Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – IHU
A análise da conjuntura da semana é uma (re)leitura das “Notícias do Dia’ publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, com sede em Curitiba-PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.
Eis a análise.
Introdução
Às vésperas da Rio+20, o descaso com que o governo vem tratando a agenda socioambiental, é prova contundente de que o país se coloca de costas para a problemática e caminha na contramão do debate mundial. Aos poucos vai se sedimentando a percepção de que o governo brasileiro, apesar da retórica quando fala dos temas do meio ambiente, não percebe, ou não quer perceber, que é um dos poucos países que poderia oferecer uma alternativa à crise civilizacional ancorada, sobretudo, na crise climática.
O debate nesses dias em torno da votação final das alterações no Código Florestal coloca a nu a subordinação da agenda socioambiental à agenda econômica e política. Por um lado, vê-se o modelo neodesenvolvimentista atropelando os cuidados mínimos que o país deveria ter para com a questão ambiental e, por outro, o pragmatismo a qualquer custo que, para manter o governo de coalizão, faz com que o governo ceda até mesmo no essencial.
No debate ambiental o governo não peca por omissão. É ainda mais grave. É conivente, negligente e leniente com o retalhamento dos temas que envolvem a agenda ambiental. O governo trata o tema como um aborrecimento que lhe cria problemas e divide a sua base de apoio político.
O mesmo pode-se dizer da questão indígena, especialmente do tratamento dado aos Kaiowá-Guarani, no Mato Grosso do Sul. Os indígenas encontram-se abandonados à própria sorte. A inércia do governo é estarrecedora. Não se vê nenhuma iniciativa incisiva do Executivo, e no campo do Judiciário, os indígenas sempre perdem. Assiste-se a um clima generalizado de demora, passividade, apatia e omissão quando se trata de enfrentar os fortes interesses do agronegócio na região. E mais grave ainda, há tentativas legais que, caso se efetivem, podem representar retrocessos no tratamento dado à questão indígena em nosso país. O deslocamento do “Estado brasileiro” à região ocorre apenas quando acontecem mortes, e as reiteradas promessas redundam apenas em promessas.
As agendas indígena e socioambiental se transformaram em temas desagradáveis que o governo trata com dissabor e contrariedade, uma vez que criam obstáculos ao seu modelo desenvolvimentista ou lhe trazem problemas junto aos outros países.
Na agenda do governo, os temas prioritários são os econômicos e sociais. Os problemas ambientais e indígenas são laterais, secundários. Estorvos que vira e mexe voltam à tona e que precisam ser administrados para evitarem maiores danos à base política. Eventuais recuos do governo em relação ao atropelamento da agenda ambiental e indígena apenas se dão quando há forte pressão do movimento social e ambientalista ou devido ao mal-estar junto à comunidade internacional.
A agenda ambiental e a agenda indígena não são estratégicas no governo Dilma Rousseff, não se inserem no projeto de Nação. Não se vê por parte do governo iniciativas ousadas nessas áreas, pelo contrário, a agenda governamental é reativa e subordinada aos setores conservadores como se vê no debate do Código Florestal que tomou conta do debate político no país nesses dias.
Retrocessos na agenda socioambiental
“O primeiro ano do governo da Presidente Dilma Rousseff foi marcado pelo maior retrocesso da agenda socioambiental desde o final da ditadura militar”. A afirmação se encontra na Carta escrita por diversas organizações da sociedade civil para alertar a sociedade brasileira sobre os retrocessos que vêm sendo constatados na área socioambiental no governo de Dilma.
O ambientalista Márcio Santilli, do Instituto Socioambiental – ISA, presente no ato de lançamento da carta, afirmou que o governo Dilma está rifando o patrimônio socioambiental brasileiro. Segundo ele, “jogamos no lixo o que demoramos muitos anos para acumular”, ao mesmo tempo em que adverte a presidente: “Dilma precisa saber que o zelo pelo patrimônio nacional é dela”.
A Carta num certo tom de indignação diz que os avanços acumulados nas duas últimas décadas e a liderança internacional conquistada no plano socioambiental correm sérios riscos. As organizações alertam que caso nada seja feito urgentemente para brecar os retrocessos na área ambiental o Brasil viverá o vexame de ser ao mesmo tempo anfitrião e vilão na Rio + 20.
