Artigo de Selvino Heck
Um grande jornal do sul fez a seguinte manchete, em letras garrafais, na quarta-feira de cinzas, dia do lançamento da Campanha da Fraternidade/2010: ‘Igrejas se unem em crítica à economia”. Nas matérias internas escreve: “A Campanha da Fraternidade de 2010 coloca a partir de hoje a ética cristã em guerra com o espírito do capitalismo.
Na mira de bispos, pastores e reverendos figuram inimigos como a ânsia por lucro, o agronegócio, o capital especulativo, o consumismo e o sistema financeiro internacional. Uma análise dos documentos e materiais da Campanha da Fraternidade deste ano revela uma sintonia com o discurso adotado por entidades como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ou eventos como o Fórum Social Mundial.”
A colunista política do mesmo jornal intitula sua análise: ‘Utopia nas igrejas’. E escreve: “Com o tema Economia e Vida e idéias que parecem ter saído de documento do Fórum Social Mundial, do programa de um partido socialista, de um congresso de estudantes ou mesmo de uma reunião do MST, a Campanha da Fraternidade 2010 tem potencial para acender polêmicas em todos os cantos do país. O slogan Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro, extraído do Evangelho de São Mateus, dá uma idéia do que se ouvirá nas igrejas e templos durante a quaresma.
Tudo o que os organizadores da campanha propõem para ocupar o lugar dos bancos, da globalização e do agronegócio – cooperativas, redes solidárias, agricultura familiar e redes de microcrédito – tem espaço na sociedade, mas como uma opção a mais, não como substituto. Lutar contra a globalização é remar contra a maré: ela está na vida dos fiéis de qualquer credo.” Mais uma vez, a demonização e criminalização dos movimentos sociais é a pauta principal de setores da grande mídia. MST e Fórum Social Mundial são apresentados como inimigos do povo e da pátria e, por associação, as igrejas cristãs que participam e organizam a Campanha da Fraternidade. Ao mesmo tempo são apresentados como românticos incuráveis, que têm sonhos irrealizáveis e, vejam só, ainda falam em ‘utopias’.
Nem parece que o mundo atravessa a pior crise econômica dos últimos 70 anos, com quebra de bancos e empresas, desemprego em massa nos países ricos, empobrecimento da população, fruto do lucro desmedido, da ganância desenfreada, do consumismo, da financeirização da economia e das teses neoliberais do Estado mínimo e do mercado livre e absoluto.
Vale a pena (re)ler o Evangelho de São Mateus e (re)descobrir o contexto de sua radicalidade. A afirmação de Jesus – Ninguém pode ser vir a dois senhores, porque ou aborrecerá um e amará o outro, ou apreciará o primeiro e desprezará o segundo. É impossível servir a Deus e ao dinheiro – vem no mesmo capítulo em que Jesus ensina o Pai Nosso: “Por isso, vocês têm que orar assim. (…) Venha o teu reino, seja feita a tua vontade na terra como no céu. Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia” (Mt, 6,9. Em seguida Jesus diz: “Não amontoeis riquezas na terra, onde se põem a perder, porque a traça e a ferrugem as destroem, os ladrões assaltam e roubam” (Mt, 6,19). E na seqüência: “Por isso lhes digo: Não andem preocupados por sua vida, que vamos comer, ou por seu corpo, que vamos vestir. Não vale mais a vida que o alimento e o corpo mais que a roupa? Olhem como as aves do céu não semeiam, nem colhem, nem guardam em celeiros, e o Pai celestial as alimenta. Não valem vocês mais que as aves?” (Mt 6, 25-26.)
O tema da Campanha da Fraternidade/2010, promovida pelo Conselho das Igrejas Cristãs – CONIC –, formado pela Igreja católica, pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, pela Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, pela Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e pela Igreja Sírian Ortodoxa de Antioquia, coloca o dedo na ferida. Estamos em tempos em que o capital e o sistema que o sustenta, o capitalismo, santificam o individualismo, a ganância, o consumismo, desprezando valores como a solidariedade, a partilha, o fazer coletivo. Tempos em que o meio ambiente e a natureza não servem mais à humanidade como fonte de bem viver, mas apenas como lucro e acúmulo de riqueza, levando ao aquecimento global, aos desastres e desequilíbrios naturais, à falta de água e ao ar irrespirável. Urge, pois, como diz Campanha da Fraternidade, “denunciar a perversidade de todo modelo econômico que vise em primeiro lugar o lucro, sem se importar com a desigualdade, miséria, fome e morte; educar para a prática de uma economia de solidariedade, de cuidado com a criação e valorização da vida como o bem mais precioso; conclamar as Igrejas, as religiões e toda a sociedade para ações sociais e políticas que levem à implantação de um modelo econômico de solidariedade e justiça para todas as pessoas.”
A Economia Solidária, com seus milhares de grupos, cooperativas e redes espalhados por todo Brasil, é uma possibilidade de “pensar outra economia rumo a outro desenvolvimento, uma outra economia possível”, com base em valores como a cooperação, a autogestão, solidariedade, “construindo a produção sustentável, o comércio justo, o consumo solidário”. Para isso, é preciso incentivar as trocas solidárias, as cooperativas de crédito, os bancos comunitários, o microcrédito solidário, os fundos rotativos solidários. Além disso, propõe a Campanha da Fraternidade, é preciso construir uma educação e cultura solidárias, a partir de experiências existentes como os Centros de Formação em Economia Solidária, as Escolas Família Agrícola, a Assistência técnica em Economia Solidária, as Incubadoras Populares e Universitárias, a Rede TALHER de Educação Cidadã, a Educação de Jovens e Adultos, os Jogos Cooperativos. Não é crime sonhar e alimentar utopias, fortalecendo uma economia a serviço da vida. No mundo de hoje, elas são urgentes, necessárias e, principalmente, possíveis.
*Selvino Heck Assessor Especial do Gabinete Pessoal do Presidente da República e da Coordenação nacional do Movimento Fé e Política.