Por José Coutinho Júnior
Da Página do MST
O período que precedeu o golpe militar foi marcado por intensas lutas sociais no campo. As Ligas Camponesas e os sindicatos rurais mobilizavam os camponeses para exigir que os direitos dos trabalhadores rurais fossem cumpridos.
Na esteira dessas mobilizações, o governo de João Goulart realiza diversas medidas que beneficiam os trabalhadores, além de anunciar que priorizaria a Reforma Agrária nas reformas de base, conjunto de medidas planejadas para garantir direitos sociais e desenvolver o país.
Pouco tempo depois de anunciar as reformas de base, João Goulart foi deposto por um golpe militar, apoiado pelos setores mais conservadores da sociedade. Para o jornalista e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Dênis de Moraes, a Reforma Agrária foi um dos pontos que mais incomodou as classes dominantes.
“Goulart apontou reformas de base em várias áreas, mas uma das que mais preocupava as classes dominantes eram as medidas em relação à Reforma Agrária e as grandes linhas para o desdobramento da democratização do campo”.
Em entrevista à Página do MST, Dênis de Moraes analisa o papel das lutas sociais no campo durante o governo Goulart, no período da ditadura militar e a diferença na luta pela terra daquele período com as de hoje. Confira:
Que fatores levaram ao surgimento das reformas de base?
Para entendermos a dimensão das medidas tomadas por Goulart, precisamos analisar a crise agrária da época.
Havia predominância absoluta do latifúndio: propriedades com mais de 1000 hectares representavam mais da metade do total do território agricultável. Os produtos agrícolas originários do latifúndio eram os principais itens da nossa pauta de exportação.
A luta de classes se intensifica, porque o lucro dos grandes proprietários rurais ultrapassava os limites, mas o arrocho salarial e as condições semifeudais que presidiam as relações sociais no campo revoltavam os setores mais mobilizados e conscientes dos trabalhadores rurais.
Ocorre um surto de mobilizações do campo que se materializou, no governo Goulart, no reconhecimento dos sindicatos dos trabalhadores rurais pelo Ministério do Trabalho.
Ele não foi só o homem que anunciou as principais reformas de base e se comprometeu a lutar por elas, ele tomou medidas para beneficiar os trabalhadores antes disso. Os benefícios da previdência social foram estendidos aos camponeses.
É no governo Goulart que é criada a Superintendência de Reforma Agrária (Supra) e se aprova o estatuto do trabalhador rural, uma espécie de CLT para os trabalhadores do campo.
Em relação às reformas de base, nenhum presidente foi tão longe no elenco de medidas para tentar conter o latifúndio e desapropriar terras improdutivas.
Ele mostrou consciência de que as terras devolutas da União deveriam ter uma destinação social para fixar o homem na terra, permitindo a pequena produção agrícola.
As reformas de base, no sentido do que elas representaram em grandes metas, continuam atuais porque simplesmente não tivemos até a presente data nenhum governo que se debruçasse com a coragem necessária ao problema do campo.
As reformas de base eram medidas estritamente capitalistas, ou representavam algo mais?
Temos que lembrar que o governo Goulart não era de esquerda. Era um governo que hoje podemos classificar de centro esquerda com viés progressista.
Mesmo não sendo de esquerda, e sem nenhum compromisso explícito para uma transição de caráter socialista, ele conseguiu avanços consideráveis, que governos posteriores que se apresentavam com plataformas socialistas, como foi o caso do inicio do governo Lula, não fizeram.
Esses avanços importantes do governo assustaram os setores conservadores, tanto na sociedade civil como nas forças armadas.
Goulart apontou reformas de base em várias áreas, mas uma das que mais preocupava as classes dominantes eram as medidas em relação à Reforma Agrária e as grandes linhas para o desdobramento da democratização do campo.
A burguesia em nenhum momento apoiou o governo Goulart?
O que ocorreu foi a ruptura de um pacto social que envolvesse a burguesia nacional, associada ao capital estrangeiro e ao imperialismo. Até 1963 uma parte da burguesia nacional tinha uma expectativa em relação ao governo.
Com o aprofundamento da concentração golpista, que penetrou de maneira muito forte em setores da classe média, no empresariado e no latifúndio, se configurou um quadro em que a animosidade contra as reformas de base se expandiu, apesar de ter apoio consistente de setores populares.
Os golpistas veem que o presidente precisava se apoiar cada vez mais nas classes populares e setores mais politizados da classe média e deixam patente que não haveria possibilidade de um pacto social que buscasse acomodar interesses divergentes, vendo na conduta do governo e na pressão organizada que crescia na sociedade ameaças aos seus privilégios e intentos de dominação política.