A Carta cita as alterações no Código Florestal como um dos casos mais graves e emblemáticos da forma como o governo lida com a questão ambiental. Destaca ainda como retrocesso, a redução de Unidades de Conservação, a redução do poder de fiscalização do Ibama, os atropelos no licenciamento ambiental, a paralisação da agenda climática, a lentidão na regularização fundiária e o aumento da violência no campo. Cita também o congelamento dos processos de reconhecimento de terras indígenas e quilombolas ao mesmo tempo em que se se acelera o licenciamento de obras com claros problemas ambientais e sociais.
Alerta a Carta ainda para outros temas que estão em debate no Congresso e que tendem a prosperar dada a inércia do governo na área. Como exemplos destaca a Proposta de Emenda Constitucional que visa dificultar a criação de novas Unidades de Conservação e reconhecimento de Terras Indígenas; o projeto de lei que fragiliza a Lei da Mata Atlântica; os inúmeros projetos para diminuição de unidades de conservação já criadas; a proposta de Decreto Legislativo para permitir o plantio de cana de açúcar na Amazônia e no Pantanal e a discussão de mineração em áreas indígenas.
As organizações criticam também o Ministério do Meio Ambiente, a quem chamam de inerte na briga pelas questões ambientais.
Ao final, a Carta faz um alerta à opinião pública. Chama a atenção para o fato de que “o Brasil vive um retrocesso sem precedentes na área socioambiental, o que inviabiliza a possibilidade do país continuar avançando na direção do desenvolvimento com sustentabilidade e ameaça seriamente a qualidade de vida das populações atuais e futuras”.
Código Florestal. Tema paradigmático da degradação da agenda socioambiental
A forma como o governo vem tratando o debate em torno do novo Código Florestal é revelador do pouco compromisso com a questão ambiental. A desfiguração do Código não teria sido possível sem a frouxidão do governo.
Segundo as organizações ambientalistas “a iminente votação de uma proposta de novo Código Florestal é o ponto paradigmático desse processo de degradação da agenda socioambiental que flexibiliza a legislação de proteção às florestas, concede anistia ampla para desmatamentos irregulares cometidos até julho de 2008, instituindo a impunidade que estimulará o aumento do desmatamento, além de reduzir as reservas legais e Áreas de Proteção Permanente em todo o País”.
As organizações dizem ainda que “a versão em fase final de votação afronta estudos técnicos de muitos dos melhores cientistas brasileiros, que se manifestam chocados com o desprezo pelos alertas feitos sobre os erros grosseiros e desmandos evidentes das propostas de lei oriundas da Câmara Federal e do Senado”.
De fato, não são de hoje as duras críticas feitas pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPB) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) pela forma como o governo Dilma trata a temática ambiental. As organizações, há tempos vêm alertando para os equívocos do governo no debate do Código Florestal.
APPs. Corredores ecológicos em risco
Entre os maiores equívocos está o tema das Áreas de Preservação Permanente (APPs). As APPs têm a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora e proteger o solo e assegurar o bem estar das populações humanas. São áreas que protegem as margens dos rios, encostas, topos de morro, restingas, mangues e biomas específicos.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) acabam de divulgar uma carta na qual alertam para os equívocos de tratar as APPs como se fossem áreas de Reserva Legal. A Reserva Legal é um pedaço de terra dentro de cada propriedade rural passível de ser alterado, mas que deve manter parte da vegetação original para garantir a biodiversidade da área, protegendo sua fauna e flora. Sua extensão varia de acordo com a região do país: 80% do tamanho da propriedade na Amazônia, 35% no Cerrado nos Estados da Amazônia Legal e 20% no restante do território nacional.
As APPs, porém, segundo os cientistas, deveriam se manter como áreas intocáveis. Segundo José Eli da Veiga, professor do Instituto de Relações Institucionais da USP, “é unânime entre técnicos e cientistas que as APPs (…) devem ser entendidas como sagradas. As APPs são santuários da prudência econômico-ecológica. Quanto mais avança o conhecimento científico, mais evidências confirmam essa já antiga constatação”, afirma ele.
Na opinião de entidades como a SBPC e a ABC, “todas as áreas de preservação permanente (APP) nas margens de cursos d’água e nascentes devem ser preservadas e, quando degradadas, devem ter sua vegetação integralmente restaurada”. As organizações destacam que “essas áreas são importantes provedoras de serviços ecossistêmicos, principalmente, a proteção de nossos recursos hídricos e, por isso, objeto de tratados internacionais de que o Brasil é signatário, como a Convenção de Ramsar (Convenção sobre Zonas Úmidas de Importância Internacional)”.
