Carta de Daniel Tygel
Abaixo carta de despedida de Daniel Tygel da secretaria executiva do FBES, espaço que militou por anos contribuindo de forma significativa, bela e comprometida para o movimento de economia solidária.
“Estou saindo da secretaria executiva do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES). E esta é a minha carta de despedida a cada um e cada uma de vocês que fazem parte da construção deste movimento.Nestes tempos de internet e milhares de e-mails todos os dias, é difícil parar para escrever uma carta de verdade. Daquelas que são escritas à mão e são postadas pelo correio. Que têm várias páginas e que exigem um momento tranquilo de leitura. Resolvi escrever uma carta assim. Por isso, se você está com muita pressa, pode desistir de ler. Ela é pausada, tranquila, lenta.”
Para facilitar, de acordo com meu estilo pouco poético, dividi esta carta em seções bem definidas: começo partilhando as razões de minha saída da secretaria. Sigo matando a curiosidade sobre o que vou fazer a partir de agora. Daí aproveito para lembrar de alguns fatos e momentos que me marcaram nestes anos na secretaria executiva. Ouso então expor algumas ideias sobre possíveis rumos do movimento de economia solidária. E termino com o mais importante: a gratidão, que é o sentimento que me domina neste instante e sempre que penso em vocês
Razões de minha saída
No dia 2 de dezembro de 2004, fui surpreendido por um telefonema de Brasília, em que era chamado para trabalhar na secretaria executiva do FBES. Nesta época, eu morava em Caldas, uma cidade de 12 mil habitantes no sul de Minas Gerais, e estava muito envolvido com a vida e mobilizações da cidade. Por isso, aceitar não foi fácil, mas como era apenas por 6 meses, decidi experimentar esta aventura. Comecei em meados de dezembro de 2004, e estes 6 meses se transformaram em exatos 7 anos!
Foram anos em que me dediquei de corpo e alma. No início contribuindo na área de comunicação, e então em 2005 sendo eleito pela coordenação nacional para apoiar a coordenação executiva na articulação política do FBES.
A razão de minha saída pode ser expressa em uma frase: o fim de um ciclo. Percebi isso no dia 5 de maio de 2011, andando de metrô em Brasília, quando tive uma espécie de “visão”. Senti o movimento de economia solidária despertando, com beleza, autonomia e um projeto político necessário aos tempos atuais. E senti que era a boa hora de partir. No dia seguinte, escrevi um texto, “Economia Solidária: o despertar de um novo movimento social”, que está em meu blog do Cirandas: http://cirandas.net/dtygel/blog/economia-solidaria-o-despertar-de-um-novo-movimento-social. Aconselho a leitura, para entender o sentimento que me tomou naquele momento e me fez tomar esta decisão.
Nestes sete anos na secretaria executiva do FBES, tive muitas vezes a sensação de que não aguentaria mais e deveria sair. Mas eram momentos de tensão, em que conflitos vinham à tona, e o desânimo se abatia sobre mim. Desta vez foi diferente. Pela primeira vez, o sentimento de querer sair veio acompanhado de um sentimento sereno de realização, de dever cumprido. De ter dado o que podia dar, de ter ajudado a construir muita coisa. Um sentimento de que, a partir de agora, minha permanência seria artificial, não mais necessária, até mesmo prejudicial. Assim como a morte tem a beleza de significar um gesto de dar espaço à nova vida, senti que é o momento de sair e abrir espaço para novos jeitos e modos de ver e organizar o movimento.
Nada mais coerente com o conceito de autogestão, em que a rotatividade sempre se faz necessária a qualquer coletivo, seja um empreendimento, seja uma secretaria executiva nacional.
Saio mais que feliz: saio realizado, e cheio de entusiasmo com relação às perspectivas do FBES. Confesso que não é nada fácil. Se estivesse desanimado, triste, fragilizado, seria mais fácil abandonar este local. Este entusiasmo com relação aos próximos passos do FBES me dão a toda hora uma tentação de continuar mais um pouco, tentação esta que felizmente passa quando percebo este fim de ciclo e a necessidade desta rotatividade.
