Está afirmado em lei federal que as uniões homoafetivas constituem entidade familiar.
A Lei 11.340/06, a chamada Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica contra a mulher, modo expresso, enlaça as relações homossexuais. Isto está dito no seu artigo 2º: “Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual […] goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”. O parágrafo único do artigo 5º afirma que independem de orientação sexual todas as situações que configuram violência doméstica e familiar.
No momento em que é afirmado que está sob o abrigo da lei a mulher, sem se distinguir sua orientação sexual, alcançam-se tanto lésbicas como travestis, transexuais e transgêneros que mantêm relação íntima de afeto em ambiente familiar ou de convívio. Em todos esses relacionamentos, as situações de violência contra o gênero feminino justificam especial proteção.
No entanto, a lei não se limita a coibir e a prevenir a violência doméstica contra a mulher independentemente de sua identidade sexual. Seu alcance tem extensão muito maior. Como a proteção é assegurada a fatos que ocorrem no ambiente doméstico, isso quer dizer que as uniões de pessoas do mesmo sexo são entidade familiar. Violência doméstica, como diz o próprio nome, é violência que acontece no seio de uma família.
Diante da expressão legal, é imperioso reconhecer que as uniões homoafetivas constituem uma unidade doméstica, não importando o sexo dos parceiros. Quer as uniões formadas por um homem e uma mulher, quer as formadas por duas mulheres, quer as formadas por um homem e uma pessoa com distinta identidade de gênero, todas configuram entidade familiar. Ainda que a lei tenha por finalidade proteger a mulher, fato é que ampliou o conceito de família, independentemente do sexo dos parceiros. Se também família é a união entre duas mulheres, igualmente é família a união entre dois homens. Basta invocar o princípio da igualdade.
A partir da nova definição de entidade familiar, não mais cabe questionar a natureza dos vínculos formados por pessoas do mesmo sexo. Ninguém pode continuar sustentando que, em face da omissão legislativa, não é possível emprestar-lhes efeitos jurídicos.
O avanço é muito significativo, pondo um ponto final à discussão que entretém a doutrina e divide os tribunais. Sequer de sociedade de fato cabe continuar falando, subterfúgio que tem conotação nitidamente preconceituosa, pois nega o componente de natureza sexual e afetiva dos vínculos homossexuais. Com isso, tais uniões eram relegadas ao âmbito do Direito das Obrigações, sendo vistas como um negócio com fins lucrativos. No final da sociedade, procedia-se à divisão de lucros mediante a prova da participação de cada parceiro na formação do patrimônio amealhado durante o período de convívio. Como sócios não constituem uma família, as uniões homoafetivas acabavam excluídas do âmbito do Direito de Família e do Direito das Sucessões. Esta era a tendência majoritária da jurisprudência, pois acanhado é o número de decisões que reconheciam tais uniões como estáveis.
A eficácia da nova lei é imediata, passando as uniões homossexuais a merecer a especial proteção do Estado (CF, art. 226). Em face da normatização levada a efeito, restam completamente sem razão de ser todos os projetos de lei que estão em tramitação e que visam a regulamentar, a união civil, a parceria civil registrada, entre outros. Esses projetos perderam o objeto uma vez que já há lei conceituando como entidade familiar ditas relações, não importando a orientação sexual de seus partícipes.
No momento em que as uniões de pessoas do mesmo sexo estão sob a tutela da lei que visa a combater a violência doméstica, isso significa, inquestionavelmente, que são reconhecidas como uma família, estando sob a égide do Direito de Família. Não mais podem ser reconhecidas como sociedades de fato, sob pena de se estar negando vigência à lei federal. Conseqüentemente, as demandas não devem continuar tramitando nas varas cíveis, impondo-se sua distribuição às varas de família.
Diante da definição de entidade familiar, não mais se justifica que o amor entre iguais seja banido do âmbito da proteção jurídica, visto que suas desavenças são reconhecidas como violência doméstica.
União gay perto da legalidade
Justiça passa a considerar afetividade na aliança entre pessoas do mesmo sexo como pressuposto para constituição de família
O reconhecimento da união entre homossexuais está cada vez mais próximo da realidade. A união entre pessoas do mesmo sexo ainda não é, com amparo em leis, considerada como casamento ou união estável, pois em ambos os casos, requer-se diversidade de sexo. Mas decisões judiciais, inclusive de Goiás, reconhecem que a união entre homossexuais é baseada em afeto e, por isso, uma forma de se constituir família. Exemplo disso é a decisão da juíza Maria Luiza Póvoa, que, no início deste mês, reconheceu a competência da 2ª Vara de Família, Sucessões e Cível de Goiânia para julgar ação de reconhecimento de união estável entre homossexuais. No entendimento da magistrada, o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo não deve ser tratado como um negócio, mas, sim, como uma sociedade ligada ao afeto.
Alguns tribunais, como o do Rio Grande do Sul, já possuem julgados que reconhecem a união homossexual como união estável e permitem, a exemplo da decisão dada por Maria Luíza, que tais ações sejam apreciadas nas varas especializadas em direito de família, e não nas varas cíveis. A magistrada ressalta que não poderia dar tratamento para união entre homossexuais em uma vara cível, porque esta é de juízo obrigacional, contrato. Salienta que o desejo atual é tratar a união entre pessoas do mesmo sexo como um negócio, uma sociedade de bens materiais e não uma sociedade ligada ao afeto. A exemplo da união estável, que, até a chegada da Constituição Federal, em 1988, era realizada e tratada como se fosse uma questão de negócio, direito obrigacional fora da Vara de Família.
