14.954 empreendimentos econômicos solidários identificados no SIES até 2005, 8.870 (59,3%) informaram a remuneração dos sócios. Deste total, 50% têm remuneração com valor até meio salário mínimo (SM) válido para 2005.
IHU On-Line – Além de amenizar os problemas sociais e econômicos, que outros benefícios a Economia Solidária proporciona a seus participantes?
Roberto Marinho Alves da Silva – Os dados revelados pelo mapeamento da Economia Solidária indicam que está em constituição uma alternativa de inclusão social pela via do trabalho e da renda. Isso é possível quando ocorre a combinação da cooperação, da autogestão e da solidariedade na realização de atividades econômicas. Os três principais motivos para a criação dos EES são alternativa ao desemprego (45%), complemento da renda dos sócios (44%) e obtenção de maiores ganhos em uma iniciativa associativa (41%).
Também existem benefícios do ponto de vista da autogestão. A participação ocorre nas decisões cotidianas, na escolha da direção dos empreendimentos, na prestação de contas que é realizada em assembléias e reuniões e no acesso dos associados aos registros e informações. Além disso, percebe-se a ocorrência de algumas melhorias na capacitação dessas pessoas, nas novas relações que se estabelecem entre produtores e consumidores, no respeito ao meio ambiente e na participação em movimentos sociais.
IHU On-Line – Como se dá o diálogo e as relações entre a Economia Solidária e os movimentos ecológicos? De que maneira esses movimentos têm contribuído para criar uma sociedade auto-sustentável?
Roberto Marinho Alves da Silva – Do total de empreendimentos identificados pelo Sistema de Informações em Economia Solidária, 67,4% afirmam que se preocupam com a qualidade de vida dos consumidores de seus produtos e serviços, e 58,2% têm compromisso social ou comunitário. Quanto à preocupação com a qualidade de vida e o meio ambiente, constata-se que, dentre outras preocupações apresentadas pelos EES, temos 4.280 (28,6%) empreendimentos que afirmam oferecer produtos orgânicos ou livres de agrotóxicos, enquanto que 4.754 (31,8%) afirmam realizar reaproveitamento dos resíduos.
IHU On-Line – O senhor afirma que o caminho para chegar à verdadeira democracia, aquela que supera as formas de descriminação, se dará através da lógica da solidariedade e da sustentabilidade. Isso é possível num mundo em que as pessoas estão cada vez mais individualistas e deslumbradas com o consumo?
Roberto Marinho Alves da Silva – O desafio da construção do desenvolvimento solidário e sustentável passa por mudanças estruturais, na transformação dos atuais modelos socioeconômicos de produção e de distribuição das riquezas, e por mudanças culturais profundas, superando as concepções e práticas predominantes de exploração da natureza e do trabalho humano. Do ponto de vista da solidariedade, é preciso, sobretudo, promover a inclusão de todas as pessoas em seus benefícios, democratizando o acesso e partilha dos bens comuns. Esse é o aspecto ético do desenvolvimento que se baseia na igualdade real (e não apenas formal), no direito à vida com dignidade. Exige a afirmação de compromisso com uma sociedade não excludente. A sustentabilidade exige não apenas mudanças tecnológicas e regramentos na exploração dos recursos naturais, mas o rompimento com a visão utilitarista do meio ambiente, reconhecendo os laços de solidariedade entre as diferentes formas de vida, da percepção do ser humano como parte da natureza. É preciso uma nova consciência de reciprocidade como sentimento, crença e valor em todas as ações humanas, no cuidado com a vida e com o Planeta. Na esfera da política, é preciso construir novos conceitos e novas relações de poder baseadas na solidariedade, na orientação ética de servir e defender os interesses da coletividade, respeitando as diversidades e ampliando as formas e mecanismos de participação. Trata-se da construção de novas relações igualitárias de classe, gênero, raça, etnia e geração.
Enfim, para superação do individualismo, é preciso também valorizar a solidariedade como condição de associação, de articulação de esforços e compromissos voltados para a superação de todas as formas de destruição da vida. Cultivar a solidariedade é congregar e organizar os que são destituídos de direitos, os que são vítimas da exclusão social e econômica, na construção de um novo projeto societário.
IHU On-Line – Qual, atualmente, é o principal impasse para a construção de novas ações dentro da Economia Solidária?
Roberto Marinho Alves da Silva – Apesar dos avanços, é necessário ampliar o espaço institucional da Economia Solidária nas definições estratégicas dos Planos de Governo, sobretudo vendo-a como uma das formas emancipatórias de inclusão social e como alternativa de organização do trabalho autogestionário, gerando renda e contribuindo para a redução das desigualdades sociais. Além disso, a Economia Solidária pode e deve ser reafirmada como orientação das atividades econômicas sustentáveis, de promoção do comércio justo e do consumo consciente no âmbito do necessário esforço a ser realizado pela sociedade brasileira.
