Ainda que a economia solidária esteja presente cada vez mais na sociedade, sua concepção ainda não é algo tão natural. Assim, como entender a influência desta natureza econômica mais solidária e suas especificidades e projetos já em expansão? A IHU On-Line aproveitou a presença do professor Genauto de França Filho durante o Seminário: Assessoria e Formação na Economia Solidária: diálogo entre alternativas para entrevistá-lo sobre os desafios e possibilidades da economia solidária no país. “É a dimensão de autopolítica na economia solidária que permite distingui-la da economia popular”, diferencia ele no início da entrevista, durante a qual falou também sobre as redes sociais de economia solidária e os bancos comunitários.
O uso do marketing pela economia solidária e sobre a presença da competitividade no setor também foram questões analisadas pelo sociólogo. “O marketing é um conceito que, na minha avaliação, não se aplica à economia solidária. O marketing significa mercado. O que se aproxima de uma ideia de marketing para a economia solidária é uma educação para o consumo consciente ou para o consumo ético”, opinou.
Genauto de França Filho é graduado em Administração pela Universidade Federal da Bahia, onde também fez o mestrado na mesma área. Na Université de Paris VII – Université Denis Diderot realizou o doutorado em Sociologia. Atualmente, é professor na UFBA.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Conceitualmente, como o senhor distingue a economia popular e solidária?
Genauto de França Filho – Trabalhamos com uma distinção conceitual elaborada com grande cuidado, já que grande parte das experiências com economia solidária tem uma base de organização popular. A economia dos setores populares constitui, literalmente, um oceano de experiências multifacetadas, incluindo um pouco de tudo, como a informalidade na economia e as práticas individuais de ambulantes em grandes cidades. São experiências que não se apóiam em práticas de solidariedade para desenvolver atividades econômicas. A economia popular é caracterizada por uma série de experiências e práticas que se apóiam em relações de solidariedade e que acabam realizando as atividades econômicas como uma espécie de extensão dessas práticas de solidariedade que constituem o cotidiano da vida de muitas pessoas. E muitas dessas práticas de solidariedade têm origem nas relações de parentesco, vizinhança, de proximidade de uma maneira geral.
Introduzimos um aspecto importante para tentar fazer essa distinção, já que a economia popular tem uma base um tanto quanto precarizada no plano do direito. Enquanto um trabalho, em boa parte das práticas da economia solidária também existe uma base de relação econômica precária. Então como você distingue? A questão é que a economia solidária introduz um componente político nas relações de trabalho que está ausente na economia popular. É o fato de que, na economia solidária, muitos empreendimentos de organização popular, e relativamente precários na capacidade de gerar renda, estão articulados a um movimento mais amplo, ou seja, participam de processos de auto-organização política.
É a dimensão de autopolítica na economia solidária que permite distingui-la da economia popular. Claro que você pode contar também com uma série de outras práticas na economia solidária que são muito mais robustas do ponto de vista da escala e do tamanho. Então, ela é caracterizada por uma base popular, mas há uma série de experiências que diversificam e ampliam, sobretudo aqui no Sudeste e no Sul do Brasil, onde se têm grandes cooperativas de economia solidária. A diferença está no processo de auto-organização política. A economia popular está dispersa, fragmentada no território, pulverizada. Já a economia solidária está constituída como uma espécie de movimento.
IHU On-Line – O que caracteriza as atuais formas de organização das redes sociais de economia solidária?
Genauto de França Filho – Existem redes em diferentes níveis. Há aquelas de empreendimentos, que é algo fundamental na economia solidária, como, por exemplo, a em que participo, que é a Rede Brasileira de Bancos Comunitários. Existem aquelas redes de comercialização transterritoriais, que ainda são pouco desenvolvidas no Brasil e que têm enorme importância estratégica para o fortalecimento da economia solidária. O exemplo mais conhecido e emblemático é a Rede da Justa Trama [1]. As redes são o caminho estratégico para a economia solidária representar uma alternativa efetiva de desenvolvimento no país. Porém, essas experiências de redes ainda estão iniciando.
IHU On-Line – O Brasil já possui mais de 50 bancos comunitários. Como o senhor vê o desenvolvimento deste segmento?
Genauto de França Filho – Os bancos comunitários têm sido alvos de uma espécie de reconhecimento institucional extremamente significativo. Tanto as comunidades têm impulsionado essas práticas quanto as instituições de diversos tipos, desde financeiras como Banco Central e Banco do Brasil, passando por governos, veem os bancos comunitários como uma instituição extremamente inovadora e eficiente para gerar dinâmicas e fortalecimento econômico em território escuso. Por outro lado, têm sido alvo de tentativas que visam se apropriar dessa prática sem o devido reconhecimento da importância rede. Os bancos comunitários têm uma capacidade de interlocução importante com as instituições. No entanto, as instituições precisam ser capazes de perceber a importância dos bancos comunitários enquanto movimento social. Estes não são apenas uma tecnologia social que pode ser replicada sem a preocupação com o movimento que está por trás dando sustentação.
Os bancos privados funcionam dentro de uma lógica que não é a dos bancos comunitários. Inclusive, isso acaba pondo uma dificuldade na relação. Grande parte dos bancos comunitários não pode basear a sua sustentabilidade e manutenção na receita suficiente para pagar todas as suas despesas. Isso não é compreendido pelos bancos oficiais, que não conseguem enxergar, por exemplo, que na dinâmica dos bancos comunitários existe um resultado em termos de utilidade social que pode ser coberto ou financiado a partir de uma outra forma de utilizar recursos que não é via comercialização de serviços.
