Por Luiz Felipe Albuquerque*
A agricultura passou por uma grande transformação no Brasil nos últimos 10 anos, com o avanço do modelo do agronegócio. Esse modelo está baseado na produção de monoculturas em latifúndios, em uma aliança dos fazendeiros capitalistas com empresas transnacionais e capital financeiro, promove uma mecanização que expulsa as famílias do campo e utiliza de forma excessiva venenos, os agrotóxicos.
Essas mudanças operaram transformações na base material na agricultura, que impõem novos desafios para os movimentos que lutam pela Reforma Agrária e pela agricultura familiar e camponesa. “A dinâmica da luta mudou muito e isso também nos obriga a rever todo o processo. A conjuntura da década de 1980 era uma. Hoje é completamente diferente e muito mais complexa. O inimigo de classes é muito mais poderoso”, avalia o integrante da Coordenação Nacional do MST, Elemar do Nascimento Cezimbra.
Nesta entrevista, Elemar avalia a Reforma Agrária sob o governo Dilma, os avanços necessários para o MST e as perspectivas para o próximo período. Confira:
Qual o balanço da Reforma Agrária?
Em termos de desapropriações de áreas, o balanço foi extremamente negativo. Um numero insignificante de areas foram desapropriadas no governo Dilma, que atenderam ao redor de 6 mil familias. As medidas para desenvolver os assentamentos tampouco avançaram. O programa para agroindústria, a negociação das dívidas e a assistência técnica até tiveram alguns avanços, mas, a política como um todo é extremamente negativa. O governo entrou na lógica triunfalista do agronegócio.
Insistem em manter a invisibilidade do campesinato por esse Brasil afora e todas as contradições criadas por esse modelo, sem levar em conta toda a complexidade, o desenvolvimento cultural, educacional e social do campo.
O governo tinha margem para fazer mais?
O governo podia muito ter outras políticas. Não é só porque há uma correlação de forças desfavorável que não poderia ter alguns avanços. Os avanços que reconhecemos que aconteceram nos últimos anos se devem à nossa luta. Mas, o agronegócio fez uma contra-ofensiva muito forte e o governo se rendeu muito rápido.
O governo atendeu prontamente todas as demandas do agronegócio, como o retrocesso na questão do Código Florestal e a liberação dos transgênicos. O governo comunga dessa visão de desenvolvimento, de mão única, baseado no latifúndio e no agronegócio.
Não tem uma visão do imenso número de camponeses que podem ir parar nas favelas, caso não consigam ficar no campo. Esse é o resultado desse modelo. O contraponto da não realização da Reforma Agrária é a militarização das periferias do Rio de Janeiro e a violência desraigada. O governo não olha esse outro aspecto. Não ouve-se o que está sendo dito por muitos intelectuais. É um governo surdo.
E qual o porquê dessa posição do governo?
Primeiro, as alianças. Mas o próprio governo defendia que essas alianças, com setores centristas e do agronegócio, não impediria que fossem trabalhadas duas visões de agricultura, a familiar e o agronegócio. No entanto, o que se coloca da estrutura do Estado para o agronegócio, os grandes projetos e as transnacionais é imensuravelmente maior do que se destina à pequena agricultura, que é amplamente majoritária. São quase 5 milhões de famílias de pequenos e médios agricultores, além dos sem-terra, que não são beneficiados.
Essa aliança parece estranha num primeiro momento, por vir de um setor que tem uma trajetória de esquerda popular. Mas é por isso que nos governos Lula e Dilma o agronegócio teve avanços como nunca na história deste país, pois houve uma junção. Quando era oposição, essas forças barravam um monte de coisas. Agora não há quem barre. Foi muito fácil passar os transgênicos. Agora estão levando de vento em poupa a questão do Código Florestal. Aumentou o número de crédito para o agronegócio, que está ganhando uma série de outras benesses. É um governo que também se entusiasmou com essa lógica de que o Brasil tem uma vocação agrícola por natureza.
Desde o início, o governo Dilma nunca deu sinais de que investiria na criação de novos assentamentos, mas que daria prioridade ao fortalecimento dos já existentes. Como avalia essa posição?
Cumpriram à risca a ideia de não investir na criação de novos assentamentos. Tanto que não desapropriaram nenhuma área. Havia, inclusive, mais de 100 processos de desapropriações que já estavam prontos e na mesa da presidenta Dilma, mas ela mandou voltar. Isso é impactante para quem esperava algum avanço de um governo com caráter mais popular. Toda a estrutura do Estado, quando se trata de interesses populares, é emperrada. O governo não faz muito para agilizar e acelerar. As políticas para melhorar os assentamentos foi muito tímida. Avançou muito pouco.
As nossas lutas conseguiram acrescentar alguns pontos, colocando alguns recursos para uma coisa ou outra, mas, até agora não se tornaram realidade – pelo menos na rapidez que se esperava e que era possível. Se compararmos o orçamento dos governos anteriores com o governo atual em relação à Reforma Agrária, vemos uma grande diminuição. Ou seja, é um Estado que já não ajuda muito sob um governo com pouca vontade de atender esses setores sociais.
Nesse quadro, qual balanço das atividades do Movimento?
Nossa organização já tem quase 30 anos. O Brasil passa por uma conjuntura de grandes transformações no campo. O capital financeiro globalizado chegou pesadíssimo no Brasil nos últimos anos. Tudo isso causa muitas mudanças. O MST agora está em uma fase de se reposicionar nesse cenário da luta de classes.