No dia 11 de junho, na reunião que ocorreu depois daquele 5 de maio, anunciei à Coordenação Executiva do FBES a minha decisão, que foi muito bem acolhida, e onde acordamos que faríamos um processo de transição. Esta transição está terminando hoje, e foi extremamente gratificante.
Uma etapa importante foi a X Reunião da Coordenação Nacional, ao final de agosto deste ano, em que pude expressar para todas e todos as/os 100 integrantes de todo o país esta decisão. Foi um momento que jamais esquecerei.
Próximos passos
Uma pergunta que tenho ouvido de muitas/os amigas/os e conhecidas/os é a seguinte: “mas o que você vai fazer agora?”.
Um sonho muito antigo é o de viver de um empreendimento de economia solidária. Desde 2009-2010, um grupo de pessoas tem conversado sobre isso e partilhado o mesmo sonho. É daí que nasce, em 2011, a EITA – Educação, Informação e Tecnologia para Autogestão. Somos 7 pessoas que estão começando a tocar este empreendimento, cuja missão é desenvolver tecnologias da informação e metodologias participativas para sua apropriação voltados ao fortalecimento dos movimentos sociais. É um coletivo autogestionário, em rede (as/os integrantes estão em 5 cidades diferentes), a serviço dos movimentos sociais. Estamos muito empolgadas/os e ao mesmo tempo cientes dos desafios que nos esperam pela frente, pois tocar e viver de um empreendimento solidário não é nada fácil. O Dia Nacional da Economia Solidária de 2011 foi um marco para a EITA, em que lançamos uma singela homenagem na forma de um cartãozinho, que está provisoriamente em www.eita.org.br.
Com relação ao local de morada, ainda não consegui definir. Acredito que saio de Brasília, e há algumas possibilidades de cidades em que gostaria de passar um tempo. Todas cidades pequeninas, em que as pessoas se dão bom dia na rua, e em que a feirinha semanal tem produtos agroecológicos diretamente das/dos produtoras/es rurais…
É certo que não estou abandonando o movimento de Economia Solidária. Pelo contrário. Agora estarei lá na ponta! Seja no fórum local de economia solidária, seja através da EITA, seja apoiando atividades nacionais organizadas pelo FBES, continuarei presente e ajudando nesta construção!
Muitas coisas podem acontecer e mudar estes rumos, mas tenho um desejo fundamental: o de que minha vida seja dedicada à luta pela vida, em todas as suas formas. É isso que norteará as futuras decisões, caso outras possibilidades apareçam.
Fatos e momentos marcantes
É inevitável, neste momento, olhar para trás e recordar momentos que me marcaram nestes sete anos. Estou com uma vontade muito grande de escrever memórias sobre este período, com fotos e detalhes, mas isso será feito no futuro, quando tiver disposição e tempo.
Agora, gostaria apenas de partilhar resumidamente alguns destes fatos, sem entrar em muitos detalhes, como forma de pequena homenagem ao FBES através de um “recordatório”:
Cada Fórum Social Mundial foi importante para o movimento de economia solidária. Lembro-me especialmente do FSM de 2005, em que acabara de ser contratado para a secretaria executiva do FBES, e em que, pela primeira vez, tivemos uma grande feira e um território específico para a economia solidária. Trouxemos 54 empreendimentos solidários dos 27 estados, e ali se desencadeou uma participação da economia solidária nos demais FSMs na forma de feiras, programação específica do tema e apoio na própria estrutura do evento… Outro destaque em minha memória foi o Fórum Social Mundial de 2009, em Belém/PA, em que participamos de forma muito forte na marcha com a grande bandeira da Economia Solidária, e apresentamos o documento final de Economia Solidária na Assembleia dos Movimentos Sociais seguido do lema criado na marcha: “Economia é todo dia! A nossa vida não é mercadoria!”.
