Fonte: Unitrabalho (www.unitrabalho.org.br)

Entrevista Ladislau Dowbor*

Por Inez de Oliveira

Qual é o principal desafio do mundo do trabalho, hoje, no cenário de economia globalizada?

A inclusão produtiva. O Banco Mundial estima que quatro bilhões de pessoas, dois terços da população do planeta, estão fora dos benefícios da globalização. É um sistema perverso, que gera tecnologias avançadas na ponta e consumo sofisticado por parte de um terço das pessoas ao redor do globo.

Em diversas partes do mundo, grandes corporações compram imensas áreas de terras para especulação, planos de monoculturas e pecuária extensiva. O resultado é que o mundo rural está sendo privado de sua função produtiva. A especificidade da agricultura tradicional é morar no lugar em que se trabalha. Nas últimas décadas, em particular na segunda metade do século passado, houve um enorme êxodo rural.

Do mesmo modo, 300 milhões de pessoas que se ocupavam da pesca artesanal, assegurando alimentos para a população costeira, estão perdendo seu ganha-pão. A pesca oceânica industrial está liquidando as reservas pesqueiras e, em algumas regiões, predominam as fish farms, fazendas aquáticas que usam pouquíssima mão de obra e direcionam seus produtos a mercados sofisticados.

Esses são exemplos de processos em que as tecnologias avançam muito e, por mecanismos econômicos, servem a quem tem capacidade de compra, e não a quem precisa. A exclusão produtiva e a desigualdade andam de mãos dadas.

A modernização tecnológica é o mecanismo gerador da informalidade?

Ao serem excluídas dos processos que usam modernização tecnológica mais avançada, as pessoas tentam sobreviver da maneira que podem. No Brasil, temos 190 milhões de habitantes, sendo 100 milhões na população economicamente ativa. Deste total, 35 milhões estão no emprego formal no setor privado e 8 milhões no emprego formal público. Apesar do imenso esforço feito nos últimos anos, mais de 40% da população economicamente ativa continua no setor informal. Na América Latina, a média é de 50%. Na África, chega a 70%.

A tecnologia, em si, é boa, porque permite fazer mais com menos recursos. Mas se você não redistribui o acesso à tecnologia, não reorganiza as relações sociais de produção em função das mudanças das bases produtivas, gerando processos desastrosos. O problema do emprego não é isolado. Se você está impossibilitado de ter um mecanismo formalizado para ganhar o pão de sua família, está fora não só do setor econômico, mas da sociedade. Isso causa uma série de tensões políticas, culturais e psicológicas.

Como a problemática ambiental se insere nesse processo?

As tecnologias permitem extrair petróleo em ritmo tão acelerado que, em poucas décadas, toda a base do sistema energético será colocada em cheque. Em 200 anos, teremos liquidado esse recurso, assim como estamos acabando com os minerais preciosos, as florestas e o solo fértil do planeta. Outro vetor de agravamento é a água, já chamada de ouro azul, que está se tornando escassa, entre outras razões, em decorrência das novas tecnologias de extração de águas profundas nas grandes reservas freáticas do planeta.

A mudança climática agrava esses processos, gerando uma tensão muito forte entre a base rural do planeta, que ainda representa 50% da população mundial, e a dominância urbana. Estão sendo destruídas as bases produtivas das populações que buscam as cidades como refúgio, formando cinturões de miséria em torno das grandes metrópoles. Há uma convergência de crises, uma situação catastrófica no eixo desigualdade e exclusão produtiva e nos processos ambientais.

Qual deve ser a prioridade da política pública, frente a um quadro tão complexo?

Há um conjunto de coisas a serem feitas, a começar pela geração do emprego rural através do suporte à agricultura familiar. A dicotomia entre a agricultura moderna e produtiva, que planta soja, e a agricultura familiar como coisa do passado, é uma bobagem radical. Vivemos a ameaça da bolha alimentar e a agricultura precisa ser estimulada.

Temos que desenvolver mecanismos para dar acesso generalizado à tecnologia para a base da população rural do mundo, disseminar as inovações em áreas como uso racional da água e conservação de produtos, por exemplo. E, também, da comunicação, para que os pequenos produtores saiam das mãos dos atravessadores e os mercados voltem a funcionar. Isso aconteceu, por exemplo, no Quênia. A generalização da transferência financeira por celular entre pequenos agricultores permitiu que eles saíssem da mira dos atravessadores.

As mesmas tecnologias que geraram a exclusão podem ter seu sentido político e econômico invertido e se tornarem um instrumento de inclusão. Isso envolve uma intervenção pública com visão sistêmica e planejamento de longo prazo.

A intervenção pública é criticada por quem defende o mecanismo de mercado. Ele não dá mais conta das complexidades da sociedade atual?

As empresas não produzem segundo as necessidades, mas segundo a capacidade de compra. A indústria de medicamentos está concentrada nas doenças degenerativas dos idosos dos países ricos, não em medicamentos para combater a malária e a tuberculose dos pobres. Qual é a empresa de petróleo que vai desenvolver tecnologia limpa, quando ganha rios de dinheiro se apropriando de algo que já existe na natureza?

Cada vez mais, o mercado deixa de ser regido pela livre concorrência e está nas mãos de meia dúzia de grandes grupos, estrangulando a liberdade comercial. Perde-se, assim, o mecanismo regulador. Ao mesmo tempo, os mecanismos de direção pública, de planejamento, foram desmoralizados. O resultado é uma perda de governança planetária. Vivemos uma crise de civilização, com colapso do próprio mecanismo de reprodução econômica e social.