De acordo com o secretário da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), José Antônio Aleixo da Silva, “as APPs, como o próprio nome diz, são áreas de manutenção de biodiversidade, fluxos gênicos, corredores ecológicos”.
O conceito de APPs, por ocasião da primeira votação na Câmara dos Deputados (maio de 2011), foi praticamente extinto e ato contínuo aprovou-se a anistia aos produtores que desmataram APPs às margens dos rios e encostas até 2008. A repercussão dessa decisão foi enorme e deixou o governo numa situação delicada. Com a tramitação do Código no Senado se restabeleceu que não haveria anistia e definiu-se pela reconstituição de 15 metros de vegetação para rios de até 10 metros, e de uma faixa entre 30 e 100 metros para os demais, e mais importante, determina o corte do crédito aos proprietários de terras que não regularizam as propriedades no prazo máximo de cinco anos.
Agora, em fase de votação final, questões como a anistia aos desmatadores, a diminuição das Áreas de Preservação Permanente (APPs), a manutenção das Reservas Legais e a Emenda 164 voltaram à tona. O parecer do deputado Paulo Piau (PMDB-MG) ameaça novamente as exigências aprovadas no Senado. Entre elas, e principal, a recuperação da vegetação nativa em áreas de preservação permanentes (APP) às margens de rios considerada o principal pilar do novo Código Florestal.
O agronegócio não aceita a exigência de recuperação de pelo menos 15 metros de vegetação nativa às margens de rios mais estreitos. A regra, aprovada pelos senadores em dezembro, não zera o passivo ambiental estimado no País, de cerca de 80 milhões de hectares. Para a Frente Parlamentar da Agropecuária – da qual o relator Paulo Piau (PMDB-MG) faz parte -, a recuperação de vegetação nativa representará a perda de áreas produtivas nas propriedades rurais. Piau também recusa a proteção de áreas de manguezais, os apicuns e salgados, assim como a punição dos produtores rurais que não regularizarem suas propriedades no prazo de cinco anos.
A ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira reagiu a qualquer tentativa de recuo no texto já aprovado pelo Senado: “Não aceito desfigurar o Código Florestal aprovado no Senado”, disse ela. Segundo a ministra, “o governo não aceita negociar uma regra mais flexível para a recuperação da vegetação nativa às margens de rios e outras áreas de preservação permanente (APPs)”.
“Não tem sentido flexibilizar essa norma”, afirmou a ministra. “Ao plantar área de preservação permanente, o produtor não está perdendo, está assegurando a produtividade para a propriedade, a oferta de água, etc”, reiterou. Para a ministra, “o texto aprovado no Senado representa a convergência. Não é o texto dos sonhos dos ambientalistas nem é o texto dos sonhos dos ruralistas (…) Temos de evitar retrocessos. Não tem motosserra, não tem anistia, não tem aumento do desmatamento. Temos de assegurar a produção de alimentos nesse País, temos de assegurar agricultura com competitividade nos mercados internacionais. Não tem jogo jogado”.
Ministra do meio ambiente: fraca e mal assessorada?
A proposta de recuperação parcial das APPs aprovada pelo Senado já era considerada tímida. Um recuo agora seria ainda mais devastador. Segundo José Eli da Veiga, “a presidente está sendo confundida e iludida, principalmente pela ministra do Meio Ambiente, que é muito fraca e tem um assessor que afirma exatamente o contrário do que dizem os principais especialistas”.
O assessor a que José Eli da Veiga faz referência é João de Deus Medeiros, ex-diretor do departamento de florestas do Ministério do Meio Ambiente e assessor da ministra Izabella Teixeira na negociação com o Congresso. Medeiros reiterou que o projeto aprovado no Senado [restituição das matas nativas nas APPs devastadas] prevê a recuperação de 300 mil quilômetros quadrados de vegetação nativa, contando a recuperação de áreas de Reserva Legal em médias e grandes propriedades.
José Eli da Veiga considera que o estrago mesmo com o substitutivo do Senado que corrigiu absurdos na votação da Câmara dos Deputados já está feito. Segundo ele, o novo Código “é retrocesso ambiental, retrocesso econômico brutal, e, talvez o pior, retrocesso institucional”.
