“Calcanhar de Aquiles” das campanhas tucanas, a privatização foi tema de debate que relembrou o falecido jornalista Aloysio Biondi. Para Paul Singer, o mal maior da “venda” de estatais está no impedimento da função redistributiva do Estado.
Fonte: Agência Carta Maior, por Maurício Hashizume
As privatizações se tornaram o “calcanhar de Aquiles” da campanha do presidenciável tucano Geraldo Alckmin – e também acabaram respingando em outras candidaturas do PSDB neste segundo turno, como a de Yeda Crusius, que disputa o governo do Rio Grande do Sul – não apenas pelo saldo contábil e pelo conturbado processo da transferência de estatais para o setor privado patrocinado pelo governo passado de Fernando Henrique Cardoso.
A insistência do presidente petista e candidato à reeleição Luiz Inácio Lula da Silva em reiterar o caráter “privatista” das propostas de Alckmin tem um significado mais amplo que está diretamente ligado ao papel do Estado, ponto central de distinção entre os dois projetos colocados para os eleitores brasileiros.
Foi em torno justamente do papel do Estado que girou o debate “Não às Privatizações: Brasil rumo ao pós-neoliberalismo”, ocorrido na noite desta terça-feira (17) no teatro dos Bancários, na capital federal. O evento homenageou o jornalista Aloysio Biondi, falecido em julho de 2000, autor do livro O Brasil Privatizado, obra lançada em 1999 que se tornou referência das denúncias sobre o processo de “vendas” de estatais.
Para além da simples leilão do patrimônio público, um dos objetivos da privatização é “impedir a função redistributiva do Estado”, ressaltou o secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Paul Singer, um dos convidados para a mesa de debate. Sob a gestão do Estado, companhias de energia elétrica, por exemplo, podem implementar políticas progressivas do chamado subsídio cruzado, em que grandes consumidores com alto poderio econômico são sobretaxados para a sustentação das chamadas “tarifas sociais”, que facilitam o acesso aos serviços e a inclusão social.
A lebre levantada pela campanha eleitoral do risco de privatização dos bancos públicos – como o Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e o Banco do Nordeste – também não passou em branco. Tanto Singer quanto o presidente da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae), José Carlos Alonso, sublinharam que o leilão dessas instituições não seria trágico apenas por causa da demissão de funcionários e de possíveis prejuízos financeiros.
A perda de controle dos bancos estatais poderia implicar no naufrágio de um dos principais canais de políticas redistributivas existentes para o País, que é a expansão ainda maior do crédito produtivo para a camada mais pobre da população. Tal conseqüência não parece tão distante se for levado em conta o histórico – de privatizações de bancos estaduais, ausência de reajustes salariais, cortes de pessoal e terceirização – que marcou o governo FHC, recordou Jacy Afonso, presidente do Sindicato dos Bancários do Distrito Federal, uma das entidades organizadores do debate junto com a Fenae e a Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT.
Alerta, fundos e terceirizações A presença destacada do tema neste segundo turno da campanha eleitoral, destacou o jornalista Pedro Biondi, filho de Aloysio, pode servir de parâmetro para notar que a visão da população em relação à privatizações mudou ao longo da última década. Campanhas que tentaram incutir a idéia de que as estatais são necessariamente perdulárias e ineficientes parecem ter perdido o impacto com a série de manobras – e os respectivos resultados – que fulminaram o patrimônio público e favoreceram amplamente (por diversos e questionáveis meios) a iniciativa privada durante o governo FHC.
Pedro lembrou, porém, que a influência do chamado “mercado” e dos organismos internacionais na atuação do Estado continua em marcha. Novas formas que surgiram inclusive no governo Lula, como as Parcerias Público-Privadas (PPPs), são evidências de que o alerta e a manutenção das discussões que resvalam na possibilidade de priorização do interesse privado sobre o público continuam bastante pertinentes.
