Por Leandro Uchoas
No Rio de Janeiro, megaprojetos de desenvolvimento estão sendo instalados a um alto custo socioambiental. O Brasil sofre com um modelo atrasado de desenvolvimento e com o crescimento galopante de sua dívida pública. Na América Latina, povos inteiros enfrentam as mais distintas dores. Assuntos diversos? Sandra Quintela, recentemente nomeada coordenadora regional da Rede Jubileu Sul, uma articulação de movimentos e ONGs de países do Sul, prova que não. Nesta entrevista, ela fala dos resultados da missão de entidades à região de Sepetiba para investigar os danos socioambientais da Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA). Aborda também o drama vivido pelo Haiti, as causas da dívida pública brasileira e as estratégias equivocadas de enfrentamento à crise socioeconômica global.
Brasil de Fato – Depois da missão que foi à CSA, da repercussão que houve, está havendo avanço? Sandra Quintela – A missão foi um passo importante no envolvimento de outras organizações que conheciam a luta, mas não a realidade concreta. A Defensoria Pública acaba de ir até lá. Um grupo de pescadores de lá foi até Anchieta (ES), em solidariedade aos impactos da CSU [Companhia Siderúrgica do Ubu]. A Fiocruz está fazendo um seminário interno para envolver toda a instituição. Isso tudo é consequência da missão. Os dados que nós colhemos também serão mais um instrumento para dar visibilidade. Nós sabemos a realidade da região: grupos milicianos, associações controladas por eles, a empresa usando uma tática cruel de cooptação (promovem cursos de meio ambiente para formar a cabeça de professores, contratam gente para dialogar com a comunidade, criam telefone 0800). Eles vão na contramão de tudo o que está sendo discutido hoje, que é a economia de baixo carbono. O capital está se renovando, criando novas fronteiras de acumulação, com esse argumento do “capital verde”. E a gente, aqui, importando um modelo que a Europa não quer mais.
A gente vinha acompanhando esses problemas há quatro anos, e existia um bloqueio midiático. Agora, parece que começou a sair bastante na imprensa. Isso pode reforçar a luta? Claro! Quanto mais as pessoas estiverem informadas, mais isso pode criar uma massa crítica. Os intelectuais orgânicos do Rio de Janeiro, e os artistas, deveriam estar mais envolvidos. Porque é o Rio de Janeiro que está em jogo. De um lado, constrói-se um polo siderúrgico-portuário-mineiro, e do outro lado um polo petroquímico. E a cidade no meio.
Mas, pelo que você está dizendo, na Academia também não é muito fácil o diálogo. Não. É uma cegueira. É como se o Rio de Janeiro não se pensasse. A Academia aqui está pensando a Amazônia, o Nordeste, o mundo, e há poucos setores pensando o próprio Rio de Janeiro. E essa é a cidade, entre as grandes metrópoles, onde está mais em disputa o projeto do capital. Porque a gente está transformando-a, há algum tempo, em uma cidade-produto, uma cidade para ser vendida. O mundo nos conhece primeiro a partir do Rio de Janeiro. É um produto comercializado lá fora.
E está acontecendo no estado todo. Tem também, por exemplo, o Porto do Açu. Tem o Porto do Açu no norte, onde também haverá uma siderúrgica para exportação. Completa-se uma cadeia. A CSA aqui, a siderúrgica do Açu e a CSU no Espírito Santo. Estamos com as três instaladas na costa, e todas se alimentando do minério de ferro de Minas Gerais. Vão se tornar Vazios Gerais.
Eu queria que você falasse um pouco do modelo de desenvolvimento representado por esses projetos. O Brasil é o único país do mundo que reúne terras, água e luz disponíveis em grande quantidade. A riqueza mineral também é enorme – temos toda a tabela periódica. Então, o capital visa acumular o máximo. Nesses dez anos do século 21, explorou-se mais carvão mineral do que nos últimos séculos. Na Europa, eles agem diferente. Não têm mais planta lá – instalam aqui. É fácil ser consciente assim, deixando a parte suja para a gente. Na CSA, eles tiraram o emprego de oito mil pescadores e vão deixar dezenas ou centenas de trabalhadores com problemas de saúde. Isso tudo acontecendo com forte suporte financeiro do BNDES. Foi preciso capitalizar o BNDES criando títulos da dívida pública brasileira – e ele foi capitalizado em mais de R$ 180 bilhões. O governo toma emprestado no mercado internacional a uma taxa de juros altíssima, de 8% a 10%, e passa ao BNDES, que vai emprestar a uma taxa de 1% a 2% para a Vale, a Gerdau, a MMX etc. É uma lógica saqueadora – de recursos naturais, de força vital e de dinheiro público. As empresas beneficiadas – Odebrecht, Camargo Correa, Andrade Gutierrez – são uma caixa preta. Quem controla? São mesmo brasileiras? Tenho as minhas dúvidas. A gente vem trabalhando isso há mais de dez anos, a Rede Jubileu Sul. Buscamos provar que nós, do sul, somos os grandes credores da dívida social e histórica. Veja a lógica. O BNDES se capitaliza com títulos da dívida pública brasileira, e isso a gente vai pagar, porque quase 40% do Orçamento da União são para isso. É um escândalo. E não se fala disso. Os grandes temas do nosso projeto de país estão silenciados. E a dívida é o que financia esse modelo de desenvolvimento, que é uma via de mão dupla. Você se endivida para financiar esse modelo, e ele se mantém porque você tem que pagar a dívida.