O professor da Usp credita parte da responsabilidade aos estragos no Código Florestal à ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira. “A ministra é muito fraca”, afirma Eli da Veiga. Continua ele: “É mais que isso. Ela não tem a capacidade de interlocução com os senadores. É diferente do Minc (Carlos Minc), da Marina ou do Zequinha (Sarney). Foi um desastre o Código tramitar num contexto em que o MMA é conduzido por um suposto bom técnico [referência a João de Deus Medeiros]. É como querer usar um gato em briga de cachorro grande”.
A ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva atacou também duramente a política ambiental de Dilma Rousseff: “É a primeira vez que 100% das demandas do atraso vêm sendo contempladas”, referindo-se às concessões do governo. Na avaliação da ex-senadora, o Brasil precisa de dirigentes que tenham visão estratégica e não apenas gerencial.
José Eli da Veiga faz ainda um alerta: “Será muito melhor para a democracia brasileira se houver mais tempo para um exame bem mais cuidadoso dos imensos riscos, incertezas e desastres embutidos no texto aprovado pelo Senado. Mas, se continuar no atropelo, por força de um jogo complexo de interesses muito mesquinhos e também pelo fato de a matéria ser muito complexa, será uma tragédia”.
Agenda ambiental como moeda de troca
O governo, entretanto, tem pressa na votação final do Código Florestal, não quer arrastar a polêmica até às portas da Rio+20, aí os estragos na imagem do governo seriam ainda maiores. A possibilidade, porém, de uma imediata votação pode levar o governo a uma fragorosa derrota caso queira insistir na manutenção do texto aprovado pelo Senado em dezembro de 2011.
Nessa altura dos acontecimentos a votação final do novo Código Florestal já virou moeda de troca nas negociações políticas. Parte expressiva do PMDB articula a derrota do governo na votação do tema, inclusive com o aval do vice-presidente Michel Temer.
A movimentação do PMDB que tende a emparedar o governo parte de duas motivações. A primeira delas é que o deputado Henrique Eduardo Alves (PMDB/RN), próximo candidato à presidência da Câmara quer o apoio dos ruralistas à sua candidatura. Os ruralistas já disseram que apoiam Henrique Alves desde que esse apoie as suas teses.
Por outro lado, nos últimos meses tem crescido o descontentamento do PMDB com o governo e com o PT. O presidente em exercício, Michel Temer, aderiu ao manifesto dos insatisfeitos do PMDB que acusam o PT de usar uma “ampla estrutura governamental” para ultrapassar os peemedebistas em número de prefeituras nessas eleições que acontecerão nesse ano. O PMDB reclama que o PT tem mais facilidade de acesso a programas e recursos do governo para as suas bases e quer um “tratamento igualitário” para com as suas administrações. “Estamos discutindo a relação com o governo e queremos tratamento equânime: o que derem ao PT, tem que ser dado ao PMDB”, disse Eduardo Cunha, deputado federal (PMDB-RJ), protestando contra o governo.
Está claro que o PMDB quer ainda mais espaço e poder no governo de coalizão de Dilma Rousseff.
O governo percebe uma radicalização do texto favorável aos proprietários de terras e prevendo a possibilidade de derrota na votação do Código Florestal, já estuda a possibilidade de adiar a votação para depois da Rio+20.
A falta de vontade política em relação à questão indígena
Mas há ainda um outro capítulo referente aos retrocessos sociais no governo Dilma: o tratamento concedido à questão indígena, especialmente aos Kaiowá-Guarani, no Mato Grosso do Sul.
O embate envolvendo o agronegócio e os Kaiowá-Guarani foi tema da nossa análise de inícios de dezembro do ano passado, assim intitulada: Kaiowá Guarani: Um povo martirizado. ”Quando o boi vale mais que o índio”. A preocupação com o descaso que este povo vem sofrendo historicamente e a fim de recuperar elementos de sua cultura e modo de viver, originou também a edição n. 331, de 05 de maio de 2010, da Revista IHU On-Line – Os Guarani. Palavra e caminho.
O tema volta à baila sem que se possa vislumbrar sinais de que haja avanços ou uma solução mais satisfatória à vista. Pelo contrário, o que se percebe é uma passividade dos órgãos e poderes responsáveis, o que contribui para o acirramento do conflito. Há indícios suficientes para se crer que as coisas vão se arrastando pesarosamente na esperança – inútil, infundada e irresponsável – de que o conflito se resolva por conta. Entretanto, a história mostra que, em casos semelhantes, se houver alguma solução será a favor do mais forte. Neste caso, a sentença será – e está sendo – contra os kaiowá-guarani e a favor do agronegócio.
