Por Secretaria Executiva do FBES (textos retirados da lista e_solidaria)
Segue abaixo alguns textos provocativos que ajudam a refletir e a interpretar sobre os recentes acontecimentos de mobilizações em massa pelo país, uma nova forma de ação social que merece atenção sobre seus caminhos e significados. Qual a relação dos mesmos com a autogestão? O que a economia solidária tem haver com isso?
Por AUGUSTO DE FRANCO (16/06/2013)
Participei de muitas manifestações de rua. A mais famosa ficou conhecida como “Passeata dos 100 mil”. Não eram assim tão espontâneas, nem convocadas peer-to-peer como algumas que, felizmente, vemos hoje. Eram articuladas centralizadamente ou descentralizadamente (quer dizer, multicentralizadamente), não distribuidamente (e se alguém ainda não entende essa diferença – entre descentralizado e distribuído – não poderá entender quase nada do que vou dizer aqui). Eu fazia parte, via-de-regra, de um desses centros. Meu objetivo e os dos meus camaradas não era evitar a violência e sim provocá-la. Queríamos desmascarar a ditadura militar para desestabilizá-la. Assim, queríamos que as forças repressivas reprimissem de fato violentamente as manifestações. Não éramos suicidas e não queríamos matar ninguém, mas um cadáver produzido pela repressão seria politicamente muito bem-vindo. Um cadáver era uma bandeira preciosíssima. Então nos organizávamos para o confronto, ou para desencadear o confronto. Íamos armados de vários objetos, desde coquetéis molotov, bombas caseiras, bolinhas de gude e rolhas (para derrubar os cavalos), forquilhas de pregos soldados para furar pneus… Enfim, nos preparávamos como quem vai para a guerra. Afinal, éramos militantes (e a origem da palavra diz quase tudo). Não éramos agentes da paz e sim da guerra.
No contexto da guerra não corríamos o risco apenas de levar cacetadas, ter a cabeça quebrada ou, eventualmente, vir a morrer em consequência de ferimentos infligidos no confronto com as tropas repressoras. Se fôssemos pegos – alguns de nós, pelo menos – seríamos presos e condenados, torturados ou mortos. Como fomos. A diferença para as manifestações de hoje – no Brasil e em vários países, pelo menos do ocidente – é que estávamos lutando contra uma ditadura. Tínhamos a legitimidade de quem estava lutando contra a autocracia. Mas embora falássemos em democracia frequentemente, não estávamos convertidos à democracia e, na verdade, não tínhamos a menor noção do que era democracia. Éramos analfabetos democráticos. Democracia era, para nós, um conceito instrumental, um recurso de agitação e propaganda. Democracia era a bandeira para derrubar a ditadura e depois, quando a ditadura fosse derrubada… bem, aí erigiríamos o nosso próprio governo: autocrático, sim, mas do-bem, de esquerda, dos que querem redimir a humanidade, salvá-la do capitalismo, da dominação, opressão e exploração das elites, da burguesia, daquele 1% (como se diz hoje) que comanda e controla nossas vidas (a vida dos 99%, do povo, do povão, dos dominados, oprimidos e dominados).
Os militantes e ativistas de hoje – em sua maioria (não todos) – não percebem tal diferença e confundem ditadura com democracia (sim, com esta sofrível democracia, já se sabe, limitada, formal e representativa, reinventada pelos modernos). Alguns, que resolveram adotar como símbolo a máscara do filme “V de Vingança” (2006), não apreenderam corretamente a metáfora do roteiro dos irmãos Wachowski: na história estava-se lutando contra um regime em crescente processo de autocratização, contra uma ditadura. Não, não captaram que não é tudo a mesma coisa. Que Madri não é Cartum, Nova York não é Pyongyang e São Paulo não é Teerã.
Às vezes penso numa anedota. Gostaria de entrar em contato com os caras que publicam manuais de Ação Direta para armar a militância, nos Estados Unidos e em vários países europeus, e agora também aqui no Brasil, para conversar com eles sobre como andam os processos que estão articulando em Pequim, Havana e Luanda… (risos e se só eu ri, haverá um problema).
Ah! Não estão? Parece que eles (ou algum deles) – tão ocupados em preparar a derrubada do capitalismo global em três dezenas de democracias formais – não têm mesmo muito tempo para se preocupar com as tenebrosas 50 ditaduras que remanescem neste século 21 e sob as quais ainda vivem bilhões (sim, mais de 2 bilhões) de pessoas. Deles não se ouve um pio sobre isso.
