Por Inês Rosa Bueno
Como antropóloga, com boa parte da experiência em campo, na área indigenista, gostaria de colocar algumas questões que venho observando, embora de forma parcial e não fazendo uma análise sistemática, ou mesmo formal.
Em primeiro lugar, devo deixar claro que discordo de como a política indigenista vem sendo conduzida pelo governo brasileiro e principalmente de como ela é tratada na ilegalidade do interior brasileiro, onde índios jamais são vistos por todas as autoridades presentes, como portadores de direitos, ou cidadãos, o que já é uma realidade para a população pobre do país de um modo geral, que apesar disso também não consegue entender que os índios não são inimigos, mas sim, parte do povo.
Considero as ênfases da política brasileira para as florestas um absurdo da irracionalidade, onde as grandes riquezas que os índios conhecem melhor do que ninguém são destruídas em nome de um desenvolvimento cujas raízes remontam à ignorância da nossa colonização e que trarão lucros menores do que aqueles que poderiam ser obtidos se os conhecimentos indígenas fossem pesquisados, como algumas entidades estrangeiras, tais como a Conservation International, conscientes da nossa verdadeira riqueza, vêm fazendo, o que não neceessariamente é do nosso interesse.
O nosso interesse, a meu ver, é fazer com que o governo brasileiro seja capaz de se dar conta de onde reside a nossa riqueza, e se pautar como prioridade um sistemático estudo sobre os etnoconhecimentos indígenas dos recursos das nossas florestas, parando de permitir seu desmatamento e implantando em seu lugar, planos de manejo racionais e tendo em vista a sustentabilidade da economia a longo prazo.
A curto prazo, uma vez implantados com baixos investimentos, esses projetos gerariam lucros muito mais altos do que os atualmente utilizados para extração parcial de madeiras em florestas nativas, que são posteriormente totalmente erradicadas para plantio de monocultura, gado ou extração de minérios, produtos de rentabilidade relativa baixa. Para citar apenas um exemplo, enquanto uma porta de madeira de copaíba custa trinta reais, um vidro de trinta ml do óleo de copaíba, excelente anti-inflamatório de uso externo e interno, que verte da árvore numa média de dois litros ao ano e pode ser consumido em natura, custa dez reais.
E certamente custa muito mais barato e causa muito menos danos ambientais transportar três vidrinhos de trinta ml de copaíba do que uma porta, para ganhar os mesmos trinta reais. Conheço projeto no Vale do Ribeira em São Paulo, onde mais de mil produtos diversos são extraídos de uma pequena agrofloresta, por uma associação de pequenos agricultores que vivem com padrões bem mais altos de qualidade de vida do que outras pessoas dependentes de recursos locais na região.
E o investimento em projetos dessa natureza, onde inúmeros recursos podem ser explorados, é certamente infinitamente inferior aos recursos que vêm sendo investidos para manter e ampliar os atuais padrões de produção, tais como na construção de hidrelétricas e suas linhas de transmissão e reparação de danos ambientais e sociais, sem falar nos culturais. Portanto, passo agora a escrever especificamente do que observo entre meus colegas indigenistas, para, tendo feito uma crítica ao modelo de desenvolvimento que vem sendo implantado por nosso governo federal, passar a considerar e criticar a forma como os indigenistas vêm procurando construir seu antagonismo a isso.
Em primeiro lugar, discordo profundamente da insistência de boa parte dos indigenistas em recorrer a Europa e Estados Unidos para apoio, muitas vezes contra o próprio governo brasileiro, como no caso de Belo Monte. Isso, porque acredito, entre outros problemas, que essa atitude tem servido de justificativa justamente ao argumento de que o interesse pelas questões indígenas no Brasil seja promovido por grupos estrangeiros. E por mais que como indigenistas desprezemos esse tipo de afirmação, ela não deixa de ter algum fundo de verdade ao qual pelo visto o governo federal tem dado mais ouvidos do que a outros argumentos bem mais sólidos sobre toda essa questão. No caso específico das campanhas principais, que foram nos últimos anos Belo Monte e Raposa Serra do Sol, eu suspeito que tenha de fato existido uma mãozinha de fora para dentro, porque é inexplicável o motivo pelo qual essas duas campanhas se difundiram tanto, tão rapidamente, enquanto outras jamais decolam. Fala-se mais em Belo Monte do que na mudança do Código Florestal, que vai destruir a ecologia do país inteiro. E como, ainda por cima, no caso de Belo Monte, se chegou ao ponto do absurdo de denunciar o Brasil na OEA, entidade que dizem ser controlada pelos Estados Unidos (motivo pelo qual se estaria criando agora a CELAC, congregando apenas países latino-americanos e caribenhos) e que a OEA tenha decidido condenar o governo brasileiro antes do governo brasileiro apresentar sua defesa, e antes do prazo previsto para apresentação da defesa que seria de três meses, em apenas um mês, essa condenação já ter sido decidida, deixou todo esse quadro muito suspeito. Ainda mais quando se sabe que a própria USAID, agência do governo americano que tem interesse em enfraquecer a posição do Brasil no cenário internacional, financia CTI, ISA, OPAN, IEB etc etc… inúmeras entidades indigenistas ao longo da Amazônia e Aquifero Guarani de ambos lados da fronteira. Acredito que o motivo seja que Belo Monte faz parte de um conjunto de medidas que o governo federal pretende implantar com vistas a um tipo de desenvolvimento concorrencial com o das potências atualmente ainda hegemônicas de Europa e EUA. Hegemônicas principalmente por conta de seu poderio militar, por meio do qual impõem realidades econômicas com bases artificiais e no fundo, de produtividade comparativa duvidosa, mas a própria lógica desse tipo de economia se impõe pelo poder do monopólio de armas e meios de comunicação.