Isso foi demonstrado, sobretudo, na recente crise financeira. Com a privatização e a desregulação do sistema de intermediação financeira, perdemos a capacidade de orientar os capitais para onde eles são necessários. Empresas que não produzem sequer um par de sapatos pegam empréstimo no Japão a 2% e aplicam na nossa taxa Selic a 10,75%, desorganizando a economia lá e aqui. Hoje, a intermediação financeira responde por 40% do lucro corporativo nos Estados Unidos; há vinte anos, a participação era de 10%.

Quando algumas dezenas de grandes grupos começaram a quebrar pelo excesso de especulação, o que os governos fizeram? Repassaram dinheiro aos bancos, para que eles dinamizassem a economia. Só que, em uma situação de crise, nenhum banqueiro investe em atividade econômica. Aconteceu o óbvio: o dinheiro que deveria ser investido em fomento, geração de emprego e mudança tecnológica foi desviado para processos especulativos, contribuindo para a esterilização de poupança. E, hoje, está pressionando o Brasil, a China, a África do Sul e outros mercados emergentes.

A saída para dinamizar a economia é fazer o oposto? Dar liquidez para a base da população?

O Brasil fez essa opção. Em vez de colocar dinheiro nas mãos de banqueiros, o país está conseguindo enfrentar o problema por meio da injeção direta de recursos na base. É uma profunda inversão na lógica do mainstream econômico. Os programas de inclusão produtiva que, apressadamente foram chamados de assistencialistas, já são alvo da atenção da comunidade internacional.

Depois de terem gerado 14 milhões de empregos, vê-se que, na base da sociedade, as pessoas não fazem carry trade, nem compram títulos do governo. Elas consomem bens básicos, estimulando a demanda, que responde aumentando a produção. E, assim, movimenta o setor de bens de capital e dinamiza toda a economia.

O recurso investido volta aos cofres públicos por meio dos impostos gerados pelo aquecimento. Foi assim, com distribuição de renda, que a Suécia saiu da crise nos anos 1920, os Estados Unidos nos anos 30 e a Europa a partir de 1945. A massa de excluídos pode ser vista como um problema ou como oportunidade. Há um horizonte para expansão. Gente que precisa consumir, mas, para isso, não basta um processo distributivo. É preciso que as pessoas sejam incluídas no processo produtivo.

Quando fala da inclusão produtiva, o senhor dá foco à área rural. Por quê?

Porque o setor ainda é o grande empregador mundial. A Europa mostrou muito bem que o suporte à agricultura familiar pode tornar a agricultura imensamente produtiva. Para gerar um emprego, a soja precisa de 200 hectares de terra. A mesma área ocupada pela policultura familiar – vale lembrar que 70% dos alimentos, no Brasil, vêm da policultura familiar – gera vários empregos para os integrantes de um núcleo familiar, além de usar mão de obra complementar.

Além de generalizar a tecnologia para o mundo rural, temos que incentivar a pesca artesanal e costeira e fortalecer o sistema de apoio à micro e pequena empresa. A garantia do direito de ganhar a vida produtivamente gera impacto positivo sobre todas as dimensões do desenvolvimento.

Como o senhor vê a Lei do Microempreendedorismo Individual e a possível criação do Ministério do Empreendedorismo?

São inícios. A lei surgiu para criar alternativas à informalização. Eu trabalho com o eixo proposto no documento Política Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local, no sentido de que cada município tem que criar capacidade de gestão. Os sistemas de desenvolvimento local são essenciais: há terra parada, gente passando fome e desempregados, é preciso estudar os recursos de maneira inteligente e colocá-los para funcionar.

A economia solidária, as cooperativas, o empreendedorismo fazem parte da diversificação gradual das relações de produção de uma sociedade que está se tornando mais complexa. Isso é positivo. Mas temos pela frente um desafio evidente, que é a redução da jornada de trabalho. As tecnologias permitem sair da situação absurda em que vivemos, onde um segmento da sociedade não vive porque trabalha demais e outro se desespera pela falta de emprego. Daí a importância em serem compartilhadas.

O papel da instituição de ensino superior muda nessa nova sociedade?

A universidade tem o papel de articuladora dos conhecimentos necessários nos territórios onde está inserida. Entramos na era da economia do conhecimento e vamos evoluir para um sistema onde a universidade recebe permanentemente ex-alunos, que voltam para se atualizar em relação aos processos, e onde movimentos sociais, empresas e técnicos de áreas aplicadas podem interagir e generalizar esse conhecimento.

Para isso, a universidade precisa, no mínimo, se dotar de um conselho consultivo, onde estejam representados o movimento social, empresários, organizações sindicais, autoridades da gestão pública local, criando um processo permanente de enriquecimento científico e interação com as forças produtoras de conhecimento. Cada vez mais, o conhecimento será desenvolvido em rede, por meio do processo colaborativo.

* Ladislau Dowbor é formado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suíça, e doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia. Foi consultor do Secretário Geral da ONU na área de Assuntos Políticos Especiais, assessor técnico de diversos projetos das Nações Unidas e, hoje, atua como consultor de agências das Nações Unidas, governos e empresas. Professor de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Dowbor é autor e co-autor de mais de 40 livros. Seus artigos, estudos técnicos e livros podem ser acessados no site http://dowbor.org

Entrevista em 3/12/2010