Mas neste ponto – a democracia -, curiosamente, não há grande diferença entre o que fazíamos nos nossos centros convocadores de outrora e o que faz boa parte dos centros de militantes ou ativistas que hoje querem convocar manifestações de massa. Sim, os de hoje, em sua maioria, também não têm a menor noção da democracia, embora – a despeito da consciência que não-têm – podem fazer parte, sim, como nós fizemos, de uma corrente de democratização.
Mas há, felizmente, outra diferença. Nós convocávamos mesmo, de modo mais centralizado do que distribuído, a massa: para arrebanhá-la, conduzi-la, instrumentalizá-la (sempre para um bom propósito, é claro), enquanto alguns de hoje (não todos, felizmente) imaginam tolamente que estão convocando, de modo descentralizado, as manifestações da multidão. É uma diferença, do ponto de vista da democracia, a favor dos de hoje. Nós, os de ontem, agíamos muito pior do que os de hoje. Embora os de hoje não saibam disso. E nem percebam que a sua impotência em convocar, organizar, instrumentalizar, liderar, conduzir, não é consequência de qualquer erro que estariam porventura cometendo: é apenas um sinal de que a estrutura da sociedade está configurando um ambiente mais favorável ao processo de democratização. Quanto menos eles – os militantes e ativistas adversariais – podem, mais pode a sociedade (quer dizer, a rede social).
Mesmo assim, alguma influência haverá, sobre as manifestações de rua de hoje, dos grupos que se preparam para a guerra. Não são todos, por certo. Talvez nem a maioria. Ainda bem. Mas bastam alguns grupos determinados a provocar a repressão policial violenta para desencadear um confronto de consequências imprevisíveis, provavelmente desastrosas. Eu mesmo (juntamente com outros) fiz isso, e várias vezes. Muitos poderiam fazer, se quisessem. Por exemplo, se as manifestações forem relativamente reduzidas, com até, digamos, 30 mil pessoas, precisa-se apenas de umas 30 pessoas (cada uma com 10 pessoas conhecidas no seu entorno) para fazer isso. Iniciada a espiral da violência, a coisa anda sozinha e corre solta. A indignação popular com a repressão policial-militar às manifestações de rua tende – sobretudo nas democracias formais, onde a polícia e o exército não podem matar abertamente as pessoas, a não ser quando isso é caracterizável como acidente derivado do confronto – a engrossar as manifestações. Quem não ligava para o assunto, passa também a se indignar. Milhares de novos manifestantes aderem aos protestos. Novos agentes provocadores surgem também, espontaneamente, em função da dinâmica que foi desencadeada. De 30 passam para 300, 3 mil… Se a violência continua, de parte a parte, pode-se desestabilizar até mesmo o regime político. E aí?
Bem, aí o poder, é claro, não vai para o povo como pensam os babacas e sim para os destacamentos que estiverem organizados para empalmá-lo: para alguém mais preparado para fazer isso (organizado top down, hierárquica e autocraticamente) do que aqueles ativistas desprecavidos de boa-vontade e, sobretudo, do que as pessoas que foram às ruas manifestar sua legítima indignação, comovidas por um senso de justiça e solidariedade. Se isso acontecer haverá um retrocesso no processo de democratização. Sim, estou descrevendo aqui a gênese de um processo de autocratização a partir de movimentos de massa. Pode? É claro que pode.
Isso não acontecerá, todavia, se multidões ocuparem as ruas. Quando centenas de milhares, milhões, saem as ruas, não há mais repressão possível. Mas multidões de pessoas conectadas – e formadas a partir de miríades de micromotivos diferentes (compondo uma grande murmuration) – não são massas arrebanhadas. Bem… aqui começa nossa conversa logo após o fim do (velho) mundo (único). Uma multidão de milhões não pode ser convocada centralizadamente, nem mesmo descentralizadamente. Ela acontece por um mecanismo distribuído próprio da rede.