No início, também, em 2005, vivi a alegria de lançar a nova versão (hoje já muito antiga, precisa ser renovada novamente!) do site do FBES www.fbes.org.br: com uma dinâmica grande, possibilidade de alimentação diretamente pelos fóruns estaduais, e com inúmeras ferramentas de divulgação e partilha, como a biblioteca, as reflexões, as oportunidades. Foi numa madrugada de 2005, já nem lembro a data, mas era em maio ou junho, que me emocionei com o lançamento da nova página.
Logo em seguida, lançamos o boletim do FBES, que hoje já está na sua edição 94. Na época, o boletim era enviado para umas 300 pessoas. Hoje, quase 13 mil pessoas o recebem. Mas havia uma reclamação: nem todo mundo do movimento acessa e-mails, pelo contrário. Com este problemão na cabeça, desenvolvi em 2006 o “Mamulengo”, que permite que qualquer pessoa possa selecionar as notícias que interessa de qualquer boletim, e transformar num boletim para impressão, para levar para atividades como reuniões dos fóruns e distribuir para quem não tem acesso a internet. O momento em que o primeiro boletim impresso saiu com sucesso também foi uma forte emoção…
Na construção do mapeamento, o posicionamento do FBES era de que os dados tinham que servir para algo mais do que somente políticas públicas ou estudos acadêmicos. Conquistamos então a portaria no MTE que autorizava o uso de alguns dos dados dos empreendimentos para montagem de “catálogos”. Foi numa reunião da Coordenação Executiva, em 2007, que comecei a brincar de fazer um “farejador da economia solidária”. Foi muito divertido vermos que era possível colocar os pontos no mapa. Em alguns meses, o farejador foi realmente lançado ao público, em www.fbes.org.br/farejador, junto com a ferramenta de geração de catálogos para impressão, no formato de páginas amarelas. Durante muito tempo, havia de 100 a 200 consultas ao farejador por dia. Ainda hoje, 5 anos depois, o farejador é consultado por 20 a 30 pessoas diariamente.
Ainda em 2007, pensando no uso dos dados do mapeamento, iniciou-se uma aliança que perdura até hoje com uma cooperativa da Bahia, a Colivre. É desta aliança que surgiu o que em maio de 2009 passou a se chamar CIRANDAS, mas que no começo chamava-se “sistema FBES” ou então “anheteguá”. Foi muito emocionante o processo de consulta pública e votação para se chegar ao nome Cirandas. Lembro de outros candidatos a nome, como “feiranarede.net”, “bodegasolidaria.net”, e “e-solidaria.net”. Havia 38 nomes, e Cirandas foi o vencedor, coroado com a música elaborada por Eliel, no dia 28 de maio de 2009, uma bela versão da Ciranda de Lia de Itamaracá e que hoje é cantada em todo o país: http://www.iteia.org.br/audios/musica-do-cirandas. Hoje o Cirandas está cada vez mais consolidado, e é uma ferramenta importante desenvolvida pelo FBES e direcionada diretamente aos empreendimentos de Economia Solidária e consumidoras/es em todo o país. E as novidades chegam a cada momento, em especial as relacionadas à articulação econômica entre empreendimentos e para as vendas na internet. O Cirandas é hoje um grande mutirão, coordenado pelo FBES.
