Fonte: https://storify.com/regica/agroecologia-e-produc-o-de-agua-por-que-n-o-invest

Estamos vivendo uma crise hídrica sem precedentes, não só no estado de São Paulo como em todo o Brasil. As soluções apresentadas têm principalmente foco no consumidor, propondo uma economia por meio do “fechamento de suas torneiras e chuveiros”, ou ainda na busca de águas mais subterrâneas, com obras de alta complexidade tecnológica e que envolvem bilhões de reais, incluindo transposições e tratamentos complicados para purificar a água.

É evidente que medidas de estímulo ao uso racional da água (economia, reuso, captação de água de chuva e redução nas perdas do sistema) são extremamente importantes e deveriam ser uma constante nas estratégias de gestão desse recurso, e não serem implementadas somente no momento da maior crise de abastecimento de água de todos os tempos. Mas elas não são suficientes.

A pergunta que deve ser feita é se as grandes obras que estão sendo propostas darão conta do necessário abastecimento de água. Os governantes não anunciam soluções efetivas para a produção de água, contando mais com a “benevolência de São Pedro”. Será que as obras propostas não acabarão gerando impactos no já frágil equilíbrio do ambiente em que serão construídas? Como alerta, o Movimento Aliança da Água chama atenção para a ausência no pacote de medidas proposto pelo governador de São Paulo para a Presidência da República de “qualquer menção sobre a recuperação e recomposição dos mananciais existentes, incluindo a restauração florestal, a ampliação de parques e áreas protegidas e o pagamento por serviços ambientais”, e ainda programas de incentivo e apoio à recuperação de todas às APPs (Áreas de Proteção Permanente, ou matas ciliares) de todas as propriedades rurais, reservatórios e mananciais; programa de fiscalização efetiva nas áreas de mananciais, a fim de evitar ocupações e desmatamentos irregulares; estímulo a práticas que promovam o aumento da permeabilidade do solo nas áreas rurais e urbanas, entre outras ações. Tampouco se considera o papel do desmatamento e da mudança no regime de chuvas relacionadas às mudanças climáticas. Por que também não se ouve falar em agricultura nas iniciativas? E qual modelo de agricultura poderia ajudar a produzir efetivamente água? Por que as políticas ambientais são sempre colocadas de lado na maioria dos programas de governo?

A AGRICULTURA QUE CONTRIBUI PARA O PROBLEMA DA CRISE DE ÁGUA

Uma das principais atividades do país, a agricultura industrial para a produção de commodities como soja, milho, eucalipto, cana de açúcar, assim como os pastos da pecuária extensiva também tem grande parcela de responsabilidade na grave crise hídrica atual, sobretudo em razão do modelo tecnológico adotado, com manejos que privilegiam, em sua maioria, a monocultura extensiva, o uso massivo de agroquímicos, a mecanização em larga escala, a ausência temporária de cobertura no solo, e ainda o uso de fogo em algumas situações.

Tais práticas podem causar impactos negativos nos mananciais, como a sua contaminação e até o seu esgotamento, pois a disponibilidade de água nas bacias hidrográficas tem estreita correlação com a capacidade de infiltração de água no solo.

Em um sistema extensivo de monocultivo com uso frequente de adubos sintéticos de alta solubilidade, agrotóxicos e máquinas agrícolas, a vida microbiológica no solo fica desfavorecida, impedindo os micro-organismos de formarem grumos (estrutura) com suas secreções. Estes grumos são indicativos de solo íntegro, fértil e permeável. Assim, o resultado do manejo “convencional” são solos esfarelados, sem grumos, que se compactam facilmente quando úmidos, formando duras lajes que impedem a água de penetrar – no caso de solos mais argilosos, ou desertos de areia solta – no caso de solos mais arenosos.

É também grave problema que afeta os recursos hídricos a contaminação por agroquímicos – tanto pesticidas quanto resíduos de adubos sintéticos. Estudo recente sobre saneamento básico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constatou que os resíduos de agrotóxicos são a segunda principal fonte de contaminação das águas brasileiras, atrás apenas do esgoto sanitário. Os agrotóxicos se mostraram mais impactantes até do que os despejos industriais e de atividades mineradoras.

Mesmo com as ditas “boas práticas agrícolas”, a agricultura convencional pode causar danos. Um bom exemplo é o plantio direto. Prática amplamente difundida no País, que consiste em deixar depositada sobre o solo, como proteção, a palhada da cultura recém-colhida, contribui para o aumento da infiltração da água no solo. Porém, como ela é dependente do uso de herbicidas, também causa danos ao contaminar os aquíferos em profundidade.