Ela é a manifestação de uma fenomenologia da interação, um swarming (enxameamento). Felizmente, swarmings – como o que aconteceu em Madri (a propósito da tentativa de falsificação, pelo governo de Aznar, da autoria dos atentados da Al Qaeda em março de 2004, atribuindo-a falsamente ao separatismo basco) ou no Egito (a manifestação na Praça Tahir que foi decisiva para a queda do ditador Mubarak em fevereiro 2011) – não podem ser planejados por um grupo centralizado, não podem ser urdidos por um comitê central e nem podem ser convocados por meios broadcasting. Só ocorrem quando se trafega pelos canais próprios das redes, por meios P2P, ou seja, quando o fluxo percorre os múltiplos caminhos de topologias distribuídas. São necessários muitos feedbacks, muitos laços de retroalimentação de reforço, muitas reverberações, para que pequenos estímulos provenientes da periferia dos sistemas estáveis afastados do estado de equilíbrio, possam se amplificar de modo a modificar o comportamento dos agentes do sistema como um todo. Só quem pode fazer isso é a rede, não hierarquias.
Pode-se, no máximo, tentar clonar as estruturas distribuídas das redes sociais realmente existentes (e é bom não confundir as redes sociais, quer dizer, as pessoas interagindo segundo determinado padrão mais distribuído do que centralizado, com as mídias sociais, as ferramentas interativas – como o Facebook e o Twitter) e procurar atuar de modo coerente com elas. Atuar de modo coerente com a estrutura e a dinâmica de mundos distribuídos significa fazer netweaving: mais do que cortar e quebrar, tecer, alinhavar. Ou seja, ser mais interativista do que ativista (militante).
Nada de organizar destacamentos. Interagir para clusterizar (sim, tudo que interage clusteriza). Distribuir para enxamear (sim, tudo que interage, a partir de certo grau de distribuição, conectividade e interatividade, pode enxamear). Conectar para contrair o tamanho social do mundo, quer dizer, para ensejar e acelerar o crunching (o amassamento que ocorre em Small Worlds Networks) que está mudando não apenas a estrutura e a dinâmica, mas a natureza daquilo que chamamos de sociedade humana.
Mesmo assim, não se sabe – e é bom que não se saiba de antemão – se os fenômenos mencionados vão acontecer. Eles podem acontecer e podem não acontecer. O importante é não tentar instrumentalizar os outros, mobilizá-los para o confronto, insuflar um ânimo adversarial, construir e demonizar inimigos O importante é não iniciar uma espiral de violência. O importante é construir a paz e não a guerra. A democracia nunca nasce da violência. Não há um caso, um único caso na história. A primeira democracia, a democracia dos antigos gregos, não nasceu assim: os atenienses frequentadores da Ágora não organizaram um atentado ao tirano Psístrato ou ao seu filho Hipias, nem, muito menos, insuflaram uma rebelião popular. O protagonismo daquela nascente dinastia autocrática foi interrompido, sim, mas por ação pacífica. Os democratas simplesmente proclamaram um édito em que dispensavam os serviços do autocrata. Clístenes, Efialtes e Péricles não tomaram o poder tirânico para exercê-lo da sua maneira, simplesmente dispensaram esse poder (quer dizer, recusaram-se a reproduzi-lo do modo como estava estruturado: e é a isso, precisamente, que chamamos de primeira invenção da democracia). A democracia dos modernos também não se estabeleceu a partir de nenhuma guerra, ainda que tenha ficado constrangida a se transformar (e a se rebaixar) em um modo de administração política do Estado-nação, este sim, uma estrutura desenhada pela guerra e para a guerra. Esta, aliás, é a principal razão dos limites que a democracia atualmente existente impõe ao processo de democratização e, inclusive, mais do que isso, a razão da sua falência, agora anunciada pelos novos movimentos da sociedade-em-rede. A terceira democracia, quando vier, também não virá por meio de uma guerra. Por que? Ora, porque a democracia é um modo pazeante das relações. Ela é o contrário da autocracia, que só pode se manter com base na guerra. Ela não é um lugar para se chegar e sim um modo de caminhar que desconstitui autocracia na medida em que recusa combater e vencer para derrotar inimigos (reais ou construídos como pretexto para justificar uma estratégia de poder).