Segundo Maria Luíza, a tendência é evoluir na questão das uniões chamadas pelos Tribunais do Rio Grande do Sul de homoafetivas (relação de afeto entre pessoas do mesmo sexo). Para isso, seria necessário iniciativa do legislador. Mas, enquanto a legislação não vem, o Judiciário se antecipa. Observa que o artigo 226 da Constituição Federal menciona a família advinda do casamento, reconhece aquela constituída pela união estável e também compreende como entidade familiar aquela formada por qualquer dos pais e seus descendentes. “Todavia, o referido artigo não é taxativo. O operador do Direito deve fazer uma interpretação mais ampla para assim incluir outras possíveis formas de se constituir família”, destaca.
Maria Luíza explica que, ao proferir a decisão, nada mais fez que obedecer um comando constitucional que é a lei maior. Ressalta que, antes da chegada da Constituição Federal, em 1988, o Direito de Família era uma madrasta má, onde se entendia que família era sinônimo apenas de casamento. Hoje, a Carta Magna é uma mãe afetuosa para o Direito de Família e tem como princípio maior o afeto. Por isso, segundo a magistrada, sob a ótica civil constitucional não se concebe buscar culpa para fins de casamento e tão pouco discriminar pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo. “Qualquer lei que ferir nossa Constituição Federal será inconstitucional”, diz.
A magistrada salienta que, devido aos princípios maiores da Constituição, ou seja, os da solidariedade, da dignidade e da igualdade, se vive na atualidade a importância da pessoa humana. E o indivíduo, em qualquer condição, tem igual proteção legal. Declara que a Carta Magna traz forma para o julgador trabalhar extremamente rica, onde o direito nunca esteve tão social como agora. Porque o direito é feito para as causas do homem e o juiz não deve entender somente o teor da lei seca. Tanto que o novo Código Civil é cheio de cláusulas gerais. É o código dos juízes, para que adéqüem a situação ao fato concreto.
O conceito de família atual é mais voltado para o fator da afetividade do que para a genética, acredita o presidente da Associação Goiana de Gays, Lésbicas e Transgêneros (AGLT), Léo Mendes. Ele pondera que a Justiça, por meio de decisões que aceitam casais que não são héteros, acaba com o preconceito. A expectativa, segundo Léo, é de que o mais breve possível os direitos dos homossexuais sejam plenamente reconhecidos e que não demore 25 anos, como ocorreu com a questão do divórcio.
O presidente da AGLT frisa que a decisão de Maria Luíza Póvoa significa um avanço para Goiás. Salienta que a magistrada demonstrou sensibilidade em relação à questão e tratou o assunto como realmente é, ou seja, uma relação de afetividade. “Casais homossexuais têm a mesma porção de afetividade que outros casais”, diz. Léo Mendes diz ainda que as Varas de Família deveriam tratar, além da união estável entre pessoas do mesmo sexo, da separação destes casais. Comenta que a tendência é para que seja desta forma, tratar a homoafetividade como realmente Direito de Família.
Procuradora dá aval à decisão de juíza goiana
A procuradora do Ministério Público de Goiás (MP-GO), Ana Cristina Peternella, concorda com o entendimento da juíza Maria Luíza Póvoa de que compete às Varas de Família ações de reconhecimento de união estável entre homossexuais. Professora de cursos preparatórios durante seis anos na área de Direito de Família, a procuradora salienta que a Constituição Federal fala em família, mas não especifica o tipo. Para ela, a questão de sexualidade não é o que define família, afinal pode se constituir uma família somente de irmãos, entre avós e netos, etc. “O que demarca a família é o afeto”, diz.
Segundo Ana Cristina, dizer que não é família uma relação entre pessoas do mesmo sexo é uma forma de discriminação. A diferença é que não se trata de união entre homem e mulher, mas existe também, entre homossexuais, projeto de vida e, somente em razão da orientação sexual diversa, não podem sofrer restrições de direito. Frisa que o operador do Direito tem de dar solução e não pode alegar que não existe lei para os casos. As uniões homossexuais são fato e não é porque não existe lei que vão deixar de existir. As decisões têm de ser justas e se valerem da Constituição Federal e dos princípios gerais do Direito. Aponta ainda que os magistrados não podem decidir vinculados às suas próprias opções sexuais ou religiosas, diante do que acham ser moral, pois esta é uma esfera pública e não privada.
Declara que, conforme estudiosos do Direito de Família, é competência da Vara de Família julgar ações de união homossexual. A homossexualidade sempre existiu, não tem como negar. A Constituição Federal veda qualquer forma de discriminação e, no campo legislativo, a opção religiosa é respeitada, mas a sexual ainda sofre discriminação. Para Ana Cristina, temos muito o que caminhar, mas o reconhecimento dessas uniões pelo ordenamento positivo (escrito na lei) é inevitável. “A sociedade deve ser mais tolerante e aceitar que existem diferenças, mas que ninguém deve ser discriminado por isso”, conclui.
JUSTO – Maria Luíza considerou a decisão como justa e devida, porque os homossexuais não podem ser tratados de forma marginalizada e qualquer discriminação afrontaria a Constituição Federal. “Nada mais fiz que a justiça. É uma decisão verdadeira, porque o ordenamento jurídico não pode fechar os olhos para a realidade”, diz. A ação, proposta por um homossexual que foi excluído da lista de herdeiros por iniciativa dos filhos de seu companheiro, havia sido distribuída, primeiramente, para a 1ª Vara Cível de Goiânia. O juiz Lusvaldo de Paula Silva declinou do feito com base em jurisprudência e sob o entendimento de que a competência para apreciar e julgar ação declaratória de sociedade de fato – mesmo entre homossexuais – é das varas de família. A decisão é passiva de recurso.