Isso é importante de ser reconhecido porque faz parte de um outro debate sobre o que é economia, o que é a democracia econômica em um território e o direito ao crédito. Para nós, isto é o que há de mais importante e significativo nesta relação. Os bancos oficiais não enxergam a capacidade que os bancos comunitários têm de serem profundamente eficientes naquilo que fazem, ou seja, prestar um serviço não público para a população que os bancos oficiais não conseguem atingir porque não conseguem enxergar este público.
IHU On-Line – E como o marketing é utilizado pela economia solidária?
Genauto de França Filho – Há práticas de economia solidária que usam o marketing tal como ele é usado nas empresas. É o caso de cooperativas que precisam comercializar e estão tentando sobreviver dentro de uma dinâmica muito semelhante a uma pequena ou média empresa. Desta forma, muitas vezes usam o marketing para comunicar sobre seu produto ou serviço.
No entanto, o marketing é um conceito que, na minha avaliação, não se aplica à economia solidária. O marketing significa mercado. O que se aproxima de uma ideia de marketing para a economia solidária é uma educação para o consumo consciente ou para o consumo ético. É por isso que uma das grandes iniciativas no campo da economia solidária que teria a ver, em tese, com essa noção de marketing no mundo capitalista, e que corresponderia sobre certo aspecto à noção de fidelização de clientela na linguagem de mercado, são exatamente as formas de certificação do comércio justo.
A lógica da economia solidária é constituir um comércio justo. Mas, para, isso os consumidores precisam ser conscientes e precisam também agir eticamente. Uma forma de estimular isso é criar modalidades de certificação que informam e esclarecem sobre a origem daquele produto, em que condições ele foi fabricado. O marketing, em princípio, não é uma coisa que se aplica à economia solidária, mas pensar estratégias de comercialização não necessariamente no sentido de vender mais, mas de educar a população, isso sim, passa pela questão do comércio justo. Para mim, uma bela “estratégia de marketing”, neste sentido, para a economia solidária é você se articular em redes e constituir mercados negociados e desenvolver relações com grupos de consumidores, é a forma de evitar até a competição.
IHU On-Line – Nesse sentido, há competitividade dentro da economia solidária? Como ela se manifesta?
Genauto de França Filho – Essa noção, em princípio, não é da natureza da economia solidária. Porém, é evidente que competição existe em muitas organizações de economia solidária que têm relações de mercado. Existe, portanto, uma competição, mas ela é mais esclarecida eticamente. Uma das dificuldades da economia solidária é perceber que é preciso sair do registro da competição.
Isso porque às vezes parece que há uma certa resignação entre atores da própria comunidade que dizem “mas nós vivemos dentro do marketing capitalista e nós não podemos fazer nada, temos que competir”. Quando, na verdade, você tem estratégias de relação de cooperação que estão na vocação da economia solidária e que vão justamente permitir não competir.
Então, a competição não faz parte da economia solidária, porque a natureza desta economia é diferente. Já a economia capitalista não admite que produção e consumo devam necessariamente estar afastadas e que a produção e consumo podem estar rearrumadas, dentro de uma ideia de redes de consumidores.
IHU On-Line – Como os bancos comunitários interferem na economia local?
Genauto de França Filho – De maneira muito significativa. Eles influenciam através do estímulo à constituição de um sistema de microcrédito local solidário, na medida em que eles permitem acesso ao crédito para uma população que não tem essa oportunidade. Os bancos comunitários injetam recursos em uma espécie de microeconomia local através destes empréstimos e eles ainda são capazes de fortalecer as economias locais a partir de uma perspectiva de internalização de renda. Os bancos comunitários fortalecem a economia local tanto no plano do consumo quanto do crédito para a produção e prestação de serviços. Isso gera uma dinâmica impressionante.
IHU On-Line – Quais as singularidades dos bancos comunitários no universo das microfinanças?
Genauto de França Filho – O que é mais fundamental é a dimensão de finanças de proximidade. As microfinanças, diga-se de passagem, têm sido enxergadas, na dinâmica do capitalismo contemporâneo, como uma espécie de nicho mercadológico importante. Os bancos oficiais descobriram que têm um público que pode ser explorado enquanto fatia de mercado que é público de baixa renda e, então, começa a introduzir os microcréditos. No entanto, existem microcréditos que não são microfinanças. São, na verdade, microcréditos para determinados segmentos da população.
Assim, se nós simplesmente definirmos microfinanças a partir do montante de crédito que circula, vamos ter uma visão de microfinança muito limitada. Se analisarmos dessa forma, entenderemos a microfinança apenas como uma espécie de finança capitalista de pequeníssimo monte. Porém, na verdade, a microfinança é um universo heterogêneo de experiências.
E dentro desta heterogeneidade, sem dúvidas, as experiências que têm se destacado são as de finanças solidárias e de proximidade. Nesse sentido, existem duas grandes mobilidades que destacamos: os fundos rotativos solidários e os bancos comunitários de desenvolvimento. Isso porque eles são capazes de fazer circular uma renda de pequeníssima monta, introduzindo nessas situações relações de mediação social que permita que as pessoas tenham um outro tipo de relação com dinheiro. Assim, podemos começar a falar de uma outra lógica de circulação econômica.