As democracias não nascem de rebeliões, nem de revoluções entendidas como atos violentos de remoção dos antigos ocupantes dos cargos de poder e sua substituição por novos ocupantes. Todos os processos que foram assim desencadeados produziram mais autocracia, não mais democracia. Estreitaram a brecha democrática que foi aberta, uma ou outra vez na antiguidade e na modernidade, na civilização patriarcal e guerreira. Restringiram em vez de ampliar as liberdades. As primeira medidas dos governos revolucionários que chegaram ao poder pela violência foram, via de regra, a abolição da liberdade de imprensa e da liberdade de organização, a instalação de polícias políticas e a ereção de monstruosos aparelhos estatais de repressão. Ademais, provocaram verdadeiros genocídios, os maiores de que se tem notícia na história.
As democracias não são originadas em eventos épicos, em grandes batalhas, mas são resultados de processos moleculares, de dinâmicas de rede (sim, se não houvesse uma rede social em Atenas, com significativo grau de distribuição, a conversação na praça do mercado que deu origem à primeira democracia não teria acontecido). As democracias não são regimes de heróis, de visionários desvairados que querem conduzir rebanhos, de líderes manipuladores, de utopistas vidrados em suas fórmulas para redimir a humanidade e salvar a espécie humana por meio de grandes confrontos épicos, de batalhas titânicas. A democracia é lírica, é um modo de convivência pacífico e pacificante, voltado para transformar inimizade em amizade política e – para lembrar John Dewey (1939) – praticado pelas pessoas comuns. Atribui-se ao Mahatma Gandhi o dito de que não existe um caminho para a paz, a paz é o caminho. O mesmo pode ser dito da liberdade, da materialização do ideal de liberdade como autonomia e da democracia como modo pazeante de regulação de conflitos. Não existe caminho para a democracia: a democracia é o caminho. Se queremos uma nova democracia, mais democratizada ou radicalizada, não há outro caminho senão a democratização.
Sim, vamos ocupar todas as ruas. Amanhã, depois e quando desejarmos. Que sejamos multidões formadas por iterações de um-mais-um, não rebanhos reunidos e manipulados, massas uniformes e indiferenciadas gritando palavras de ordem fabricadas em algum covil de militantes tarados ou seguindo bandeiras de partidos autocráticos e oportunistas. Seremos milhares, centenas de milhares, milhões: mas um-a-um, pessoas únicas cada um de nós, pensando com nossas próprias cabeças, compartilhando nossos desejos de mudança horizontalmente, com nossos próprios emaranhados e recusando diretivas daqueles hierarcas ou proto-hierarcas que querem nos conduzir.
Não à guerra. E que a paz esteja conosco!
Nós não somos os anônimos. Somos aqueles que têm muitos nomes. E temos nossos próprios rostos. Não somos mais um indivíduo numa massa uniforme de mascarados com a mesma máscara. Não queremos ser mais uma parte em qualquer coletivo: queremos ser o todo naquela parte que somos porque cada um de nós é unique. Não queremos substituir o velho mundo por outro que também seja único. Sabemos que muitos mundos são possíveis, desde que consigamos construí-los em nossa convivência.
Somos muitos, sim, mas um-a-um: nada de rebanho, nada de seguimento de lideranças, nada de caminhos pré-traçados para um porvir radiante, nada de revoluções épicas, nada de transformações cósmicas capazes de produzir um novo céu e uma nova terra. O novo céu será a composição fractal de muitas terras, de muitas redes tecidas por nós: liricamente!
Nós somos os que desobedecem, no dia a dia, nos pequenos gestos, salvando os mundos em que interagimos um instante de cada vez e não em formidáveis batalhas episódicas. Nós não achamos que todo mal que nos assola será redimido quando vencermos algum grande inimigo. Sabemos que o único inimigo que existe é aquele que constrói inimigos para lutar contra eles. Não somos nem queremos ser heróis ou santos, que fugiram da humanidade porque não se achavam bons o bastante. Heroísmo ou santidade não convêm a seres humanos.
Não temos mais raízes: temos antenas. Não pertencemos a grupos e não erigimos organizações, não construímos diques e não lançamos âncoras para nos proteger da correnteza, para escapar do fluxo caudaloso… Não temos medo do abismo da interação. Quando o abismo nos olha, pulamos nele.
Nós somos as pessoas comuns.
Por Luigi Verardo
A história desenvolve-se a partir das experiências reais e concretas que a humanidade produz. Por conta disso, quando se reporta ao passado é necessário que se recupere com muito cuidado as iniciativas, as ações anteriores que propiciaram as atividades do presente. Muitas vezes, para compreender ou justificar o que acontece no presente contamina-se (para não dizer: “sacrifica-se”) o passado sem levar em conta a complexidade das ações sociais e políticas daquelas atividades.