Diante desse quadro, em que vemos Dilma se preocupar em assumir uma posição cada vez mais defensiva da soberania nacional – o que a meu ver se justifica – e tratar a questão indígena como se de fato estivesse permeada de ingerência estrangeira, o cuidado deveria ser redobrado no sentido de evitar-se essa interpretação. Cuidado que tive, por exemplo, ao começar a me preocupar com uma campanha por Maraiwatsede, em 2005, consultando para isso outros antropólogos sobre o pedido de participação de uma antropóloga que era então membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação Americana de Antropologia. Na época, a decisão coletiva foi de que seria mais frutífero que ela não participasse, pois sua participação poderia ser utilizada por fazendeiros e políticos da região para caracterizar a campanha como algo de interesse estrangeiro. Embora enquanto aquelas terras foram de propriedade de uma multinacional italiana á qual todos esses críticos da “infiltração estrangeira” são ligados politicamente, jamais houve invasões como a que aconteceu quando finalmente a Justiça seria feita, mas infelizmente, se promoveu uma invasão dessas terras em 1992, para que os índios não a recebessem de volta. Segundo os promotores da invasão, políticos locais que a articularam junto com a multinacional e o governador do estado, (conforme eles mesmos denunciam nos discursos de incitação à invasão que foram registrados), eles “respeitavam a propriedade” (da multinacional italiana), mas para impedir o retorno dos índios, a invadiam, tomando para si grandes latifúndios ali dentro, mascarados pela presença de alguns poucos posseiros. E numa lógica bizarra, afirmavam que eram estrangeiros os que queriam colocar os índios de volta e impedir o desenvolvimento do Brasil, que eles medem pela proporção de terras devastadas que depois de exauridas abandonam, para devastar outras, exigindo sempre serviços governamentais para isso, como abertura de estradas. Essa menção à ingerência estrangeira nesse caso, se refere à campanha que ocorria na época, pelos Verdes da Itália, em apelo para que a multinacional italiana devolvesse as terras que tinham sido tomadas aos índios em 1966, quando os mesmos foram transferidos para o convívio com um outro grupo de índios que morria numa epidemia de sarampo que matou um terço do grupo transferido em menos de duas semanas. Dessa transferência, a própria FAB participou na ocasião, mas até hoje nosso Estado de Direito não foi capaz de fazer justiça e os danos continuam se acumulando, enquanto apenas ruralistas e seus argumentos forjados e fraudados são ouvidos pelos Três Poderes.
Mas, a campanha por aquelas terras, invadidas a mando de uma multinacional e um governador do Mato Grosso, não ocorreu. O que fez com que eu passasse a me perguntar sobre o que faz com que algumas campanhas decolem, como a de Belo Monte, que envolve o governo brasileiro até em foruns internacionais, ou a de Raposa Serra do Sol, para a qual o próprio Príncipe Charles veio ao Brasil às vésperas da decisão no Supremo.