Deve-se dar especial atenção às prioridades da Primeira Conferência Nacional de Economia Solidária, realizada em 2006, viabilizando o adequado reconhecimento jurídico dos empreendimentos econômicos solidários e ampliando os programas de formação e assistência técnica, de crédito e finanças solidárias, de comercialização etc. Para isso, faz-se necessário ampliar significativamente os recursos e a inclusão de ações de Economia Solidária nos diversos programas de Governo. Do ponto de vista da participação social, é preciso estimular à criação de esferas públicas, fortalecendo a participação e o controle social na formulação, desenvolvimento, acompanhamento, fiscalização e avaliação das políticas, para aperfeiçoá-las e legitimá-las socialmente.
IHU On-Line – Na sua avaliação, o estado tem sido capaz de responder à Economia Solidária ou ele acaba fomentando e dificultando o trabalho da Economia Solidária?
Roberto Marinho Alves da Silva – De modo geral, as ações realizadas e os resultados alcançados indicam que nos últimos anos ocorreram avanços na constituição de uma política pública federal para a Economia Solidária no Brasil. A visibilidade da Economia Solidária tem contribuído para processos de auto-reconhecimento dos atores, desenvolvendo o potencial de organização das iniciativas em fóruns, redes e cadeias produtivas. O processo de reconhecimento da importância da Economia Solidária no Brasil resulta em avanços na institucionalização de política pública para o setor. Além da criação da SENAES, em 2003 foi elaborado o Programa Economia Solidária em Desenvolvimento, articulando ações de fomento, formação e divulgação. Em 2006, foi realizada a I Conferência Nacional de Economia Solidária, mobilizando mais de quinze mil pessoas. Logo após a Conferência, foi instalado o Conselho Nacional de Economia Solidária, com 56 membros, sendo a maioria da sociedade civil (empreendimentos, movimentos sociais e ONG´s). Além disso, tem havido a ampliação e o fortalecimento de políticas públicas estaduais e municipais de Economia Solidária.
IHU On-Line – Se a Economia Solidária não reduz o desenvolvimento à dimensão econômica e utiliza-se de diversos instrumentos para consolidar gradativamente uma cultura de solidariedade, por que as políticas de desenvolvimento territorial e local não ganham maior incentivo nas regiões?
Roberto Marinho Alves da Silva – O atual governo brasileiro vem valorizando as territorialidades e implementando estratégias e programas de desenvolvimento territorial. Pode-se destacar o Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais – PRONAT, desenvolvido pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário em parceria com outros ministérios e órgãos federais, estaduais e municipais e envolvendo a sociedade civil. Também existem avanços nos Consórcios de Segurança Alimentar e Desenvolvimento – CONSAD’s, desenvolvido pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, para a promoção de atividades produtivas solidárias e de segurança alimentar. Também existem iniciativas de desenvolvimento de messoregiões, faixas de fronteira e nos biomas (Caatinga, Cerrado, Amazônia, Pantanal, entre outros).
A valorização das metodologias endógenas de planejamento e intervenção, considerando as diversidades dos espaços locais e territoriais, significa um avanço político em relação às concepções tradicionais, autoritárias e verticalizadas de desenvolvimento. Uma das motivações para o desenvolvimento territorial é a constatação das limitações do desenvolvimento planejado de fora para dentro, considerando apenas as estratégias locacionais dos investimentos privados, que têm por base a maior valorização possível do capital. No entanto, a história recente do Brasil aponta para as conseqüências diretas das políticas macroeconômicas nos diversos espaços ou territorialidades, diante das fragilidades e dependência desses espaços em relação aos fundos públicos nacionais. Há, também, um reconhecimento de que a promoção do desenvolvimento exige a ampliação das ações para além das iniciativas econômicas, devendo considerar os aspectos sociais, ambientais, culturais e os arranjos das cadeias produtivas.
A principal dificuldade é o baixo investimento dos governos nessas iniciativas de desenvolvimento local e territorial. Os investimentos públicos são direcionados, ainda, em sua maior parte de acordo com outras lógicas de desenvolvimento. Além disso, os planos e programas estratégicos não consideram adequadamente os imbricamentos entre os espaços locais, territoriais, regionais e nacionais. Daí a importância e urgência de construção de políticas nacionais integradas de desenvolvimento que considerem a superação das desigualdades regionais historicamente construídas e as diversidades territoriais para promoção da qualidade de vida para todos e todas. Nesse aspecto, ainda há um longo caminho a ser percorrido nas ações governamentais.