Fonte: Análise de conjuntura da CNBB
Quando em 1949, George Orwell escreveu o romance “1984”, uma assustadora imaginação de como seria o futuro, talvez não soubesse que a obra seria considerada em pouco tempo um dos maiores clássicos da literatura mundial. O romance foi lido como uma crítica devastadora aos totalitarismos, de cujos terríveis crimes o mundo ainda tentava se recuperar quando o livro veio a lume. Passa
dos 64 anos da publicação do romance, a humanidade vive um formidável avanço científico-tecnológico com o advento da internet. As distâncias diminuem, o tempo se acelera, as ideias e pensamentos circulam numa velocidade pensável apenas na literatura e na ficção. As modernas tecnologias, entretanto, têm sido em grande medida instrumento de controle e arma de modernas estruturas econômicas e políticas.
É nesse contexto que se inscrevem as revelações de Edward Snowden, ex-consultor de inteligência da NSA (Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos), sobre os programas do governo americano para espionar globalmente a telefonia e a internet. Antes dele, mas na mesma direção, soma-se o fundador do WikiLeaks, Julian Assange.
Sem perder de vista a tentativa de monitoramento de milhões de pessoas, independente de nacionalidade e posição política, o sistema é parte de objetivos mais ambiciosos: obtenção de informações estratégicas para os interesses econômicos de grandes grupos e a serviço da geopolítica mundial dos EUA.
Outro aspecto da análise é que o que está em jogo, neste confronto entre um ex-espião e os Estados, a livre circulação da informação sob o nome de ideias, dados, saberes. Esse recurso imaterial é uma das maiores riquezas da humanidade. Abundantes e inesgotáveis, esses recursos foram escasseados pela sociedade capitalista para serem valorados em dólares. Sobre essa “propriedade intelectual” é edificada uma economia que representa bilhões e bilhões de dólares. Os “militantes”, por suas ações, estão ameaçando a promessa de novos ganhos.
A livre circulação da informação põe em dificuldade a essência do poder: a detenção monopolística do saber. As técnicas de comunicação e informações tornam obsoleto um paradigma essencial da democracia: a mentira ou razão do Estado em nome da incapacidade dos cidadãos para gerir a coisa pública. Hoje, o acesso dos cidadãos aos documentos e aos procedimentos dos governos permite controle e participação nas decisões políticas. Talvez esse modo mais aberto de governo seja uma resposta à crise da representatividade das democracias. A livre circulação das informações e das ideias põe em questão não somente as democracias e os dirigentes eleitos, mas também interesses econômicos consideráveis.
As fortes denúncias mobilizaram a imprensa internacional, os governos nacionais e a opinião pública de muitos países. Não obstante, foram recebidas com certa letargia por alguns governos, às vezes espantosamente se comportando como submissos a Washington. Governos de países europeus impediram que a aeronave, onde estava o Presidente da Bolívia Evo Morales pousasse para abastecer, por acreditar que nela também viajasse Edward Snowden. Este procedimento revelou arrogância com o mandatário boliviano e bajulação com os EUA.
As denúncias de Edward Snowden, ironicamente, colocam os EUA numa situação desconfortável perante a opinião pública internacional, visto que o denunciante encontra-se exilado na Rússia, nação em que, frequentemente, ocorre violação aos direitos humanos e histórica questionadora da hegemonia norte-americana. Alguns analistas internacionais têm se mostrado perplexos com a atitude resignada, captada em pesquisas de opinião pública, da maioria dos norte-americanos. Para estes, o combate ao terrorismo e a segurança do território são mais importantes que o direito à privacidade. Entende-se essa posição inserindo-a na cultura seguida aos ataques de 11 de Setembro de 2001.
Desde então os valores e direitos civis, que se tornaram referência para o mundo, são gradativamente vilipendiados por uma suposta ameaça terrorista. Esse verdadeiro pânico de alguma maneira tem sido manipulado por setores da elite da maior potência do planeta.
Em visita ao Brasil, o Secretário de Estado John Kerry disse que ações evitaram atentados terroristas pelo mundo. O ministro das Relações Exteriores, Antônio Patriota, por sua vez, cobrou dos Estados Unidos respostas sobre as denúncias de espionagem no Brasil para evitar que se forme uma “sombra na relação bilateral”.
A situação em tela abriu espaço para levar ao conhecimento mundial do imenso poder tecnológico de que dispõem os EUA e a total ausência de uma legislação supranacional que imponha limites ao Google e ao Facebook. Para o Brasil, o recado urgente é o de desenvolver políticas públicas de software e telecomunicações independentes para garantir a privacidade de seus cidadãos e os interesses nacionais em tempos de “guerras cibernéticas”