Nem mesmo no Executivo Federal, com Dilma Rousseff à frente, é possível identificar um interesse claro de que decisões políticas estejam sendo viabilizadas com a finalidade de dar uma solução justa à questão indígena. Pelo contrário, desde o próprio Executivo, passando pelo Judiciário e o Legislativo, há mais razões para se temer do que ter esperanças. Ou seja, há um clima generalizado de demora, passividade, apatia e omissão. E mais grave ainda, há tentativas legais que, caso se efetivem, podem representar retrocessos no tratamento dado à questão indígena em nosso país.
Descaso e passividade
A demora em se encontrar e nomear um novo presidente para a Fundação Nacional do Índio (Funai), por exemplo, é uma clara manifestação da falta de interesse envolvendo este órgão. Ainda em dezembro passado, o atual presidente, o antropólogo Márcio Meira, comunicou ao governo o seu desejo de se afastar do cargo e, desde então, reduziu seu tempo de trabalho na entidade. Quase três meses depois, a nomeação não saiu e o órgão governamental trabalha a meia bandeira. Ao contrário de outros órgãos e cargos públicos, este não desperta nenhuma cobiça.
Meira alega, para a sua saída, as constantes pressões que vinha recebendo da parte de indígenas e do agronegócio, insatisfeitos com a sua maneira de agir. Os indígenas reclamam maior respeito aos seus direitos e os deputados da bancada ruralista, atenção aos seus interesses expansionistas envolvendo a demarcação de terras indígenas.
A inoperância da Funai também é apontada pelo geógrafo Eduardo Luiz Damiani Goyos Carlini, que fez parte da Expedição Marcos Verón, que visitou, até o último dia 25 de janeiro, diversas aldeias do estado de Mato Grosso do Sul para registrar a situação de vida dos Guarani-kaiowá e as ameaças de morte às suas lideranças.
“Existe uma clara inoperância da Funai em dar andamento aos procedimentos necessários à demarcação, que leva ao aumento de conflitos entre os fazendeiros e os índios do Mato Grosso do Sul como um todo (tanto é que, segundo dados do relatório do CIMI, essa é a região onde os indígenas mais sofrem violência, assassinatos, etc., de todo o país)”, denuncia Eduardo Carlini.
E prossegue em sua análise: “Quando as ocupações são objeto de ação judicial de reintegração de posse, o Judiciário alega, muitas vezes, que a ausência de estudos e providências por parte da Funai para caracterizar a área como ‘terra tradicionalmente ocupada por índios’, faz com que prevaleça o direito de propriedade dos donos das terras ocupadas ou retomadas.”
Eduardo Carlini cita como demonstração da postura “mediadora” da Funai a recente declaração da encarregada do órgão no Mato Grosso do Sul, que afirmou que “o papel da Funai é mediar o conflito entre os fazendeiros e os indígenas”. “A encarregada da Funai não fez nada mais do que nos mostrar qual o interesse do governo sobre essa questão. Afinal, atender à demanda indígena é contrariar a política federal de incentivo ao agronegócio. Por isso que essa situação está sendo ‘mediada’, em vez de ser resolvida”, critica o geógrafo. Carlini lembra que a “Funai é o órgão federal responsável pelo estabelecimento e execução da política indigenista brasileira em cumprimento ao que determina a Constituição Federal Brasileira de 1988”.
A lentidão da Justiça brasileira para finalizar os processos relacionados às homologações de terras indígenas colabora para aumentar o clima de tensão e violência nas áreas de conflito, especialmente no estado do Mato Grosso do Sul.
Para a desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo e uma das fundadoras da Associação de Juízes pela Democracia (AJD) Kenarik Baujikian, os processos de demarcação e homologação de terras indígenas não podem tramitar por anos nos tribunais sem que tenha uma definição. “A demora na solução acaba reforçando os problemas que existem de violência, tensões, seja dentro das comunidades indígenas, seja nas outras comunidades que estão em volta. O Judiciário tem cumprido um papel de reforçar [isso], na medida em que a questão da demarcação de vários processos está paralisada no Supremo Tribunal Federal”, argumentou.