Você foi escolhida coordenadora regional da Rede Jubileu Sul. Em que isso muda a sua atuação? Agora eu tenho que estar mais vinculada a temáticas regionais. Em Cancún [onde se realizou a COP-16, encontro da ONU sobre mudanças climáticas], eu preparei toda a articulação com as redes regionais. Nós temos na região um grande patrimônio, que foi a campanha continental contra a Alca [Área de Livre Comércio das Américas]. Até 2005, era o maior espaço de articulação do continente. Hoje, muitas das organizações que fizeram a campanha continuam articuladas, seja na Aliança Social Continental, na Rede Jubileu Sul, no Grito dos Excluídos, na Marcha das Mulheres, na Via Campesina. A gente está sem uma agenda programática, uma bandeira de luta comum, que a Alca era. Acho que a luta comum agora é contra a financeirização de tudo o que se relaciona com a destruição do planeta.
Você está querendo dizer que a solução que se está propondo para o aquecimento global é a quantificação financeira de tudo? É. Vou explicar. A crise que a gente vive na verdade é social, não é do capital. Porque o capital sempre se renova. Com a crise, de uma hora para outra surgiram trilhões. Até hoje não se sabe quanto. Fala-se em valores de 7 trilhões a 18 trilhões de dólares. De onde esse dinheiro saiu? Do Estado. A Grécia faliu. Portugal e Espanha estão falindo. Esses países tinham um modo de vida que foi absolutamente transformado, para se inserir na economia unificada europeia. Estão pagando a conta agora, com ajuste social, de uma sociedade que conheceu o Estado de bem estar social. Essa guerra cambial entre China, EUA e Europa pode se transformar numa disputa muito mais grave. Mas ninguém quer discutir isso. Estão dando o mesmo remédio que deixou o paciente enfermo. No entanto, eles estão criando outros mecanismos de desenvolvimento “limpo”. Por exemplo, a Alemanha se comprometeu a reduzir, pelo Protocolo de Kyoto, 5% de suas emissões de carbono. Se reduzir de 8% a 10%, ela tem o crédito para comercializar no mercado internacional os títulos do mercado de carbono. Se ela transfere uma planta para o Brasil – a CSA por exemplo –, ela pode negociar os títulos da poluição que deixou de fazer na Alemanha. Eles estão querendo quantificar até o pólen da abelha. Vai virar título. É mais dinheiro num mercado que já está transbordando de dinheiro fictício.
Queria que você falasse um pouco de seu envolvimento com o Haiti. Nós, da Rede Jubilei Sul, começamos a trabalhar o Haiti em julho de 2004. O país foi primeiramente ocupado por Canadá, EUA e França, e depois veio a Minustah. Em 2005, fizemos a primeira missão ao Haiti. Já fizemos relatórios, vídeos, continuamos denunciando, para não deixar o Haiti ser esquecido. Algumas organizações silenciam por cumplicidade, por não querer se opor ao governo. Mas agora tem um dado novo. A população no Haiti está se revoltando contra a Minustah. Não aguentam mais. Quem vai ao Haiti diz que parece que o terremoto foi ontem. Os destroços permanecem. O Estado lá está completamente desmantelado. Três dias depois do terremoto, George W. Bush e Bill Clinton foram nomeados os grandes patronos do fundo para a reconstrução do Haiti. Isso não pode ser sério. Hoje, grandes ONGs disputam territórios. Os acampamentos são controlados por ONGs que não dialogam nem se interconectam. Está comprovado que essa bactéria, que trouxe a epidemia de cólera, foi trazida da Ásia. A gente está propondo um seminário, para o ano que vem, sobre os seis anos da Minustah. Nossa avaliação é negativa – não existem logros reais. Já foram gastos mais de 4 bilhões de dólares só para manter a Minustah.
Não existe também nenhuma projeção de fim à ocupação? Quando eles ocuparam, o Colin Powel era secretário de Estado dos EUA. Ele falou que aquilo era para vários anos. A ONU disse que debatia a retirada, mas quando aconteceu o terremoto, decidiram que não podiam mais sair. A gente tem uma dívida histórica com o Haiti. Estamos vendo um país ser usado como laboratório de políticas de repressão, de criminalização da pobreza e de táticas de guerrilha urbana.
Você já me contou que, através da Rede Jubileu Sul, tinha acesso a informações preciosas e que impressionava como ninguém comentava nada nos meios de comunicação. Sim. No Panamá, no meio do ano, por exemplo, houve grandes mobilizações, com vários presos. Era contra um pacotaço de leis, com onze itens, em que se proibia greves e manifestações e se aumentava os impostos. No Brasil, não saiu nenhuma linha. Agora mesmo, cinco camponeses foram assassinados em Honduras, por grupos paramilitares. Honduras já não é mais assunto. Na Guatemala, proibiram a mineração a céu aberto, o que foi uma grande vitória. Em Trinidad e Tobago ganhou uma mulher de esquerda. E o exército boliviano se declarou, agora, anticapitalista. Não é pauta, infelizmente.