Por Georgia Haddad*
Começo este artigo relatando um encontro com Naine Terena, pesquisadora e produtora cultural, e coordenadora do projeto Territórios Criativos Indígenas, uma parceria entre o Ministério da Cultura e aUniversidade Federal do Mato Grosso (UFMT), voltado a criação de um arranjo produtivo local de economia da cultura junto a quatro povos indígenas do Mato Grosso – Umutina, Chiquitanos, Xavantes e Bakairi. Do turismo cultural às biojoias, cada povo decidiu internamente quais bens culturais gostariam de promover, recebendo consultorias e acompanhamento para desenvolver as cadeias produtivas elencadas.
Terena me contava do processo de cada etnia nas decisões sobre o processo produtivo, de distribuição, de comercialização e de gestão da riqueza gerada. Cada grupo precisou escolher como lidar com os recursos e processos, seja por meio de um fundo coletivo, compras coletivas ou recursos individuais, além de pensar a gestão do empreendimento que inclui questões sobre como precificar, ou como organizar o trabalho de forma coerente ao modo de vida de cada comunidade (1). Esta discussão abriu um espaço importante nas aldeias para refletir sobre valores, desejos, percepções, necessidades individuais e coletivas a partir da comercialização de um bem ou serviço cultural com alto valor simbólico.
Esse é um aspecto de suma importância a ser levado em conta pelas políticas públicas quando falamos em economia da cultura, principalmente quando em interface com povos e comunidades tradicionais. Se autogestão, trabalho associado e cooperativo são princípios básicos da economia solidária, a economia da cultura, ou ao menos aquela que se propõe diversa, democrática e inclusiva, e acima de tudo, provocadora, tem muito a aprender sobre as tecnologias sociais já praticadas na Ecosol enquanto estratégia e ética de intervenção. A citação a Viveiros de Castro no início deste texto vem no sentido de contemplar os valores da tradição e da inovação que caracterizam a literatura e o entusiasmo de alguns grandes pensadores que refletem sobre o Brasil, além de outros tantos que não escrevem, mas militam, lutam e fazem diariamente movimentos neste campo.
É com alegria e sentindo-me honrada que recebi o convite da Unisol Brasil para escrever este pequeno texto sobre políticas públicas culturais e economia solidária, ocasião em que posso reafirmar minha visão sobre o valor da cultura como direito de todos – conforme previsto na constituição – e como eixo fundamental da cidadania, da democracia e do desenvolvimento econômico do país. O Brasil tem todas as possibilidades de deslocar o eixo nos debates sobre desenvolvimento no mundo ao projetar futuros mais inspiradores e, acima de tudo, mais participativos, democráticos e plurais, sendo a cultura e a diversidade cultural elementos centrais dessa discussão.
Políticas Públicas – Cultura – A história da cultura como objeto de teoria e prática de políticas públicas é um percurso relativamente recente, sendo sua institucionalização uma característica dos tempos atuais. No plano internacional, segundo a pesquisadora e presidente da Fundação Casa Rui Barbosa, Lia Calabre (2), a criação em 1959 do Ministério de Assuntos Culturais da França, notadamente um país pioneiro no discurso e na prática das políticas culturais, foi um marco dessa institucionalização contemporânea. O Ministério da Cultura no Brasil foi criado apenas em 1985, e logo em 1990 voltou ao status de Secretaria de Cultura, mas dessa vez dentro da Presidên- cia da República e não mais da Educação.
Foi retomado como Ministério dois anos depois, no governo de Itamar Franco, o que não garantiu uma política cultural estruturante ou propositiva ao país, já que a cultura sequer era encarada como um direito, prevalecendo a lógica do estado mínimo e da privatização da política cultural por meio das leis de incentivo. Foi o ministro Gilberto Gil e seu predecessor Juca Ferreira que em 2003 inauguraram o discurso antropológico da cultura, abrindo assim o campo de atuação das políticas culturais e promovendo o surgimento da dimensão econômica da cultura enquanto discurso institucional. Segundo o poeta e pesquisador Pedro Tierra, citado por Lia Calabre em seu texto Políticas Culturais no Brasil: balanço e perspectivas, o programa de governo de Lula (2003) já trazia uma proposta de uma economia da cultura que abrangia tanto a “indústria do entretenimento como a produção e difusão das festas populares e objetos artesanais”, uma narrativa que destaca a capacidade de geração de “ativos econômicos indepen- dentemente de sua origem, suporte ou escala”.