Um período muito forte foram os dois anos de construção da IV Plenária Nacional de Economia Solidária. Iniciado num debate de reestruturação do FBES a partir da consolidação do Conselho Nacional de Economia Solidária, estes dois anos foram de intensos e corajosos debates, em que todas as fragilidades, acúmulos, contradições e posicionamentos do movimento de economia solidária puderam se expressar. Costumo dizer que a IV Plenária foi um processo de expor as vísceras internas do movimento, uma reestruturação muito intensa, que levou a grandes tensionamentos na busca de construção de autonomia do movimento com relação a partidos e a governo. Tensões tão grandes que chegaram ao ponto de um conflito muito duro, profundo, nas últimas horas da IV Plenária Nacional, em 2008. Mesmo assim, a Coordenação Nacional conseguiu ao final de 2008 definir pontos que ficaram pendentes por causa dos conflitos, e o FBES saiu com um caderno de orientações deixando muito clara a sua natureza, estrutura, bandeiras e prioridades de ação. Em poucos momentos da vida aprendi tanto quanto nestes dois anos de intensos e profundos debates sobre o movimento…
Claro que as duas Conferências Nacionais de Economia Solidária foram marcantes, mas a segunda, em 2010, teve caráter político muito mais aprofundado. Foi nesta Conferência que conseguimos realizar uma marcha de mais de 1.000 pessoas até a Câmara dos Deputados, ao mesmo tempo em que apresentávamos a pauta legislativa do movimento de economia solidária para as/os deputados presentes na atividade que organizamos na casa. A II CONAES teve intensa participação dos fóruns municipais, regionais, estaduais e nacional em todas as suas etapas, e conseguiu chegar a um documento muito mais vivo e expressivo que o da I CONAES, graças a esta intensa participação.
Internacionalmente, o FBES intensificou suas ações e ajudou na construção e fortalecimento da RIPESS (tanto a nível mundial como na América Latina e Caribe) e do EMS (Espaço Mercosul Solidário). Sempre foi uma dificuldade manter esta agenda internacional viva, já que a realidade brasileira já é bastante exigente. Mas mesmo assim o FBES teve participações importantes nas várias atividades internacionais. Sinto que, agora, a nova coordenação executiva está dando um caráter mais estratégico para estas ações, o que será muito positivo para o movimento mundialmente. Mais recentemente, fiquei bastante emocionado com a realização do FIESS (Fórum Internacional de Economia Social e Solidária) em Montreal, no Quebec, nem tanto pelos debates em si, mas pelo caráter simbólico de ter acontecido no exato momento em que as/os indignadas/os estavam acampados em mais de 800 cidades em 90 países, e também pelo fato do evento ter contado com nada menos de 1.200 pessoas de 57 países diferentes! Participei fortemente da iniciativa de alterarmos a programação do FIESS para fazer uma marcha com mais de 500 pessoas de dezenas de países até o acampamento de indignados de Montreal para demonstrar nosso apoio, e depois realizarmos algumas oficinas de trocas de experiências com eles. Foi um momento muito rico.
Lembro das grandes feiras, como as de Santa Maria (em especial a do FSM 2010 depois de ter havido um injusto cancelamento da feira por causa da gripe suína em 2009), da TEIA (articulando pontos de cultura e economia solidária em 2006), as inúmeras feiras estaduais e especialmente as microrregionais em todo o país. Foi muito rico acompanhar (e participar em alguns casos) toda esta movimentação, divulgação da economia solidária e as sistematizações sobre os métodos participativos e autogestionários de construí-las.
Vem-me à memória também o lindo ato das mulheres durante a IV Plenária Nacional, e depois outra ação direta durante a II CONAES, em que as mulheres destacavam a importância do debate das questões de gênero para dentro do movimento. Estas ações, em especial na IV Plenária, levaram o FBES a ter uma política em que qualquer instância ou GT deve ter no mínimo 50% de mulheres. Aliás, as representações do FBES em eventos e atividades frequentemente são de mulheres, trazendo diferenças às composições normalmente ocupadas apenas por homens. Aprendi muito sobre as contribuições das mulheres para a economia solidária e para o conceito mesmo de autogestão.
Não sei se por estar mais perto, em que os acontecimentos ficam mais frescos na memória, ou por ter sido um ano intenso, guardo muitas recordações de 2011. Tenho o sentimento de que 2011 foi um ano histórico para o movimento de economia solidária no Brasil. Os momentos que se destacam são o processo mobilizatório e de negociação com relação ao PL 865; o Encontro de Diálogos e Convergências; a Campanha pela Lei da Economia Solidária; a conquista de programa temático no PPA 2012-2015; e a escolha da nova Coordenação Executiva do FBES.