Infelizmente, de 2005 para cá, o descaso do governo brasileiro com a questão indígena tem sido tão grande, que muitas dessas pessoas que recusaram a participação da antropóloga americana numa eventual campanha por Marãiwatsede passaram a aceitar até mesmo parcerias e financiamentos da USAID, entidade que então eu já conhecia por ter reduzido a ajuda alimentar pela metade em Angola, quando uma em cada cinco crianças morria de fome após uma guerra de quarenta e um anos, em represália porque o governo angolano decidiu que transgênicos só entrariam como farinha, e não como grãos. Enquanto eu pregava no deserto entre indigenistas sobre o absurdo de aceitar parceria com a USAID, chegamos ao cúmulo de ter a própria USAID na mesa de abertura de um curso oferecido pela UnB, em parceria com o IEB e a mesmaUSAID, no qual boa parte das vagas são para indígenas, com todas as lideranças indígenas principais do país presentes, discursando sobre políticas indigenistas… no Brasil???!!! Por que não sobre as de seu próprio país? A mesma USAID, que confirmadamente participou da orquestração do golpe em Honduras, tentou golpe no Equador em 2010, na Venezuela em 2002 e constantemente e pior: estiveram por trás dos protestos em TIPNIS, na Bolívia, recentemente, enquanto por outro lado patrocinavam ali um hotel de luxo para estrangeiros, clandestino, em paralelo a uma refinaria de cocaina, e venda ilegal de madeira… tudo isso, segundo estudos, patrocinado pela USAID que promoveu os protestos indígenas contra a estrada que o BNDES financiaria, supostamente porque isso afetaria a ecologia de TIPNIS… os mesmos índios que vendiam madeira ilegalmente… protestos que por sua vez fizeram com que a popularidade do Evo Morales, o primeiro presidente indígena da história mundial, despencasse em 37%. Só para constar: Evo decidiu não construir a estrada por ali e o BNDES também.
Diante do quadro internacional atual, onde estamos evidentemente sendo cercados por um esquema militar que aprofunda aquilo que alguns teóricos alegam ser conceito do passado, o velho “imperialismo”, tudo isso é extremamente perigoso e como tenho dito, por mais que eu seja contra a política indigenista e de desenvolvimento da Dilma, eu apóio o governo dela, principalmente devido à construção de alianças internacionais fundamentais que foi iniciada por Lula e à qual ela vem dando continuuidade. E considero que tem sido irresponsável a postura dos indigenistas, o que tem levado a um isolamento cada vez maior da questão indígena, e por outro lado a uma radicalização da posição da Dilma, contrária a questões indígenas que ela deveria ver por outro prisma, pelo menos mais bem informado e menos primário. E os ruralistas dando risada, com seus mitos sobre ingerência estrangeira em área indígena, como se território indígena fosse território estrangeiro, que eles têm meios para difundir entre calúnias. Mas, Dilma tem o dever de se informar melhor.
Portanto, o que eu acho fundamental, sim, é a nossa própria capacidade de construir movimentos mais amplos aqui dentro, e não esses apoios duvidosos que procuremos no exterior. Acho que o papel de movimentos no mundo até agora considerado desenvolvido é o de procurar conter o poderio de suas transnacionais. Assim é como podem contribuir para o processo político nos países do hemisfério Sul e não vindo aqui interferir diretamente. O nosso papel é conseguir tirar o movimento indígena do isolamento, aliando-o a outras causas, como seja a questão dos sem terra, dos quilombolas e outras, para cobrar do governo brasileiro uma postura mais coerente, digna e responsável, em relação a esses setores fundamentais da nossa população, da nossa economia e do nosso futuro. Porque os índios sozinhos no Brasil vão sempre depender de andaimes institucionais oferecidos por ONGs, por sua vez dependentes de financiamentos. Eles são muito poucos, muito isolados e dispersos, falam quase duzentas línguas diferentes. Nunca vão se assemelhar em nada a movimentos indígenas nos Andes, ou mesmo ao que os Guarani possam chegar a fazer no Paraguay.
O que não os torna menos fundamentais para o país, mas é nosso papel, como indigenistas, fazer com que isso seja compreendido… inclusive por engenheiros, economistas, todas esses profissionais que geralmente têm uma visão totalmente desinformada sobre questões elementares para os antropólogos. E para crescer em força política, participar da sociedade com mais autonomia, sem depender de andaimes, os indios têm que estar aliados a outros movimentos, fazendo com que sua voz específica seja ouvida e compreendida no seu interior, para que juntos consigamos dividir a terra brasileira e seus recursos conservados para as gerações futuras, de forma justa e conforme a promessas históricas jamais cumpridas.
Portanto, se eu tiver capacidade de agir junto com outros atores, os parceiros que eu quero são estes, que constróem esses movimentos amplos, onde as especificidades são respeitadas e estimuladas a se manifestar. Construindo movimentos amplos, que tenham visibilidade, e não procurando apoios a portas fechadas em gabinetes ou influências de fora para dentro, que podem até funcionar em determinadas circunstâncias, mas não constróem uma sociedade que perdure de forma diferente aqui dentro.