Fonte: Maurício Hashizume, para Carta Maior
O papel da luta feminista na “desnaturalização” (não aceitação como fenômeno inexorável) da discriminação de gênero é fundamental e complementar ao combate de outras formas de opressão existentes na sociedade.
Imagine que a humanidade fosse uma laranja. Suponha então que essa “laranja” tenha sido partida ao meio. Na seqüência, uma das metades passaria a ser considerada como o todo e a outra metade seria descartada. O feminismo representaria, dentro desse esquema explicativo, o movimento de fortalecimento da metade descartada da “laranja” que ajuda a recuperar o universal, desvendando relações de poder, tentando restabelecer valores como igualdade e justiça.
A sintética explicação dada pela paraguaia Line Bareiro, do Centro de Documentação e Estudo (CDE), sintetizou o conteúdo das apresentações do painel “Gênero, Poder, Conhecimento e Justiça”, na noite desta quinta-feira (24), dentro da programação da IV Conferência Latino-Americana de Ciências Sociais.
O papel da luta feminista na “desnaturalização” (não aceitação como fenômeno inexorável) da discriminação direcionada às mulheres se dá, segundo Line, em diversos aspectos. Está na raiz, por exemplo, do enfrentamento aos fundamentalismos. Para ela, o feminismo é hoje um dos pilares do Estado Laico e porta-voz do pluralismo religioso e político, na medida em que subverte a idéia de povo escolhido ou classe social acima das outras.
O movimento também se relaciona com questões fundamentais para a sociedade como a divisão entre público e privado. O público, vinculado ao poder masculino, pode aprisionar o feminino no privado “do lado de dentro da porta de casa” (como nos casos de violência doméstica). Também a questão do homem produtor e da mulher reprodutora permanece como núcleo duro da discriminação e da desigualdade de gênero.
Outra característica marcante do feminismo, destacou a pesquisadora do Paraguai, é a capacidade de diálogo com outros conceitos explicativos da sociedade. “O gênero é como a segunda ou a terceira filha. Nunca pretende a exclusividade”. Na opinião dela, aliás, o combate aos sistemas de dominação que oprimem as mulheres na América Latina só avançará exatamente se houver união com outras relações de poder como a de classe, de etnia e de raça.
Magdalena Valdivieso, do Centro de Estudos da Mulher da Universidade Central da Venezuela (CEM/UCV), assinalou que a teoria feminista ainda não está sendo transferida na análise, por exemplo, da questão do desemprego informal (como as mães cuidarão dos filhos em atividades econômicas desenvolvidas nas ruas?). Ela denunciou ainda o espaço científico limitado (discriminação de função e de hierarquia) e a exclusão das mulheres nas redes tecnológicas de informação, já que precisa se dedicar a atividades corriqueiras e físicas para o provimento da família.
A influência negativa da filosofia na consolidação da relação de poder que orpime as mulheres foi abordada por Guillermo Hoyos, diretor do Instituto de Estudos Sociais e Culturais (Pensar), da Universidade Javeriana de Bogotá. Natural da Colômbia, sociedade “autoritária e machista”, ele lembrou que a Enciclopédia Ibero-Americana de Filosofia, lançada em 1992, não se preocupou em trazer algo específico sobre a questão de gênero. Na visão de Hoyos, o discurso filosófico ajudou a determinar essa exclusão feminina ao consolidar conceitos “universais” sem levar em conta o recorte de gênero.
Busca do equilíbrio e demissão Entre o essencialismo biológico (representada pelo determinismo contido em “a anatomia é o destino” de Sigmund Freud) e o essencialismo social (“Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, de Simone de Beauvoir em “O segundo sexo”), Heleieth Saffioti, ex-professora de pós-graduação de ciências sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), defendeu o equilíbrio para o entendimento do ser humano integral (a “laranja” toda, na metáfora utiliza por Line Bareiro). Entre as diversas contribuições, a estudiosa destacou o legado feminista do anticartesianismo e a abertura para a “construção e assassinato” de subjetividades, luta central do feminismo em defesa do universal.
Especialista no tema, Heleieth foi demitida no início deste ano depois de publicar artigo defendendo a descriminalização do aborto. Ela trabalhava na PUC-SP desde 1989. A Arquidiocese de São Paulo, que administra a faculdade, associou a demissão, na época, ao programa de “enxugamento” da folha de pagamentos da instituição, envolvida em grave crise financeira, que resultou na dispensa de docentes. Para a acadêmica, o motivo foi outro. “Resisti aos 21 anos da ditadura militar, mas caí na malha da Opus Dei (prelazia pessoal da Igreja Católica que prega e representa valores conservadores)”.