É certo que hoje os produtos, processos e serviços culturais são vistos também por meio da sua dimensão econômica, tanto pelo Estado quanto pelos agentes culturais, sem, é claro, deixar de ser um campo em disputa pela sua complexidade e amplitude e a singularidade dos valores intangíveis que esta economia opera. Em sua apresentação na Cúpula Mundial de Artes e Cultura do Chile em 2014, a pesquisadora e consultora da UNESCO, Avril Joffe, defendeu a Economia da Cultura como forma de colocar a cultura de volta ao coração da economia. Em sua exposição ressaltou ainda a necessidade de posicionar o com- mons no centro das discussões das políticas de desenvolvimento, reconhecendo que as pessoas possuem necessidades e identidades coletivas que o mercado não preenche. “Não somos simplesmente vendedores ou consumidores”, afirmou a pesquisadora sul-africana.
Ou, como diria Françoise Benhamou em seu livro ‘A Economia da Cultura’, estaríamos falando não de uma subdisciplina nova da economia, mas de um campo fecundo para a “reflexão sobre as fronteiras da ciência econômica e a legitimidade de atravessá-las” (3). Cabe fazer a ressalva de que isso não significa que não devemos competir no mercado global com nossos bens e serviços culturais, mas que enquanto políticas públicas de fomento, financiamento, formação e acesso, podemos e devemos experimentar e investir em modelos de negócios alternativos, outros paradigmas de modelos de produção, distribuição e comercialização.
Economia da Cultura e Economia Solidária – Segundo informações do Cadastro Nacional de Empreendimentos Econômicos Solidários (CADSOL) gerido pela Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego (SENAES/MTE), foi constatado que dos mais de 20 mil empreendimentos identificados, 33% declaram atuar diretamente no campo cultural. Ainda, por meio do relatório de avaliação do Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas Populares (PRONINC) vê-se que a grande maioria dessas incubadoras possuem empreendimentos considerados culturais, notadamente com destaque ao artesanato, confecção e moda e produção artística. Somados, os setores culturais são aproximadamente 35% dos empreendimentos levantados pela referida pesquisa.
O que vemos, portanto, é que existe um significativo número de empreendimentos econômicos que atuam no campo da produção de bens e serviços culturais que já possuem relação com políticas públicas ou organizações de economia solidária e, poderíamos inferir, por consequência, aos seus princípios e éticas produtivas e relacionais. Por outro lado, existem milhares de empreendimentos que atuam no campo cultural e que demandam ações específicas de fomento e regulação dos seus processos econômicos, sendo ainda o acesso às políticas públicas uma barreira considerável. Podemos dizer que falta aos empreendedores da cultura não familiarizados com as práticas da economia solidária, o conhecimento de formas alternativas de organização tais como autogestão, cooperativas e associações, das vantagens de ser dono dos meios de produção, de aproximar oferta e demanda e de reposicionar a lógica da circulação por meio da atuação em rede. Optei por não me aprofundar aqui no histórico institucional entre as políticas públicas de economia da cultura e economia solidária(4).
Sobre esse assunto sugiro aguardar a tese de doutoramento da pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Luana Vilutis, que está no prelo e sai ainda este ano. Limito-me apenas a provocar os gestores, agentes culturais e empreendedores, eu inclusa, com- prometidos com a transformação social, entusiastas das novas ferramentas e oportunidades abertas com a revolução digital e sabedores da riquíssima diversidade cultural brasileira. Provoco para que não desistamos de promover mais espaços de diálogo, reflexão e prática conjunta, com vistas a desenvolver tanto a economia solidária, quanto a economia da cultura, contabilizando o percurso dos amadurecimentos e das complementaridades de ambos os movimentos.
Não podemos descartar o fato de que estamos diante de algo relativamente novo no tempo histórico e que necessitamos de uma abertura permanente às novas invenções humanas que possam aprimorar e ampliar nosso campo de atuação. Como exemplo podemos citar determinadas ferramentas da chamada economia colaborativa, como a programação de plataformas que aproximam demanda e oferta e que poderiam ser apropriadas, ou as plataformas de financiamento coletivo, que ainda atuam pouco com os empreendimentos solidários, mas que potencialmente podem vir a ser fonte alternativa de captação de recursos. Enfim, que possamos a partir de ações mais integradas, e esforços conjuntos, promover a inovação cidadã que, no âmbito da cultura e da economia solidária, ocorre de forma processual, ou seja, equaliza sua potência ao seu território, seja ele uma comunidade, um bairro, uma cidade, ou uma rede virtual, produzindo valor social antes de valor de mercado.
* Diretora de Gestão, Empreendedorismo e Inovação da Secretaria de Políticas Culturais do MinC.
Fonte: Unisol Brasil