Com relação ao PL 865, não tenho dúvidas de que há um “antes” e um “depois” desta mobilização. Foi impressionante ver o movimento afirmando explicitamente um projeto político e uma identidade, sem medo de enfrentar a chamada “política pragmática” partidária, ou o posicionamento do governo de que não havia outra alternativa. O movimento soube afirmar sua identidade e projeto político, com beleza, força lúdica e capacidade de mobilização, em pouquíssimo tempo e sem nenhum apoio. Ainda bem que estão bem registradas as audiências públicas, mobilizações, artigos, cartas de fóruns e de movimentos nacionais e internacionais, vídeos e fotos. Em especial, a sistematização final dos resultados das audiências públicas expressou bem o posicionamento do movimento, e a reação da presidência da república de reconhecimento deste posicionamento foi uma vitória histórica. Vale sempre relembrar este período consultando na página www.cirandas.net/pl865.
Este processo intenso, em que efetivamente tivemos a maior mobilização do movimento de Economia Solidária no país, foi coroado quando, na reunião inter-conselhos, os mais de 500 conselheiros da sociedade civil de 50 conselhos afirmaram que era necessário acrescentar um eixo de economia solidária articulada ao desenvolvimento no Plano Plurianual (PPA) 2012-2015. Isso resultou na criação do eixo “Desenvolvimento Regional, Territorial e Sustentável e Economia Solidaria” que, apesar de seu ainda baixo orçamento, complementa a vitória do PL865 ao colocar a economia solidária lado a lado com a perspectiva de desenvolvimento. Na época, afirmei que agora sim estávamos na “boa briga”: a disputa sobre o modelo de desenvolvimento!
Os dois fatos acima se complementam ainda mais com a realização do Encontro Nacional de Diálogos e Convergências (www.dialogoseconvergencias.org). O FBES foi uma das nove redes organizadoras do encontro, num processo participativo de um ano e meio. Conseguiu-se consolidar uma afirmação política bastante firme quanto à orientação do modelo de desenvolvimento necessário ao país. E ao mesmo tempo desenvolveu-se uma metodologia muito rica, que abre campos diferenciados na forma de se fazer política: a partir dos territórios e das experiências práticas, ao invés de partir das teses e teorias acadêmicas ou das lideranças nacionais. Este encontro foi, sem dúvida, um momento muito importante não só para o movimento de economia solidária, mas para vários outros no sentido de buscar uma nova onda de capacidade crítica, propositiva e mobilizadora dos movimentos sociais brasileiros.
Durante a X Reunião da Coordenação Nacional, foi emocionante acompanhar a escolha da nova coordenação executiva, que agora, com apenas 4 meses de idade, já está mostrando a que veio, tocando processos rumo à V Plenária, agendas parlamentares, a criação de um fundo rotativo da coordenação executiva, ação internacional, e um modelo mais partilhado e descentralizado de ação política. Estou muito feliz com esta coordenação executiva que tem a importante tarefa de organizar a V Plenária Nacional de Economia Solidária. Além disso, nesta mesma reunião, o lançamento da Campanha pela Lei da Economia Solidária foi outro marco do qual não esquecerei tão cedo. Ficou muito claro que o direito ao trabalho associado é uma pauta que vai muito além da economia solidária, como se comprovou com a articulação com as campanhas de reforma política e a campanha contra os agrotóxicos e pela vida.
Isso me lembra de outras reuniões da Coordenação Nacional do FBES nos anos anteriores em que convidamos representantes de outros movimentos sociais para diálogo, o que enriqueceu a visão de conjuntura e das bandeiras específicas.
Estes são alguns momentos mais abrangentes, mas há inúmeros outros fragmentos que me marcaram profundamente, e que não vou esquecer: determinados atos, decisões, impasses, conflitos, decepções, alegrias, oficinas autogestionárias, surpresas. Momentos de limite. Momentos de êxtase. Foram sete anos muito intensos, de altos e baixos, mas sempre plenos…
Sentimentos sobre os rumos do movimento
Tenho a convicção de que o modelo de desenvolvimento tendo como base a Economia Solidária é melhor em inúmeros aspectos do que o modelo de desenvolvimento atualmente hegemônico, defendido inclusive por este governo. Esta convicção é antiga, e é o que me fez mergulhar de cabeça neste movimento.