Para isso, vamos nos reorganizar, recompor forças e nos reorientar em vários aspectos. Esse é o grande debate que estamos preparando até o nosso 6º Congresso Nacional. Estamos fazendo uma avaliação, procurando entender essa conjuntura complexa com todas suas implicações, dentro do quadro da esquerda no Brasil e do descenso da luta de massas.
Tudo isso também afeta a nossa luta, porque é uma parte desse todo e sofre as influências do que acontece na sociedade. Precisamos avançar enquanto referência de organização de luta. Até o Movimento ser criado, por exemplo, foram seis anos de articulações. Inicia-se em 1979 e o 1º Congresso aconteceu só em 85.
Agora, quase 30 anos depois, precisamos avançar para corresponder às mudanças pelas quais o país passou. Já estamos há quatro anos discutindo e vamos continuar esse debate por mais dois anos. Ao mesmo tempo, vamos continuar fazendo as lutas.
Quais os desafios do Movimento no próximo período?
Depois de 30 anos, o MST se territorializou nesse país. Estamos em 1200 municípios. Nossa primeira tarefa na luta é olhar para dentro, para os nossos assentamentos. Temos que nos reorganizar para apontar uma perspectiva de agricultura diferente, um novo projeto, nos nossos assentamentos. Queremos produzir alimentos, levando em conta o meio ambiente, ter outra relação com a sociedade, recriar comunidades rurais, trabalhar a perspectiva de que o campo tem um lugar, sim, na história do desenvolvimento desse país e que não pode ser um vazio de gente.
Além de organizar nossa casa, temos que olhar para o nosso entorno: dialogar com as comunidades vizinhas, com os municípios. Aprofundar as articulações com a classe trabalhadora, com outras organizações, aliados e com articulações internacionais. Isso nunca poderá ser abandonado. A partir daquilo que o Movimento já conquistou, teremos que nos relançar. Em 1985, não tínhamos quase nada. Os assentamentos estavam começando. Hoje, temos mais de 1 milhão de pessoas na base. São mais de 500 mil famílias. Há toda uma referência que se construiu. E tudo isso se mantém.
É hora de dar um salto de qualidade?
Nessa dinâmica de transformação, há momentos em que se exige saltos de qualidade. O MST está nesse momento. A dinâmica da luta mudou muito e isso também nos obriga a rever todo o processo. A conjuntura da década de 1980 era uma. Hoje é completamente diferente e muito mais complexa. O inimigo de classes é muito mais poderoso. Isso exige do MST um trabalho de base muito mais forte. E nisso temos que dialogar, ouvir, saber das demandas e nos organizar para respondê-las, o que deriva de uma série de outras mudanças.
O que o Movimento precisa fazer para aprofundar esse processo?
Em primeiro lugar, levar esse debate a toda nossa base. Precisamos avançar no trabalho de base para ter maior solidez no próximo período. A militância vai ter que estudar, entender esse momento e aprofundar nesse debate. É a primeira tarefa que já está sendo feita. Nossa base vai ter que entender esse novo período e como é que temos que nos posicionar dentro desse contexto.
Enquanto se faz o trabalho de base, vamos também nos reorganizar. Também temos de seguir, com mais qualidade, na formação de quadros. Qual é a cabeça e o estilo do militante que vamos precisar nesse novo período? Se não tiver gente preparada não conseguiremos conduzir a luta. Os dirigentes que vão conduzir têm que estar colados com a base e bem preparados para essa nova conjuntura. A luta pela terra continua.
Temos que trabalhar melhor com a nossa base a ideia de que a Reforma Agrária clássica, baseada apenas na distribuição de terras, está ultrapassada. A perspectiva é retomar com mais força o trabalho de ocupação de terras e latifúndios.
E o trabalho de base nos assentamentos?
Temos que aprofundar a discussão sobre o tipo de assentamento que queremos, levando em conta a organização, a agroecologia, assistência técnica, a cooperação e a agroindústria. E estamos pressionando o governo para liberar mais investimentos.
Temos uma visão de um camponês desenvolvido, avançado, que busca uma cooperação que não é o fim em si mesma, mas o meio. Esse é outro desafio. Temos que desenvolver os assentamentos buscando uma finalidade social na luta de classes, na perspectiva de uma transformação mais profunda. Tudo isso são meios, mecanismos e instrumentos para essa perspectiva maior, a perspectiva da utopia. Quem perde a utopia está perdido. Essas tarefas são grandes, mas temos que avançar.
Qual o papel de juventude nesse debate?
Precisamos fazer uma discussão forte sobre o que nós queremos com as nossas crianças e nossa juventude. Qual é o lugar deles e como fazer com que participem? É um trabalho que vamos retomar com mais força. O setor de gênero, as questões das mulheres, também é outro ponto. Temos que acelerar o processo de participação das mulheres na base, com mais efetividade, clareza e intencionalidade.
Temos que traçar metas, aprender a nos organizar com menos espontaneidade. Junto à utopia, temos que traçar a estratégia e suas diretrizes. Traçar ações e avaliá-las. Trabalhar planejadamente é algo muito difícil em uma organização camponesa, mas temos que nos organizar.
Essa qualidade não é só política e ideológica, é também técnica e administrativa. Organizar bem os recursos, viabilizar as finanças e qualificar a relação com o Estado. Temos que trabalhar seriamente o lado da autossustentação, com muito mais efetividade para podermos nos colocar com mais força no próximo período.
*Da Página do MST