Por que a esquerda não se opunha fortemente à burguesia?
Uma das ilusões fundamentais da esquerda naquela fase foi a de que a burguesia poderia participar de uma aliança com os setores populares não só no sentido de assegurar a governabilidade, mas em ter um pacto de classes que permitisse um processo de transição para um país mais evoluído, menos desigual.
Foi uma ilusão grave, porque conduziu a uma ideia de que era possível conter a mobilização nas cidades e no campo para que não houvesse um quadro de acirramento da luta de classes, e com isso seria possível acomodar ou conciliar os interesses do trabalho e do capital.
Isso se revelou trágico, porque muito antes do golpe militar, a burguesia nacional estava onde sempre esteve: do lado do interesse do grande capital, da mercantilização generalizada. Parte da esquerda só na semana que antecedeu o golpe mostrou ceticismo no caráter de progressismo da burguesia nacional.
Qual foi o papel das Ligas Camponesas nesse período?
A trajetória das Ligas é um dos momentos mais significativos em termos de mobilização dos trabalhadores rurais do país. Esse movimento vem desde Juscelino Kubitschek, com o acirramento dos conflitos no campo e a brutalidade dos proprietários em não reconhecer os direitos elementares sociais, trabalhistas e previdenciais dos trabalhadores.
As Ligas representaram um momento extraordinário de convencimento, conscientização e organização de áreas importantes do meio rural, no sentido de fazer valer direitos no processo de enfrentamento cada vez maior dos grandes proprietários. Além disso, ocorria o processo de sindicalização dos trabalhadores.
A partir da influência cada vez maior da Revolução Cubana e de movimentos de libertação em outros países, as ligas radicalizavam seu ideário e métodos de ação política. Não foi uma radicalização negativa no sentido de atropelar o estado de direito democrático e a legalidade constitucional.
Mas a direita apresentava a mobilização dos trabalhadores rurais como uma quebra de princípios constitucionais, como se os trabalhadores não pudessem reivindicar condições e direitos básicos. Para a direita rural, os trabalhadores rurais eram como escravos, pois lhes eram negados de maneira quase absoluta os direitos.
Essa radicalização precisa ser analisada, pois em certos momentos as Ligas acreditavam ter mais poder do que de fato tinham. A partir de 1963, elas tem uma guinada à esquerda, com palavras mais revolucionárias, perdendo de vista que a sociedade vivia uma intensificação da luta de classes em um processo cada vez mais difícil, complexo e violento.
Antes do golpe, talvez as lideranças do movimento camponês tivessem perdido a bússola da correlação de forças. Consideravam que a balança pendia para o lado dos trabalhadores, quando o que existia era um cabo de guerra.
De um lado as forças dominantes, lideradas pelos grandes proprietários rurais, apoiados pelo conservadorismo e golpista; de outro o movimento dos trabalhadores rurais, tentando fazer cumprir seus direitos.
E os trabalhadores não dispõem dos recursos que a classe dominante tem. Ao lado dos proprietários estava a grande imprensa, que transformava as ligas e o sindicato em “adversários da democracia”, criminalizando o movimento, não diferente do que ocorre hoje em relação ao MST e outras organizações da sociedade civil que lutam pelos direitos dos trabalhadores.
Era uma disputa feroz e que pendia para o lado conservador, na medida que tinha apoio maciço dos meios de comunicação e do congresso nacional, muito conservador, que tornava difícil a aprovação de leis aos trabalhadores.
E depois do golpe, o que ocorreu com a luta no campo?
A história se concentra muito na repressão urbana, mas as Ligas Camponesas sofreram uma repressão barbárica, com prisões, torturas e perseguições das mais hediondas aos líderes. Os sindicatos rurais foram fechados, e os atos do presidente Goulart e da Supra anulados.
Esse processo não teve fim até a reabertura política, o que resultou numa involução de todo o processo de organização e mobilização feito pelas Ligas e sindicatos.
Por outro lado, assistimos ao fenômeno que resultou na versão mais perversa do agronegócio, que aumentou a concentração fundiária e preservou os interesses dos grandes proprietários. A entrada de capital estrangeiro nas atividades agrícolas do país encontrou na ditadura militar um estímulo e alavanca.
O processo pós golpe teve uma dupla violência, no sentido de desmantelar a organização dos trabalhadores do campo e suprimir os avanços em vigor no governo Goulart, além de permitir uma presença indiscriminada dos monopólios da terra, que já vinham de antes, mas que foram reforçados.