De fato, a exposição de José Carlos Alonso, da Fenae, provou que a privatização está longe de ser um tema vencido. O caso da negociação da Caixa Econômica Federal com a multinacional Gtech é um exemplo disso. O setor de administração do sistema de loterias da Caixa foi privatizado para a Gtech pelo governo FHC. No entanto, o governo Lula, que já havia decidido reincorporar o setor, acabou recebendo acusações de favorecimento por causa de denúncias relacionadas à simples prorrogação provisória do contrato com a Gtech. A seguradora da Caixa também foi vendida para uma estatal francesa.
Outros dois temas de extrema importância ligados às privatizações que vieram à baila foram os fundos de pensão e as terceirizações. Fundos como o Funcef, dos funcionários da Caixa – entraram com capital no programa de privatizações e ainda estão às voltas com processos judiciais inconclusos (no caso da Brasil Telecom, o controverso empresário Daniel Dantas, do Banco Opportunity, já foi afastado do controle da empresa, mas a questão segue pendente na Justiça). Alonso, da Fenae, admitiu que os fundos ainda estão muito atrelados ao mercado financeiro – a Funcef, por exemplo, investe 70% em títulos públicos – e defendeu uma “engenharia do bem” para que o dinheiro dos funcionários seja investido cada vez mais no setor produtivo, em nome do desenvolvimento do País. Ele pregou a democratização dos comitês de investimento dos fundos de pensão, para que haja uma maior independência dos funcionários, donos dos fundos, em relação aos gestores comprometidos com a ciranda financeira.
O presidente da Fenae também saudou o acordo que viabilizará a reversão de parte da terceirização promovida ppelo governo FHC. As representações sindicais dos bancários conseguiram formalizar um acordo, por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pelo Ministério Público, para que os bancos estatais promovam a recontratação formal, até 2007, de funcionários terceirizados que trabalham em atividades-fim.
Raízes da privatização O secretário de Economia Solidária Paul Singer, que é um experimentado professor de economia, aproveitou o debate para resgatar as raízes das privatizações. Concebidas como parte do paradigma liberal, as privatizações ganharam força a partir da disseminação da idéia de que o Estado só deve fazer aquilo que a iniciativa privada não tem condições de fazer, pois tudo o que o setor privado puder fazer, certamente fará melhor que o Estado.
A base da argumentação pró-privatização se encontra nas “vantagens” inerentes do capital privado que, por estar sujeito à concorrência, conserva a vocação de reduzir custos e melhorar a qualidade dos serviços. De acordo com esta lógica, quanto mais perfeita for a concorrência, maior será o benefício do usuário. Os lucros das empresas, neste cenário ideal de competição perfeita, seriam pressionados a se converter em benfeitorias para todos. O mercado perfeitamente competitivo, porém, é uma “abstração perversa”. Para que isso viesse a acontecer, todos os agentes econômicos teriam de conhecer absolutamente todas as ofertas disponíveis no mercado, cada preço e cada qualidade. Como é impossível acabar com esse déficit informacional, o pressuposto pode ser considerado absurdo. E se o lucro ocorre não pela competição perfeita, mas pela desinformação, a relação entre lucro e eficiência fatalmente está corrompida. Esse desequilíbrio coloca em xeque qualquer reflexo em benfeitorias.
Outro aspecto fundamental das privatizações é que parte significativa das privatizadas – ou sob risco de privatização – é formada por empresas monopólicas ou oligopólicas. A base do argumento da competitividade simplesmente inexiste nesses casos. Para rebater isso, os ideólogos do Reino Unido da época da primeira-ministra Margaret Thatcher – que veio a se tornar uma das figuras mais simbólicas do neoliberalismo – tentaram defender a idéia de que a competição nesse tipo de venda de patrimônio público estaria presente nos leilões das concessões, realizados periodicamente a cada cinco, dez ou mais anos. “Isso é uma enorme enganação. Depois que uma empresa ganha, ela fica com a faca, o queijo e tudo mais que estiver a sua volta nas mãos”, rebateu Singer.
Em adição, as agências reguladoras, que deveriam conter o poder desses monopólios priorizando o interesse público e evitando a influência dos humores do mercado, acabaram, na visão do secretário, se tornando “linha auxiliar dos grandes grupos monopólicos”. “Assim como o Banco Central, [as agências reguladoras] apenas garantem a saúde financeira das empresas privadas”.