A novidade é que estamos numa janela de oportunidades, em que é possível divulgar as nossas propostas para o mundo não simplesmente como denúncia, mas também como orientações em um ambiente de incerteza e de crises. Não é à toa que o prêmio nobel de economia de 2010 foi para uma mulher que afirmou que a gestão coletiva de bens comuns é mais eficiente do que a gestão privada. Estamos num impasse paradigmático que permite a afirmação da economia solidária como uma estratégia mais eficaz para lidar com as crises do que o “mais do mesmo”. É claro que se deve continuar as denúncias aos donos do poder que não quererão largá-lo, mas acredito que a novidade é que devemos ampliar a ação no campo simbólico, sobre o sentido de realização pessoal, felicidade, formas de ver o mundo, qualidade de vida, bem viver.
É por isso que acho que nossa V Plenária tem que ser lúdica, bela, cheia de propostas para a sociedade. Deve falar para fora, para o mundo. Se a IV Plenária foi momento de expor as vísceras e olhar para dentro, a próxima é para dialogar com a sociedade, as/os consumidores, os outros movimentos sociais.
O processo de Diálogos e Convergências caminha junto com esta janela: o método coletivo, das nove redes, desenvolvido a partir dos territórios, das experiências práticas e da articulação indissociável entre denúncia, resistência e construção de alternativas, é muito forte. Acredito que o FBES deva colocar energia em contribuir na construção de ambientes territoriais de diálogos e convergências em cada estado, município, microrregião.
Tanto a V Plenária como os desdobramentos dos Diálogos e Convergências devem avançar no sentido de um método de fazer política que tenha como fundamento estes valores e princípios. Uma forma autogestionária e democrática de fazer política, que não venha dos acordos “pragmáticos” ou casuistas dos gabinetes fechados, mas sim da vida, criatividade, inovações, lutas e realidade de cada território.
Acredito ser esse o principal desafio do FBES e das demais redes e movimentos articulados: construir esta forma de fazer política através da expressão das experiências concretas, das práticas, da ponta, da vida nos territórios, da sistematização e análise a partir daí. É necessária uma renovação na política, e os partidos progressistas devem ser subordinados a esta lógica, e não o contrário.
Tenho o sentimento também da necessidade de se rever a proposta de um Ministério da Economia Solidária. Neste espírito de diálogos e convergências, talvez seja melhor nos prepararmos para buscar articular, em várias conferências diferentes, uma pauta comum em termos de lugar institucional, ao invés de um lugar temático. A Economia Solidária se inscreve no debate do desenvolvimento, e é aí que penso que devem convergir nossas propostas: que tal a defesa de um “Ministério de Desenvolvimento Territorial, Sustentável e Solidário”?
Isto é algo a se pensar, sempre lembrando que não é o fundamental: para além do lugar institucional, o desafio nesta V Plenária será a renovação da Plataforma Política do Movimento de Economia Solidária: um novo conjunto de pautas, propostas de ações e de políticas públicas para o desenvolvimento do país deve ser construído pelo FBES. Há elementos que me dão a confiança de que esta tarefa será realizada com sucesso.
A tendência no atual governo está sendo de intensificar a criminalização das organizações e movimentos sociais. A contraposição deve se dar na convergência e no diálogo com a sociedade, em especial no campo simbólico, desmistificando certas ideias culturalmente impostas, tais como a da “imparcialidade da ciência”, a “eficiência das empresas” e a “necessidade do agronegócio”.
Esta capacidade de fazer uma crítica construtiva ao modelo desenvolvido por este governo passará pela necessidade do FBES conseguir estar à altura do que o movimento conseguiu conquistar nas mobilizações do PL865: é preciso conseguir escapar das armadilhas dos acordos de corredor ou de partido. É preciso sempre, em todo o momento, ter clareza do nosso projeto político e, com isso, de nossa autonomia enquanto movimento. Para isso, é preciso saber lidar muito bem com os partidos (sejam eles de esquerda ou de direita) e com o governo (seja ele municipal, estadual ou nacional). Não se trata de demonizar, pois o diálogo deve sempre ser feito, mas somente de ter clareza dos papéis e da forma de dialogar com estes espaços. Vejo muito positivamente a capacidade do FBES neste campo, graças à força acumulada e expressada neste ano de 2011, que ainda é pequena, mas bastante legítima e sábia.