O texto que você repassou fala que na luta contra a autocracia que tinha um problema que buscava-se um outra autocracia, como se fosse a Nossa ou a autocracia do Bem. Outra coisa, quando o texto usa a expressão “nós” precisar ver o que é este eu + tu + ele estão incluídos. Porque muitos dos que lutaram, muitas vezes até à morte, contra a ditadura não eram tão primários. Sabiam que além de não acreditar nas representações tradicionais (partidos e sindicatos), não viam perspectivas pela via institucional. Buscavam outra foram de fazer política, buscavam organizações mais autÃ?nomas e organizadas de baixo para cima. No meio dos trabalhadores criavam-se comissões e comitês de base, nos movimentos populares organizam-se associações, nas igrejas organizavam, nos diversos segmentos profissionais e etários também era m constituías suas associações. Graças àquelas iniciativas e de outras ações pudemos avançar e sair daquele triste período ditatorial. Mais do que isso, até experiências de autogestão vieram das organizações mais autÃ?nomas. A palavra autogestão não caiu do céu.
Hoje, o movimento de ocupação (que não é só expressão nacional) tem bandeira e tem muita gana de protestar e de muita vontade de mudar. Não querem diminuição de apenas R$ 0,20 ou R$ 015. Querem muito mais. Antes de tudo, querem se considerados com gente, querem que suas vozes sejam respeitadas e não estão nem um pouco contente com o que acontece com a educação, transporte, meio ambiente, saúde etc. Mais do que isso, querem outra forma de participação política. Querem participação mais autÃ?noma e mais direta. Aliás, tudo a ver com o que nos da Economia Solidária e Autogestão estamos falando e fazendo.
Nós sabemos que para construir uma sociedade democrática precisamos construí-la desde já. Sabemos que existe uma relação dialética entre o que se pretende com os instrumentos e métodos que se utiliza. Isto é, que os meios utilizados determinam os fins pretendidos. Aliás, na trajetória do Fórum Brasileiro de Economia Solidária aprendemos que as experiências solidárias e de autogestão são nossas mais autênticas escolas para democracia.
Protestos legítimos: o vestibular da cidadania ativa
Fonte: José Carlos Buzanello, Advogado, Doutor em Direito e Professor da UNIRIO (essb@essb.adv.br)
As grandes cidades brasileiras estão conhecendo novas formas de protestos de milhares de jovens que tomam as ruas e prédios. Dos fatos: 1) organizados pelas mídias eletrônicas e pautados por discurso genérico de reivindicação, centrado na questão da tarifa de ônibus, despesas da copa do mundo 2014 e contra a corrupção; 2) Sem a presença ostensiva de liderança e contra a “política” e os “políticos”. Protestos e manifestações de rua, seja qual for a sua natureza, seja qual for o seu objetivo, é antes de mais nada, um fato político.
A ordem social, por necessidade existencial, tem que aspirar a ser poder político-jurídico, a ser ordem estatal. O poder político tem méritos e defeitos. Existe o poder como instância separada que assegura o comando de “alguém”, o que implica a obediência aos outros. E o por que obedecemos? Várias são as respostas. A primeira razão é o costume, no início, os homens vêm-se vencidos pela força, e logo tanto somos educados e criados na “servidão da obediência”, contentam-se em viver como nasceram. No entanto, esses jovens manifestantes entendem que “não” participam desse pacto de poder político, pois dele não participam. Apenas sentem o peso do poder e não podem serem impedidos de sacudi-lo, numa “lembrança primitiva” da liberdade.
A sociedade moderna conhece o fundamento do poder pela legitimidade política, que se afere pela variável da adesão à obrigação de obediência. O poder político que pretende ser legítimo encoraja a obediência e desencoraja a desobediência. Exatamente do resultado do embate político dependerá, em parte, a legitimidade do poder político, mas isso não significa uma submissão cega estrutura jurídica. Esses fatos são problemas da estrutura do poder político-jurídico, porque este é que opera os conceitos de poder e de limites do Estado e do indivíduo.
