Fonte: www.ibase.org.br, por Josinaldo Aleixo*

A economia solidária é resultado do acúmulo de práticas de grupos populares que se organizam há décadas para enfrentar o desafio das práticas econômicas. Hoje, existem no Brasil mais de 15 mil empreendimentos, com aproximadamente 1 milhão e 300 mil trabalhadores(as) associados(as), dos quais 70% foram constituídos a partir da década de 1990. São grupos de produção, trocas e consumo, cooperativas e associações nos mais diferentes ramos de atividade, cujas práticas econômicas são baseadas no trabalho associado e na gestão coletiva.

Sem dúvida, a economia solidária é mais um espaço de organização de um segmento importante dos setores econômicos populares. Porém, diante do quadro de precarização das relações de trabalho, desassalariamento, informalidade e menosprezo pela agricultura familiar no qual se debate a maioria dos(as) trabalhadores(as) brasileiros(as), a economia solidária é uma gota d’água num oceano.

“E daí?”, me perguntou Valmir, coordenador do Centro de Assessoria à Pequena Agricultura, de Marechal Cândido Rondon (Paraná). “Quando o Capa começou, só havia dois agricultores orgânicos. Era o Capa num mar de veneno”. Hoje, são centenas de agricultores(as) organizados(as) em associações de trabalhadores(as) rurais, cooperativas, na Rede Ecovida, plantando, comercializando, devolvendo à vida à terra. Apesar de sua fragilidade política, econômica e numérica, os empreendimentos econômicos populares estão aí para ficar.

A economia solidária é um movimento social? Creio que sim. Numa linha de continuidade, a economia solidária absorveu uma característica central dos movimentos sociais tradicionais, que é a ação política organizada reivindicativa de direitos. Ela se alinha àqueles movimentos cuja ênfase é a organização de uma base social e, por isso, são exitosos como os movimentos de luta pela terra e sem-teto.

Quem chega junto da economia solidária são os(as) mais pobres no meio dos(as) pobres, aqueles(as) que sobrevivem da produção de mercadorias e da venda de serviços nas franjas do sistema. Estes(as) formam identidade com a economia solidária porque ela tematiza o direito ao trabalho, sendo, por isso, fortemente mobilizadora.

“Vamo lá Josi, vamo lá ‘bater’ naquele prefeito pra gente conseguir o espaço pra gente fazer a nossa feira…”, me sacaneava Rosário, artesã do Rio de Janeiro. Rosário nunca participara de movimento “organizado” até “vir” para a economia solidária. Ali, ela discute situações concretas para a mudança de sua vida. Portanto, creio que a economia solidária possui a forte característica de “mexer na barriga”, organizar aqueles(as) que estão no limiar da sobrevivência e tematizar de maneira mais ampla o direito ao trabalho digno.

Se a presença dessa base social tão ampla, “despolitizada” e “desorganizada” constitui uma de suas características marcantes, ela põe em questão as formas tradicionais de organização política. Muitas vezes, parece-me que a pedagogia, as formas de articulação do pensamento e as disputas políticas da antiga militância social e sindical são inadequadas no campo da economia solidária.

Muitas vezes, somos irritantemente prepotentes e vanguardistas. É mais fácil transplantar formas já antigas de organização do movimento social – verticais, baseadas na representação política e que, em minha opinião, não dão conta do conteúdo e do caráter da economia solidária, do que reinventar a organização, articular novas formas mais horizontais e democráticas.

Um debate interessante é se a economia solidária se constitui como alternativa ao capitalismo ou se ela é funcional ao mesmo. Sendo um movimento social com tantas potencialidades, militantes e assessores(as) desse campo já preencheram a economia solidária de normatividade. Assim, empreendimentos da economia solidária são sementes do novo, fraternos, abertos, autogeridos, uma nova cultura, põem em questão a mais-valia, são a mais preciosa trincheira na luta contra o capital, fazem uma assembléia por mês etc, etc, etc. Freud chamaria de projeção.

Não seria a economia solidária um “vir a ser”, nas palavras de Leonardo Boff? Creio que sim, quem vai determinar o caráter transformador ou não da economia solidária é o povo, que nela se organiza num lento processo de amadurecimento histórico.

Mas e a transformação da sociedade? E a construção do socialismo? Como assessores(as), temos que compartilhar dessa paciência histórica que, como disse Tolstoi, é a parteira da história. Caso contrário, estaremos desposando aquela noção ultrapassada do leninismo, segundo a qual a consciência vem de fora da classe trabalhadora para dentro dela, num esquema cruel: os empreendimentos são a matéria-prima da transformação social e nós, assessores(as), temos a verdade de classe.

Uma vez, Dom Paulo Evaristo disse que as metrópoles são o grande desafio para a organização popular. A cidade carrega particularidades e complexidades tremendas. Nas grandes cidades, a economia solidária tem sido um viveiro de iniciativas criativas que vão desde as empresas recuperadas até os pequenos grupos informais de artesanato, passando pelas cooperativas populares.

Ou seja, na economia solidária está amadurecendo uma prática de trabalho com grupos populares em grandes aglomerações humanas, ela tem enfrentado o desafio com graus variáveis de êxito e isto precisa ser mais discutido, especialmente pelas organizações de formação e assessoria.

No enfrentamento desse desafio, soluções criativas têm se consolidado, dou o exemplo das ITCPs – com atuação fortemente urbana e no setor de serviços –, que fizeram a releitura do conceito americano de “incubagem de empresas”, forçando nossa universidade a se perguntar sobre a utilidade, para os(as) mais empobrecidos(as), do conhecimento ali gerado.

Portanto, a economia solidária constitui-se, atualmente, em um movimento social marcado pela horizontalidade e emergência de atores sociais antes alheios ao debate econômico e à militância tradicional. Nesse emergir, questões se colocam às formas de organização dos movimentos sociais em nosso país. Todas elas, porém, ainda estão em pauta em um debate importante para a sociedade e para os setores populares.

*Sociólogo, técnico da Cooperação e Apoio a Projetos de Inspiração Alternativa (Capina)