Para isso, é preciso que o FBES em nível nacional invista na formação política, fortalecimento, diversificação de atores e interiorização dos Fóruns Estaduais. À medida que o FBES vai se posicionando, os Fóruns Estaduais devem ser a força política que direciona e orienta esta ação. O CFES já deu contribuições neste sentido, por exemplo com os módulos de formação na Escola Nacional Florestan Fernandes sobre o movimento de economia solidária. Mas ainda é preciso uma energia especial e bastante intensa no fortalecimento de nossas bases políticas.
Este é o momento, e o FBES (em especial os Fóruns Estaduais e Locais!) tem todas as condições de não deixá-lo passar.
Um dos aprendizados que tive nestes sete anos, em especial no conflito da IV Plenária e depois nas mobilizações do PL865, e que levarei comigo para onde for, é de que sempre devemos confiar no movimento lá na ponta. É ali que mora a sabedoria do movimento. Se estiver em dúvida, consulte quem está na ponta, vivendo a economia solidária no território.
Gratidão
Antes de trabalhar no FBES, uma sensação me perseguia: eu sentia que tinha muito a oferecer, mas que as coisas que estava fazendo exigiam pouco de mim. Era uma sensação de angústia, de semente não germinada. Trabalhando na secretaria executiva do FBES, esta sensação foi embora. Se há algo que posso afirmar com convicção sobre este período é que dei o máximo de mim. Por isso, sinto-me realizado. Dar o máximo de mim significou sentir-me pleno, inteiro, vivo. Tanto nas dores e momentos difíceis como nos prazeres e momentos de júbilo.
Mas uma coisa sempre me surpreendeu: tenho muitas falhas e contradições, obviamente, e estava envolvido no FBES de corpo e alma, o que acarretou em erros em vários momentos. Mesmo assim, fui acolhido generosamente por cada uma e cada um das/os militantes que fazem parte do FBES, desde o local até o nacional. Esta generosidade me ensinou muito. Me tornei uma pessoa melhor. Aprendi muito com ela.
E é a esta generosidade, a este carinho, a este acolhimento das/dos que fazem o movimento de Economia Solidária que eu sinto uma enorme gratidão.
Agradeço.
Agradeço a cada empreendimento que sobrevive mais um dia, mais um ano, sem patrão nem empregado, com respeito à vida e à autogestão, ao mesmo tempo que participa dos fóruns de economia solidária e contribui com o movimento. Cada novo empreendimento solidário é um passo na transformação do mundo;
Agradeço a cada entidade que continua sua ação de apoio e que sinceramente contribui com o movimento;
Agradeço a cada gesto solidário e de luta de cada militante do movimento. A cada compromisso assumido, a cada nova prática realizada de consumo responsável, de participação em reuniões, articulação em rede e em mobilizações por um mundo diferente.
Agradeço o carinho e a amizade que me acompanharão pelo resto de minha vida. São tantas e tantos amigas/os espalhados por aí que nem posso contar.
Espero conseguir retribuir, ao longo de minha vida, toda esta generosidade e gratidão que sinto por vocês.
Há um universo de pessoas lutando por outro mundo, algumas já mortas, outras em situação de injustiça e pobreza, e outras no movimento social. A cada um/a de vocês, a cada uma destas pessoas, expresso um agradecimento sincero. E, junto com este agradecimento, desejo também paz, força e coragem para seus próximos passos.
Vida quer viver
Economia solidária: a economia nas mãos dos 99% da população!
Fonte: www.cirandas.net/dtygel/blog/carta-de-despedida-da-secretaria-executiva-do-fbes