As liberdades individuais e a função da autoridade tornam-se elementos jurídicos, que devem fazer a separação entre as articulações de poder político com os grupos sociais. Os espaços são regrados e institucionais. A questão das manifestações que se fazem de forma institucionalizada, contudo não é uma relação simples e linear, pois há uma multiplicidade de formas, que vai desde o conflito aberto até a autocomposição do mesmo com as autoridades públicas. Os jovens observam que o processo eleitoral permite mudanças nas latitudes partidárias dos governantes, mas a nova relação de poder se estabelece da mesma forma horizontal e vertical, como antes.
Essas manifestações marcam as seguintes características: 1) qualifica-se por uma ação pública de massa e simbólica; 2) manifesta-se de forma coletiva e pela ação “não-violenta”; 3) realizam num contexto democrático, de modo legítimo, que permite aos seus manifestantes adotar-se diversos comportamentos, seja por consciência ou por necessidade material; 4) querem demonstrar a injustiça do ato governamental do aumento da passagem de ônibus; 5) impunham uma sanção moral ao poder político, pois esse “não” responde aos anseios da juventude, que querem participar da vida nacional, mas os “canais” institucionais estão bloqueados ou já não funcionam, as queixas não serão ouvidas ou não são suficientes junto às esferas do Estado; 6) visam à reforma política, não sendo mais do que uma contribuição ao sistema democrático para o seu aperfeiçoamento.
As manifestações tem um conteúdo simbólico que, geralmente, se orientam para a deslegitimação da autoridade pública, a fim de atingir as pessoas situadas em seus centros de decisão. Isso implica a formação da tensão do grupo social, caracterizada por um teor de consciência razoável, de muita publicidade e agitação. Das possíveis variáveis, a que mais chama a atenção da sociedade é a estratégia de pequenos grupos que usam a violência, que aumenta a deslegitimação do movimento ou da autoridade, caso o governo também use o domínio da força para reprimir os manifestantes.
Surge, o conceito de desobediência civil, em que “toda desobediência civil é resistência”, mas “nem toda resistência é desobediência civil”. Essas manifestações fazem a negação de uma parte da ordem política, ao pedir a reforma ou a revogação do aumento das passagens de ônibus mediante ações de mobilização pública junto aos órgãos de decisão do Estado. A isso chamamos de “desobediência civil” porque os que desobedecem vêem que não cometem nenhum ato de transgressão da obrigação jurídica, julgando, por sua própria consciência, que estão agindo de forma adequada. Dessa forma, não reconhecem ao Estado o direito de punir os sues integrantes.
Na tensão entre ordem, lei, poder e liberdade, apesar de sua natureza conflituosa e instável, podem-se encontrar um ponto ótimo de convivência dentro do modelo democrático. Os desequilíbrios entre Estado e sociedade não são saudáveis para as partes. Havendo um desequilíbrio em favor do Estado, poderá haver conseqüências gravíssimas para a liberdade, como aconteceu com a experiência totalitária de Estado (nazismo e stalinismo). De outro modo, desequilibrando em favor da liberdade, nega-se o papel do poder estatal em organizar a vida coletiva. A simples negação da autoridade também, em parte, é a própria negação da liberdade, já que aquela é que garante o exercício desta. A devida correspondência de limites entre poder e liberdade torna-se a obra mais acertada sob o ponto de vista da experiência democrática entre participação social e exercício do poder.
Assim, enumero uma pauta para a participação política tendo em vista a construção de uma “res pública”: 1) democratização de rádio e TV, sem monopólio privado; 2) voto facultativo; 3) extinção do Senado federal e suas atribuições transferidas para uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados; 4) reduzir pela metade o número de Deputados Federais e Estaduais e os Vereadores; 5) transparência pública de todas as contas públicas; 6) reduzir o número de Ministérios; 6) cláusula de bloqueio para partidos; 7) fidelidade partidária absoluta, pois o mandato é do partido; 8) férias de apenas 30 dias para todos os políticos e juízes; 9) ampliação do Ficha-limpa; 9) fim de todas as mordomias de integrantes dos três poderes, nas três esferas; 10) prisão para quem desviar dinheiro público (elevando-se para a categoria de crime hediondo) e devolução em dobro etc.
A estratégia das manifestações induz a mudança no sistema político, seja no ato que autoriza o aumento da passagem de ônibus, seja nas autoridades, e tem uma justificação moral assentada numa legitimidade real, em harmonia com os princípios da justiça, que se converte numa forma “controlada de desordem” e numa definitiva forma democrática de protesto.