Hoje ainda há no Brasil alta concentração de terra, criminalização dos movimentos, forte presença do capital financeiro no campo… o que mudou do período da ditadura para cá?
A mudança mais benéfica é o surgimento de organizações que foram aos poucos recuperando os ideais das Ligas Camponesas e sindicatos rurais no sentido de conscientizar, organizar e mobilizar essa população tão desamparada, submetida a regimes de exploração no campo.
É doloroso reconhecer que mesmo os governos Lula e Dilma avançaram tão pouco nessa questão. Inclusive o governo Dilma investiu menos na Reforma Agrária do que o segundo governo FHC, o que é uma vergonha, uma demonstração de falta de prioridades.
Ao contrário, o agronegócio foi endeusado, a presença do capital estrangeiro tem sido incentivada.
A luta foi novamente posta como prioridade pelos trabalhadores, e não podemos negar que as necessidades e carências do campo estão postas perante a sociedade.
O que me parece ser um dramático mais do mesmo é verificarmos na segunda década do século XXI que grande parte das questões majoritárias que envolvem a concentração fundiária nesse país continuam intocadas.
A concentração de terras continua presente, com vertentes do agronegócio que não tem o menor compromisso com o país e, por incrível que pareça, merecem apreço por parte de partidos que antes defendiam a Reforma Agrária, que quando chegaram ao poder rasgaram suas biografias e passaram a se conciliar com esses interesses a pretexto de que isso é a “modernização no campo”.
A modernização não pode ser feita em detrimento das garantias e direitos que o trabalho precisa ter. Hoje criamos uma modernização de rentabilidade dos processos produtivos, mas nos conservamos na vanguarda do atraso em termos de proteção social e defesa dos direitos humanos no campo.
Se isso é muito triste de constatar, mais razões temos para lutar, mesmo que seja um longo e árduo processo. Milton Santos costumava dizer que nossa tarefa enquanto militantes sociais é ter a luta como valor central, e não podemos nos abater com esse cenário.
Pelo contrário, devemos nos fortalecer mais ainda apesar de todas as diversidades e obstáculos em uma luta que é essencialmente cidadã e civilizatória.
Outros países na América do Sul estão democratizando o campo, exercendo severo controle sob a produção agrícola, utilizando de medidas legais para atenuar, quando não modificar radicalmente, o problema da concentração do campo. Precisamos fazer o mesmo.
Você acredita que fatores como a repressão aos movimentos sociais, violência policial e campanha midiáticas a medidas mais progressistas do governo apontam para outra guinada conservadora na sociedade brasileira?
É difícil sustentar com elementos concretos a ideia de que a sociedade está se tornando mais conservadora, mas muitas observações podem ser comprovadas na realidade do país.
É fato que, desde a ditadura, o atual momento do Brasil seja o que há mais violência e repressão desde que terminou a ditadura. Isso é preocupante, porque mesmo num período democrático, uma série de direitos constitucionais são colocados em xeque por setores conservadores, que tem forte capacidade de influenciar a opinião pública pelos meios de comunicação.
A mídia não é a única responsável; o governo nada fez para democratizar as concessões públicas do país de rádio e TV, há uma inércia governamental que revela uma contradição enorme entre o discurso de alguns líderes da coalizão governamental.
O ex-presidente Lula, que sistematicamente se queixa das deturpações e mentiras dos meios de comunicação, nada fez concretamente, durante oito anos de governo, para reverter a concentração responsável pela prevalência dos valores irradiados pela mídia no imaginário social do país.
Vivemos em um tempo preocupante. Os avanços tem sido tímidos, há uma espécie de temor em enfrentar o conservadorismo da imprensa e do congresso, uma inércia em temas como a Reforma Agrária, saúde, educação, e todas as vezes que há uma iniciativa “menos tímida” para tentar resolver algum desses problemas, há uma reação completamente desproporcional por parte dos setores conservadores.
É preciso romper com essa cadeia de mentira, de medo, de ameaças que rondam propostas que representem avanços à população e de grandes questões. Buscar vontade política e coragem para enfrentar esse conservadorismo, mobilizando a sociedade, que não pode ficar passiva, atordoada diante do que acontece no país.
Temos que defender as liberdades democráticas e aplicar reformas de base, que possam rever o caminho do desenvolvimento de forma mais igualitária, mais justa e que coloquem a soberania nacional, a defesa dos recursos naturais, as identidades culturais do país a frente dos interesses mercantis.