Segundo a desembargadora, devido à lentidão do Poder Judiciário tanto índios quanto fazendeiros e produtores rurais partem para o conflito a fim de defender seus direitos. “A demora da Justiça contribui para a violência e não só para isso como também para a instabilidade geral em todos os sentidos, inclusive, econômico dos envolvidos. A pior coisa que pode acontecer é não se resolver esse problema logo, seja por meio das homologações, seja pelas questões que já estão no Judiciário”, acrescentou a desembargadora.
Kenarik Baujikian também responsabilizou o Poder Executivo pela dificuldade em solucionar os problemas indígenas. “Não é só o Judiciário. O Executivo [tem responsabilidade] também porque existem atribuições próprias do Executivo e isso não tem sido realizado. Estamos muito atrasados em relação a isso e o que só vem reforçar a questão de incerteza, tensão para todas as pessoas envolvidas.”
A demora e a cegueira da Justiça também são apontadas pelo geógrafo Eduardo Carlini. “Outra questão sobre a qual não podemos deixar de refletir é o momento em que a justiça se faz cega. Os crimes, quando julgados, são entendidos como crimes comuns. A real situação do conflito agrário no Brasil é abrandada com a ideia de justiça no momento da condenação dos pistoleiros e raramente de seus mandantes, os fazendeiros. Pontualmente retiram-se de cena alguns atores, ao tempo em que permanece no cotidiano do campo brasileiro o agrobanditismo, violentando os mais variados territórios não capitalistas”, diz ele.
Dessa maneira, o campo transforma-se num verdadeiro palco de guerra, cujas vítimas exclusivas são os indígenas, agricultores e/ou extrativistas. Segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 38 índios foram assassinados nos nove primeiros meses do ano passado, sendo 27 no Mato Grosso do Sul, cenário de tensas disputas por direitos territoriais. Esses números são engrossados por pelo menos oito assassinatos de agricultores familiares e/ou extrativistas em disputas com grileiros de terras, principalmente na região norte.
Em face do aumento da violência no campo, são as mulheres que se levantam para tomar a defesa dos seus direitos. No encontro da Jornada de Luta das mulheres camponesas e indígenas do Mato Grosso do Sul, que reuniu mulheres de todo o Estado do Mato Grosso do Sul neste começo de mês, elas externaram sua dura realidade: “Cansamos de esperar nossa terra, que para nós é sagrada, é nossa vida, onde a mata é nosso espírito… queremos nossa terra de volta. Chegou a hora das mulheres indígenas na luta, conseguirmos nossa vitória. Derramamos lágrimas pela terra. Lutamos pelos nossos direitos, sofremos pela nossa terra, olhamos para a frente, nossa terra sem males”.
Em documento entregue ao Ministério Público Federal, as mulheres indígenas e camponesas fazem graves denúncias de violação de seus direitos e das violências impetradas pelo sistema de concentração de terra, considerado um sistema de morte. “A urgente identificação e demarcação de nossas terras, como condição para diminuir a fome, a dependência e violência em nossas aldeias e acampamentos. Caso isso não aconteça vamos ajudar nossos guerreiros nas retomadas de nossos tekohá. Se o governo não cumprir os prazos vamos levar às instâncias internacionais como OEA e ONU”.
A violência contra a causa dos indígenas se reveste de diversas maneiras, como mostra outro acontecimento. No final do mês de fevereiro, em articulação com o movimento da Aty Guasu, uma equipe de reportagem canadense esteve em várias áreas Kaiowá Guarani documentando as violências e agressões que sofreram, principalmente a partir do final do ano passado. Quando iam concluir o trabalho junto à Funai de Dourados, foram surpreendidos com uma ordem de prisão e apreensão de toda a documentação realizada durante uma semana. Não foi levada em consideração a veemente argumentação das lideranças indígenas, de que eram eles, e não o governo, que decidiam quem eles queriam que os apoiassem. Depois horas e de alguns contatos com escalões superiores, do Palácio do Planalto e Embaixada, os repórteres canadenses, um dos quais trabalha no New York Times, foram liberados, e deixaram em seguida o país.