Divulgado por andre mucelini
Os conservadores (ou o que chamamos de direita) querem sequestrar a pauta das manifestações em prol de seus interesses. Isso ficou claro na mudança brusca de opinião de jornais, de revistas e de figuras notoriamente reacionárias que antes criticavam as manifestações, e agora as apoiam. Ficou mais evidente ainda quando vi a foto de “artistas” com o olho pintado de roxo, em protesto contra a violência policial. Não me consta que esses mesmos “artistas” se pintem de “vermelho sangue” quando a mesma polícia mata os jovens pobres e pretos da periferia. Por isso, digo com todas as letras: a causa de Datena, Arnaldo Jabor, Marcelo Tas, Pondé e esses “artistas” não é a causa pela qual lutamos. Eles apenas mudaram de posição porque viram que a manipulação ideológica tem limite e que as pessoas não ficariam apenas na petição online. Pense: eles se dizem contra a corrupção dos políticos, mas se calam quanto à corrupção de empresas privadas; eles reclamam da má qualidade do serviço público, mas são favoráveis à privatização e contra o aumento dos impostos dos mais ricos; eles estão “cansados da violência”, mas nada dizem sobre a violência cotidiana a que a população pobre – em especial negros, mulheres e gays – estão expostos; eles são contra a “gastança de dinheiro público” apenas quando se trata dos programas sociais, mas não veem problemas quando o BNDES financia empresas privadas a juros baixos; eles se dizem contrários ao aumento da passagem, mas acham absurdo falar de “tarifa zero” – mesmo sendo algo juridicamente possível. Então, meu caro, não seja idiota: essas pessoas não querem o mesmo que você. Elas não PODEM querer o mesmo que você, pois os privilégios que têm dependem de quão ruim a sua vida continuará a ser. Conservadores, por óbvio, querem conservar e não transformar. Por isso, não é por vinte centavos. É pela construção de um horizonte político que estas pessoas não querem, mas que você precisa acreditar ser possível. Elas não são nossas aliadas. Definitivamente, não são.”
Sobre o que dizem as ruas
Fonte: Vinicius Wu (*), em Carta Maior
Seria recomendável aos dirigentes políticos do campo progressista afastar o risco de reproduzir aqui os erros da esquerda espanhola que, inicialmente, criminalizou o 15-M e terminou falando sozinha nas últimas eleições. Também seria recomendável não outorgar, de forma alguma, às elites brasileiras uma capacidade de mobilização que ela não possui. Refutar a ideia de que os jovens estão nas ruas em função da mídia ou de qualquer tipo de conspiração das “elites” é o primeiro passo para não cair em um erro elementar. Por Vinicius Wu.
A forma menos adequada de buscarmos a compreensão de um fenômeno social complexo é a simplificação. Não encontraremos uma única motivação para os recentes protestos que se espalharam pelas principais cidades do país, se o procurarmos. Temos questões mais gerais e universais ao lado de outros muitos temas locais e setoriais. Há aspectos que aproximam os manifestantes de São Paulo aos do Rio e de Porto alegre e, outros tantos, que os distanciam.
O papel da internet e das redes sociais é central e, em geral, os políticos e formadores de opinião não o tem compreendido minimamente. Buscar algum grau de compreensão do atual fenômeno, a partir do ponto de vista de uma esquerda que se coloca diante do dificílimo desafio de governar transformando, é o objetivo desse breve artigo.
O que se pode dizer preliminarmente é que estamos diante de uma expressão política do novo Brasil. A revolução democrática, levada a termo pelos governos Lula, redefiniu a estrutura de classes da sociedade brasileira, incluiu milhões de brasileiros à sociedade de consumo e possibilitou a emergência de novas expressões culturais e políticas. Mas o inédito processo de inclusão social e econômica ainda é imperfeito, inconcluso e contraditório. As dinâmicas políticas decorrentes do processo massivo de inclusão social em curso ainda são imprevisíveis, mas algumas pistas são visíveis e exigem da esquerda brasileira uma reflexão mais adensada. As conquistas sociais dos últimos anos vieram acompanhadas da despolitização da política, de uma onda conservadora que constrange o Congresso Nacional e paralisa os partidos de esquerda, distanciando, ainda mais, a juventude da política tradicional. Lembremos que, recentemente, tivemos manifestações espontâneas, em todo o país, contra a indicação de Marcos Feliciano à Comissão de Direitos Humanos do Congresso Nacional. Na oportunidade, nenhum manifestante propunha o fechamento do Congresso ou a criminalização dos políticos. E o que fez nosso Parlamento enquanto Instituição? Nada. Esperou solenemente o movimento se dispersar. Frente à onda conservadora que estimula a homofobia, o racismo e a violência sexista, o que têm feito os partidos políticos? Os ruralistas de sempre se organizam no Congresso Nacional para anular os direitos dos indígenas e o que dizem nossos parlamentares progressistas?