O problema da agricultura convencional extensiva é também a formação dos bolsões de ar quente que espanta a chuva, é o desperdício da chuva que não consegue infiltrar no solo, é a emissão de CO2 provocando o aquecimento planetário, é a perda da biodiversidade que sustenta a vida no planeta, é a erosão que assoreia os rios e, por último, a contaminação química das águas que ela não produz. Há de se destacar também os impactos dos agrotóxicos relatados como possível causa de diversas doenças em inúmeros estudos. Além disso, não podemos deixar de mencionar que a intensa mecanização dos campos, aliada à crescente concentração da posse da terra, estimula o êxodo rural, propiciando que os camponeses se instalem nas cidades, muitas vezes em moradias precárias, sobrecarregando as redes de abastecimento urbanas, já defasadas em sua capacidade de atendimento e dependentes de fontes cada vez mais distantes para levar água à população.

AGRICULTURA AGROECOLÓGICA COMO SOLUÇÃO

Enquanto a agropecuária convencional não consegue conviver com as árvores, que precisam ser retiradas para permitir a pesada mecanização e o uso generalizado de herbicidas aplicados em área total, até de avião, um outro modelo agrícola – a agropecuária de base agroecológica – não só convive bem com as árvores como precisa delas.

Uma das necessidades absolutas para a manutenção do clima e do regime de chuvas, além do desmatamento zero, é a recuperação de ambientes degradados com intenso plantio de árvores. Conforme cita o pesquisador e cientista do INPE e do IPCC Antônio Nobre, “a tecnologia da floresta é insubstituível”. O cientista prêmio Nobel de 2007, Philip Fearnside, especialista do IPCC que há 45 anos alerta sobre o “efeito estufa”, também disse que “uma das consequências do desmatamento em grande escala da Amazônia seria menos água sendo transportada pelos ventos para o Sudeste durante a temporada de chuvas, o que reduziria a água das chuvas nos reservatórios da Cantareira”. Também a Dra Ana Primavesi, grande mestre e ícone da agroecologia, há muito tempo já alertava para aquilo que é relembrado em seu último livro “Pergunte ao solo e às raízes: “Embora se assegure que (..) o aquífero Guarani (…)possa abastecer São Paulo e Rio de Janeiro, já existem duas preocupações. A primeira é que a região de “recarga” deve ser protegida contra a compactação/impermeabilização dos solos. A segunda é que esta área de recarga não seja plantada com cultivos agrícolas que usam elevadas quantidades de NPK e agrotóxicos, inutilizando toda a água por contaminação. Também este aquífero depende de infiltração, isto é, da porosidade do solo. Certamente, se o solo for poroso e permeável para a água de chuva, o ciclo da água poderá se completar de novo, fazendo voltar os poços, as fontes e os rios.”

Alguns estudos vêm sendo realizados na tentativa de elevar a capacidade de infiltração de água no solo. Em Ubatuba, no litoral norte do Estado de São Paulo, por exemplo, pesquisa realizada por meio de parceria entre a Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati) e o Centro Nacional de Agrobiologia da Embrapa mostrou que o uso de leguminosas arbustivas dobrou a capacidade de infiltração do solo em menos de um ano. O uso dessas plantas proporcionou infiltração semelhante àquela que ocorria na área de Mata Atlântica preservada.

Também em Ubatuba, avaliações laboratoriais com cinco diferentes herbicidas, em cinco tipos de solos da planície litorânea, mostraram que, em todos os casos, o princípio ativo do pesticida atingira o lençol freático. Há estudos mostrando a grande diminuição de processos erosivos pelo uso do manejo agroflorestal em áreas declivosas.

Outras formas de planejamento e manejo dos recursos naturais nas unidades de produção agropecuária também podem contribuir para aumentar a produção de água e ainda funcionar como filtro para melhorar a sua qualidade. Tais técnicas estão todas na agroecologia, que propõe as bases científicas para o aproveitamento sustentável dos recursos naturais, incluindo a água, a partir dos conhecimentos das comunidades locais.

Dentro desse enfoque, a produção orgânica e os sistemas agroflorestais merecem destaque. Por meio do desenvolvimento de tecnologias apropriadas para o uso racional do solo, da água, da biodiversidade e do planejamento ambiental e econômico da propriedade rural, a agroecologia é uma importante ferramenta para proporcionar sustentabilidade para a agricultura e tirar do setor agrícola a pecha de mau utilizador dos recursos hídricos.

É importante lembrar que o reconhecimento da forte conexão entre a água, os sistemas de produção agropecuária e as comunidades rurais é uma tendência mundial que também vem ocorrendo no Brasil.

Destacamos aqui o exemplo de referência internacional do programa Cultivando Água Boa da Itaipu Binacional (maior geradora de energia elétrica do mundo) e parceiros que estimula a produção agroecológica com participação permanente envolvendo a atuação de mais de 2 mil parceiros, dentre órgãos governamentais, ONGs, instituições de ensino, cooperativas, associações comunitárias e empresas. Esta iniciativa recebeu diversos prêmios e prova que é possível compatibilizar desenvolvimento econômico com produção de energia, produção de água e preservação do meio ambiente.

