Por Henrique Novaes
Dom Hélder Câmara e os 46 anos do Golpe de 1964
Menos de um mês antes do Golpe Militar que hoje completa 46 anos, Dom Hélder Câmara tornou-se arcebispo de Recife e Olinda. Dom Helder nasceu no Ceará e chegou a ser integralista nos anos 1930, algo que logo abandonou. Ele se tornaria um defensor incansável dos trabalhadores. Isso pode ser visto, por exemplo, na criação da Legião Cearense do Trabalho e no seu papel na “Sindicalização Operária Feminina Católica”, que congregava as lavadeiras, passadeiras e empregadas domésticas. Chico de Oliveira retratou muito bem o papel de Dom Hélder Câmara naqueles que viriam a ser os anos mais brutais de nossa história.
Vejamos a descrição de Oliveira:
“O golpe de 1964 abateu-se com especial fúria sobre Pernambuco. Dizimaram a esquerda, o movimento de trabalhadores, o movimento católico políticointelectual, o movimento estudantil; exilaram parte importante das lideranças, foram-se o clima de debate e as iniciativas inovadoras, o Movimento de Cultura Popular e Paulo Freire, a reforma transformadora da Sudene. Ficou apenas a voz solitária de Dom Hélder Câmara, que, aliás, empossou-se na arquidiocese nos primeiros dias pós-golpe [na verdade um pouco antes] com um discurso cuja coragem e dignidade deveriam fazê-lo figurar numa antologia dos grandes discursos cívico-políticos brasileiros. Nascia alia a Igreja da Resistência, que teve nele e em Dom Paulo Evaristo Arns seus momentos e expressões mais altos (Oliveira, A noiva da revolução, 2008, p.85).”
No ano de 2008, nove anos após o falecimento de Dom Hélder, surge a “Comuna Urbana Dom Hélder Câmara”, no município de Jandira (Grande São Paulo). Fruto de encontros e desencontros entre trabalhadores e trabalhadoras precarizados, a Comuna é uma das “vitrines” da chegada do Movimento Sem-Terra à cidade. Ela é filha das lutas do povo brasileiro que mora em favelas da grande São Paulo por trabalho decente, e por uma vida digna e coletiva. Conta com a assessoria da Usina – um grupo de arquitetos e cientistas sociais revolucionários que assessora movimentos sociais -; com o papel do Padre João Carlos – uma liderança internacional da Cáritas que já vivei na Bósnia -; ONGs italianas e agora a ITCP – Unicamp, que irá ajudar na teoria e na prática do associativismo popular e possivelmente nos outros projetos. O Padre João Carlos pediu a Dom Paulo Evaristo Arns que enviasse uma carta a Lula pedindo apoio ao projeto. A Caixa Econômica Federal liberou recursos para a desapropriação e início das obras de infra-estrutura e das habitações. Hoje, a Caixa considera a Comuna Dom Helder Câmara um dos quinze melhores projetos da instituição.
A Comuna recebe a visita de intelectuais, curiosos, pesquisadores da América Latina. Um dos que esteve no projeto logo no seu início, foi o professor João Bernardo, um português marxista autogestionário que vive há muito tempo no Brasil. A ideia é combinar no mesmo espaço, moradias de cinco tipologias de cerca de 60 metros quadrados, uma horta e viveiro comunitários em bases agroecológicas, uma creche, uma padaria comunitária, um espaço para produção de documentários feitos pelos jovens, uma escola de produção de instrumentos musicais, uma escola com métodos e com propósitos alternativos, uma arena, uma cooperativa de costura, sendo que esta última está em pleno funcionamento em outro local. Destes projetos, já receberam as verbas do MDS para iniciar a padaria comunitária, porém, a prioridade máxima é terminar as casas. No que se refere a reconstituição da obra, a Usina está documentando o que foi feito. Passam filmes para jovens e crianças aos sábados no local onde estão acampados.
Os mutirões são realizados aos sábados e domingos. Há rodízios entre os “núcleos” para que as pessoas possam descansar. Um dos problemas que surgiu foi o relaxamento das regras do mutirão, que pode atrasar o encerramento da obra, previsto para o fim do ano. O que é mais previsto nestas obras para os movimentos sociais são os atrasos e a burocracia estatal. E talvez a maior imprevisto da obra teria sido o abandono da pequena empreiteira em setembro de 2009, que trouxe algumas mudanças. Vendo que a construção das casas estava parada há mais de trinta dias, cometeram uma “loucura”. Como a obra não podia parar “tiveram que tocar o barco” e se perguntaram por que não nós, que temos experiência em carpintaria, encanamento, etc? Por que não chamar para o nosso lado alguns dos antigos funcionários da empreiteira? Num momento onde não só os movimentos populares estão fragmentados e suas lutas pulverizadas, nós universitários – intelectuais médios (Gramsci) – da ITCP – Unicamp e do coletivo Usina estamos inovando ao quebrar a fragmentação e a pulverização que sofrem aqueles que tentam ajudar na emancipação dos trabalhadores.
No dia 27/10/2009, surgiu aquela que viria a ganhar o sugestivo nome de Cooperativa Treme-treme. No início eram 6, hoje são cerca de 20 que tocam a obra nos dias de semana e descansam no fim de semana, quando ocorre o mutirão. “Descobriram” que podem se remunerar melhor que o antigo empreiteiro, que hoje tem melhores condições de alimentação, que podem cobrir gastos de transporte. A cooperativa tem faixas de retiradas em função do tipo de trabalho e da quantidade de trabalho.
Alguns poderão achar que se trata de uma proposta de “desenvolvimento local”, outros podem achar que estão esboçando estratégias de desenvolvimento para além do capital. De qualquer forma, as trabalhadores e trabalhadores da Comuna estão desafiando o Estado e os movimentos sociais ao colocar em questão a vida coletiva, a geração de trabalho e renda no espaço de moradia tal como fazem os uruguaios, a potencialidade de criar uma nova geração de documentaristas (Glaber Rocha está vivo!), dentre inúmeras questões levantadas pelo projeto.
Evidentemente que num mar de grandes corporações financeirizadas, rodeados por condomínios fechados em Jandira e por outros trabalhadores precarizados comendo o pão que o diabo amassou, a Comuna Dom Hélder Câmara não passa de uma embrião socialista em escala nanométrica. Mesmo assim, ao contrário do que pensam algumas vertentes da Igreja: “lá no céu seremos todos iguais”, estão literalmente construindo casas e um projeto de vida coletiva, algo que foi interrompido a 46 anos atrás.