Os dez anos de governo de esquerda no país nos deixam um legado de grandes conquistas, entretanto, há incerteza e imprecisão quanto aos próximos passos. Demandas históricas não atendidas carecem de respostas mais amplas. Além disso, novas questões sempre se impõem num cenário de conquistas sociais e políticas. Pois, se é verdade que os governos do PT incluíram milhões e possibilitaram acesso a inúmeros serviços antes inacessíveis, também é verdade que temos, em diversas áreas, serviços de baixa qualidade e, fundamentalmente, caros.
O transporte nas grandes cidades é um drama cotidiano para milhões de brasileiros. Temos pleno emprego em diversas regiões metropolitanas do país e, no entanto, ainda temos um oceano de precariedade e informalidade. E aqueles que ingressaram na sociedade de consumo nos últimos anos, legitimamente, querem mais: anseiam por cultura, lazer, mais e melhores serviços, educação de qualidade, saúde, segurança e transportes. São os efeitos colaterais de toda experiência exitosa de redução das desigualdades sociais e econômicas.
Evidentemente, há ainda o afastamento e o desencantamento com a política e os políticos. A denominada “crise da representação” não é um conceito acadêmico abstrato. O déficit de democracia e de legitimidade das Instituições políticas colocam em xeque a capacidade dos atuais representantes em absorver e compreender as novas dinâmicas sociais e políticas que se expressam nas ruas do país. Nossa jovem democracia corre o risco de caducar precocemente, caso não tenhamos êxito em ressignificá-la e reaproximá-la dos setores sociais mais dinâmicos. Essas seriam algumas das questões mais gerais que aproximam os movimentos do Sul, sudeste e nordeste. Mas há ainda temas locais que incidem sobre dinâmicas especificas e mobilizam pessoas a partir de questões mais sensíveis a partir de sua vivência concreta nos territórios.
O Rio de Janeiro, por exemplo, se tornou uma das cidades mais caras do mundo. Há uma reorganização em grande escala do espaço urbano e há setores sociais que se sentem completamente alheios (e marginalizados) ao processo de “modernização” da cidade. Em São Paulo, temos uma polícia orientada para o uso desmedido e desproporcional da força e da violência – e isso não diz respeito somente aos dias de protestos. Também há ali um tipo de violência estrutural contra homossexuais e mulheres sem que o Poder Público organize qualquer resposta mais contundente. Poderíamos estender a lista.
Por fim, cumpre registrar que seria recomendável aos dirigentes políticos do campo progressista afastar o risco de reproduzir aqui os erros da esquerda espanhola que, inicialmente, criminalizou o 15-M e terminou falando sozinha nas últimas eleições. Também seria recomendável não outorgar, de forma alguma, às elites brasileiras uma capacidade de mobilização que ela não possui e jamais possuirá. Refutar a ideia de que os jovens estão nas ruas em função da mídia ou de qualquer tipo de conspiração das “elites” é o primeiro passo para não cair em um erro elementar que seria bloquear qualquer possibilidade de dialogo com esses novos movimentos.
Melhor acreditar que é possível extrair do atual momento elementos para a renovação da agenda da esquerda brasileira e reforçar os laços que unem os governos progressistas da América Latina a todas as lutas contra as diversas formas de privatização da vida. É hora de reforçarmos nossa capacidade de dialogo, de escuta, e ouvir a voz nada rouca das ruas – a mesma que nossos adversários sempre buscaram silenciar. Estamos diante de uma oportunidade singular para renovarmos nossos discursos e nossas práticas, projetando o próximo passo da Revolução Democrática no Brasil com base na força sempre renovadora das mobilizações da juventude.
(*) Secretário-geral do governo do Estado do Rio Grande do Sul