Em nota, o Conselho da Aty Guasu se manifestou dizendo que “apesar da existência de nosso direito a recuperar as nossas terras antigas, porém entendemos que até hoje não há ainda uma política clara do Governo Federal para efetivar a demarcação definitiva das nossas terras tradicionais, isto é, em nossa visão não existe uma posição e ação segura do Estado-Nação e da Justiça para efetivar a devolução da parte dos nossos territórios tradicionais reivindicados. Exemplo: a identificação e demarcação de nossos territórios Guarani-Kaiowá iniciadas pela Fundação Nacional dos Índios (FUNAI) ao longo das décadas de 1990 e 2000 encontram-se todas paralisadas nas Justiças.” (Nota do Conselho da Aty Guasu, 28-02-2012)
Após tecer considerações sobre as políticas de Educação e Saúde indígena, afirmam: “Pensamos que seria necessário se construir uma política do Estado para a devolução/demarcação definitiva das partes de nossas terras tradicionalmente ocupadas por nós Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul”.
Na sua carta aberta, as lideranças da sociedade civil apontam também como exemplo de descaso com que questões sociais são tratadas, “o congelamento dos processos de reconhecimento de terras indígenas e quilombolas ao mesmo tempo em que os órgãos públicos aceleram o licenciamento de obras com claros problemas ambientais e sociais”. A bem da verdade, no caso dos licenciamentos, não se trata de inatividade do Estado; pelo contrário, de uma extrema eficiência atropeladora.
Aliás, essa sua eficiência atropeladora foi motivo de denúncia junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT). Um relatório da Comissão de Especialistas em Aplicação de Convenções e Recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), divulgado no começo de março, confirma que o governo brasileiro deveria ter realizado as oitivas indígenas nas aldeias impactadas por Belo Monte antes de qualquer intervenção que possa afetar seus bens e seus direitos. A nota técnica da OIT corrobora a posição do Ministério Público Federal (MPF) e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que já interpelaram o governo brasileiro sobre a não realização das oitivas.
De acordo com o documento da OIT, “a Comissão lembra que, em virtude do artigo 15 da Convenção, o governo está obrigado a consultar os povos indígenas antes de empreender ou autorizar qualquer programa de exploração dos recursos existentes em suas terras”, afirmando que Belo Monte poderá alterar a navegabilidade do Xingu, bem como a fauna, a flora e o clima da região. Estes impactos, afirma a OIT, “vão mais além da inundação das terras ou dos deslocamentos dos referidos povos”.
Demarcações de reservas indígenas – retrocesso à vista
Mais grave ainda que a paralisia e a lentidão dos Poderes do Estado brasileiro em relação à questão indígena são as tentativas de criar leis inconstitucionais para barrar de vez que se faça justiça com esses povos originários.
É sob esta perspectiva que deve ser lida a tentativa de tirar do Executivo o poder de fazer demarcações de reservas indígenas, hoje feitas exclusivamente por este Poder. Tramitam no Senado e também na Câmara dos Deputados, propostas de emenda constitucional (PEC), com o objetivo de retirar do Executivo essa capacidade. Uma proposta é da autoria do senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) e dá, caso aprovada, ao Senado a competência privativa para aprovar os processos de demarcação de terras indígenas. Ela também determina que a demarcação dessas áreas ou de unidades de conservação ambiental respeite o limite de 30% do território de cada estado.
Para Mozarildo Cavalcanti, é justo que os estados, por meio de seus senadores, opinem sobre esse tipo de demarcação. “Nós estamos em uma Federação. A demarcação significa confisco de terra dos estados, e quem representa os estados é o Senado. Ele já é consultado sobre assuntos muito menores, como indicações de autoridades e liberação de créditos”, disse o senador.
A proposta prevê que o Senado precisará referendar a demarcação feita pela União, mas a parte técnica continuará sendo feita pelos órgãos técnicos do Executivo, como a Fundação Nacional do Índio (Funai). Apesar disso, o senador questiona a maneira como essas demarcações vêm sendo feitas e acha “suspeita” a forma como as áreas são delimitadas. “No caso de Roraima e de Rondônia, coincidentemente o mapa das reservas se sobrepõe aos mapas das reservas minerais”, declarou.
Entretanto, como mostra uma das tuitadas, ainda há um sopro de esperança para que a PEC 215 não seja aprovada. “nilodavila @nilodavila – sopro de esperança. ‘@PTnaCamara: Parlamentares se mobilizam contra PEC que muda demarcação de terras indígenas: bit.ly/xStP1a’”. Também outros setores da sociedade civil estão se mobilizando contra a aprovação desta lei, contra a violência contra os indígenas e por um comprometimento real do governo com as demarcações de terras indígenas.