Outras iniciativas também merecem destaques como o projeto Guarapiranga Sustentável, realizado em parceria entre as Secretarias Estaduais de Agricultura e do Meio Ambiente, ONGs e Prefeituras de 7 municípios da bacia da Guarapiranga tem como eixo a transição agroecológica do atual modelo convencional de agricultura praticado no manancial.

E ainda o Programa Produtor de Água (da Agência Nacional de Águas), de adesão voluntária, que prevê o apoio técnico e financeiro à execução de ações de conservação da água e do solo e também o pagamento por serviços ambientais (uma espécie de compensação financeira) aos produtores rurais que, comprovadamente contribuem para a proteção e recuperação de mananciais, gerando benefícios para a bacia e para a população, a exemplo do que ocorre no Município de Extrema (MG). Estas iniciativas pilotos precisam ser inseridas agora em uma política pública mais ampla e efetiva para que possam se consolidar.

É preciso, portanto, direcionar investimentos e esforços para resgatar e desenvolver tecnologias menos intensivas no uso de agroquímicos e mais intensivas no uso do conhecimento científico e do saber local para a compreensão das interações dos ecossistemas agrícolas. Esta demanda é ainda maior para o caso de áreas estratégicas para a produção da água e para a preservação da qualidade dos recursos hídricos – como áreas declivosas, nascentes e margens dos rios, áreas de recarga dos aquíferos e as planícies litorâneas.

O incentivo a modelos de produção agropecuária baseados na agroecologia e na produção orgânica é de grande necessidade para toda a sociedade brasileira interessada na preservação e conservação dos recursos naturais e da água, e na melhor qualidade de sua alimentação. Nesse sentido, o próprio novo Guia Alimentar para a população Brasileira, lançado no dia 5 de novembro de 2014 pelo Ministério da Saúde, dá grande importância às formas pelas quais os alimentos são produzidos e distribuídos, privilegiando aqueles cuja produção e distribuição seja socialmente e ambientalmente sustentáveis, o que é defendido também pelo movimento da Ecogastronomia. Tal incentivo depende diretamente do fortalecimento de órgãos colegiados que ampliem o diálogo da sociedade civil organizada com os governos, para estimular o planejamento integrado do setor agropecuário e a formação de novos arranjos interinstitucionais.

É importante que os governos escutem mais os órgãos colegiados, como conselhos municipais, comitês de bacias e câmaras técnicas, que seja retomado o órgão colegiado de Defesa das Águas; de forma a promover a transição de formas de produção e consumo equivocadas, porque baseadas no esgotamento dos recursos naturais, para formas sustentáveis. Para que as mudanças desejadas aconteçam, porém, é fundamental estimular ações participativas que fortaleçam o desenvolvimento da agroecologia e dos sistemas orgânicos de produção. Se houver investimento em uma produção sustentável e com uso integrado de recursos naturais, a agricultura certamente deixará de ser consumidora e passará a ser “produtora” de água.

Convocamos todos os níveis de governo, municipal, estadual e federal, bem como os representantes do legislativo e judiciário a apoiarem efetivamente o processo de produção agroecológica que traz solução objetiva para evitar a crise de abastecimento de água, energia e alimentação. A água é a essência da vida e acreditamos que o cenário de escassez que se configura não nos dará outra escolha a não ser a atuação sustentável.

Os integrantes dos movimentos sociais que assinam esta carta e entidades ambientalistas e agroecológicas de todo o Brasil estão à disposição para construção de saídas para esta crise e uma política pública com ações de curto, médio e longo prazos.

Ao governador do Estado de São Paulo cabe neste momento também se posicionar em relação ao PL 219/2014 (sobre o Programa de Regularização Ambiental – PRA das propriedades e imóveis rurais, criado pela Lei Federal nº 12.651/12, e sobre a aplicação da Lei Complementar Federal nº 140/11 no âmbito do Estado. E pelos motivos aqui expostos, os movimentos que apoiam esta carta se manifestam contrários a este PL.

Entender a alta tecnologia da convivência mais sustentável com a natureza há muito tempo tem sido apontada como a única saída se quisermos permanecer no Planeta Terra. O Brasil reunia toda uma biodiversidade e riqueza hídrica, que usamos, abusamos, degradamos e estamos destruindo. Agora não basta respeitar o que restou desse patrimônio, temos que recuperar a degradação e implementar emergencialmente iniciativas que promovam a produção de água e garantam melhor qualidade de vida, como prioridade absoluta de todos os setores da sociedade. Sem isso São Pedro não conseguirá nos ajudar!