Depois de décadas de avanços na questão indígena, podemos começar a trilhar um caminho de involução nessa trajetória rumo a uma sociedade mais democrática, plural e integradora. Em todo o caso, o que salta à vista são claras manifestações de falta de vontade política para com a questão indígena. Manifestações inequívocas de descaso e de que este tema representa, na verdade, um incômodo para a plena – e ágil – execução das obras contempladas no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
Concepção ‘fordista’ de visão de mundo
A questão indígena e a votação do Código Florestal são apenas dois exemplos dos retrocessos na área socioambiental no governo Dilma. Vários outros estão em curso como destaca a Carta das organizações ambientalistas. A falta de apetência do governo para com a agenda ambiental e indígena é mais do que simples descaso e falta de vontade política. É fruto de uma concepção de pensar a sociedade. É resultante de determinado tipo esquerda que pensa a questão ambiental e indígena como passivos e não como aspectos importantes num modelo societário.
Modelo fordista tardio
Já dissemos outras vezes nesse espaço da “Conjuntura da Semana” que o PT e o governo de Dilma, assim como foi o de Lula, são tributários do “modelo fordista tardio” na forma de pensar e ver a sociedade. A elite política no poder pensa a sociedade a partir do paradigma da segunda revolução industrial – fordista.
A essência do modelo neodesenvolvimentista em curso é fordista, ou seja, assenta-se nas bases produtivista e consumista. Investe pesadamente em matrizes energéticas centralizadoras e poluidoras (fósseis), perigosas (nuclear) ou devastadoras do meio ambiente (hidrelétricas).
Acerca desse modelo cabe destacar documento assinado por 20 dos mais destacados cientistas que já receberam o Prêmio Blue Planet, também chamado de Prêmio Nobel do Meio Ambiente. Dizem eles: “É urgente romper a relação entre produção e consumo, de um lado, e destruição ambiental, de outro: “Crescimento material sem limites num planeta com recursos naturais finitos e em geral frágeis será insustentável”, ainda mais com subsídios prejudiciais em áreas como energia (US$ 1 trilhão/ano), transporte e agricultura – “que deveriam ser eliminados”, defende documento entregue no último dia 20 de fevereiro, em Nairóbi, no Quênia, aos ministros reunidos pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
É constitutivo ao modelo neodesenvolvimentista, a hiperexploração dos recursos naturais. Justificam-se aqui a construção das mega-hidrelétricas – Belo Monte, Complexo Madeira, Complexo Tapajós –, abertura de rodovias e hidrovias; ampliação da exploração de madeira e minérios; expansão da pecuária e das monoculturas da soja e da cana de açucar. Aqui se encaixa também o forte incentivo, via financiamento do BNDES, à expansão da produção das commodities como o etanol, a soja e a pecuária – atividades que exercem pressão sobre os recursos naturais.
Nesse contexto, a questão ambiental e indígena se transformam em um estorvo. Os danos ambientais sob a ótica do progresso são custos inevitáveis e um preço a ser pago. Foi no governo Lula que começaram as pressões para que o Ministério do Meio Ambiente adotasse procedimentos frouxos para a emissão de licenciamento ambiental para as grandes obras do PAC – chegou-se inclusive à divisão do Ibama. Lula reiteradas vezes reclamou dos entraves ambientais – das “pererecas”, dos bagres e do movimento ambientalista.
Dilma Rousseff prossegue no mesmo caminho. Destaque-se que Dilma foi ministra da Casa Civil no governo Lula e coordenadora do PAC e esteve à frente nas pressões para que o Ibama acelerasse as licenças para a execução das obras o que culminou com o afastamento de Marina Silva do Meio-Ambiente.
Coalizão e desideologização
Por outro lado, o conservadorismo do governo frente ao tema ambiental – assim como se vê na questão indígena e no debate da Comissão da Verdade – está relacionado ao governo de coalizão. As concessões às teses conservadoras se fazem em nome da governabilidade. Para não melindrar sua base de apoio político, o governo vai se desfigurando sempre mais. De tanto ceder e fazer concessões, o governo já não tem mais postura firme frente a alguns pontos. Tudo se tornou negociável. A derrapada fisiológica, somada à visão fordista de pensar o desenvolvimento, empurraram a agenda ambiental e indígena para o final da lista de preocupações do governo.
Os enormes retrocessos na agenda ambiental registrados pela Carta das organizações ambientalistas não são, portanto, fruto da inércia do governo frente ao tema. É ainda mais grave, é fruto de uma concepção de governar.