Fonte: www.valoronline.com.br*
“Não precisamos pagar nenhuma taxa e ainda ajudamos a desenvolver a economia da região”
Na parede do açougue, logo acima dos adesivos da MasterCard e da Visa , pode-se ler: aceita-se Sampaio. Não se trata de uma nova bandeira de cartão de crédito. É apenas o nome da moeda social que circula no bairro Jardim Maria Sampaio, na periferia de São Paulo. “Não precisamos pagar nenhuma taxa e ainda ajudamos a desenvolver a economia da região”, orgulha-se Silvestre Rodrigues de Oliveira, dono do estabelecimento e morador do bairro há quase 40 anos.
O açougue do Silvestre, a loja de material de construção Vai-lá, o mercadinho do Cícero, o sacolão da Adelia, a barraca de frutas e doces do Seu José e a lanchonete Salgados 0,50 – onde tudo custa cinquenta centavos, evidentemente, – são alguns dos mais de 20 estabelecimentos que já aceitam a moeda.
Com pouco mais de seis meses de vida, o Sampaio, que estampa no verso figuras como o educador Paulo Freire e a líder comunitária local Dandara, é emitido pelo banco comunitário União Sampaio, criado pelos moradores da comunidade com a ajuda de organizações não governamentais.
O bairro é pobre e estimativas apontam que um terço da população dessa região, pertencente à subprefeitura de Campo Limpo, sudoeste de São Paulo, more em favelas. Silvestre tem uma vida um pouco mais confortável. Mudou-se para lá com o pai aos nove anos de idade para trabalhar em uma olaria – onde hoje funciona a escola. Aos 12 começou num açougue e aos 14 se tornou o proprietário. Trabalha sozinho desde a morte do pai. “Para contratar um funcionário teria um custo de mais de R$ 1 mil por mês e eu não tiro isso limpo aqui no açougue”, diz.
Ele é quem mais recebe o Sampaio. Não é muito. Cerca de R$ 200 por semana. Mas o estabelecimento é uma espécie de destino final das notas. Os comerciantes recebem o dinheiro em suas lojas e usam para compras na padaria, no mercadinho, na farmácia ou nos outros estabelecimentos do bairro que aceitam a moeda. “O dinheiro fica circulando, mas no fim todos vêm comprar carne aqui comigo. Daí uso o dinheiro para pagar minhas duplicatas no próprio banco”, conta Silvestre.
Ele consegue pagar suas contas porque o União Sampaio funciona também como um correspondente bancário do Banco do Brasil e é a única agência das imediações – a mais próxima fica no bairro vizinho, Campo Limpo. As similaridades com um banco tradicional, no entanto, terminam aqui.
O ciclo da moeda social, por exemplo, começa sempre com um empréstimo para moradores da região, entre 200 e 300 sampaios, feito a juro zero, algo impensável no sistema financeiro tradicional – há uma taxa de administração fixa de 1%. Quando o morador paga a dívida, já em reais, um novo empréstimo é feito, sempre mantendo-se o mesmo lastro, de R$ 2 mil – como não há depósitos à vista, não existe a figura do multiplicador bancário, que caracteriza os bancos comerciais.
A aparência também não lembra um banco comum. Não há portas giratórias, nem segurança armado. Em uma pequena sala de pouco mais de 6 metros quadrados , nos fundos da ONG União Popular de Mulheres, funciona a sede e a única agência do União Sampaio. À direita, uma espécie de guichê, com a maquininha leitora de cartão que faz às vezes do caixa do banco. No comando, Edmílson do Nascimento. “Chego a atender 20 pessoas por dia”, diz.
Dentro da agência, uma mesa para as reuniões do comitê de crédito, responsável pela aprovação dos empréstimos, e um computador – recheado de software livre – onde fica Rafael Orlandi Mesquita, o Rafa, espécie de gerente. Um enorme mapa da região – feito à mão – adorna a parede e ressalta os estabelecimentos que ainda não aceitam a moeda e merecem uma visita. Sempre na rua, Maria do Socorro Silva, a agente de crédito, é responsável pela análise dos potenciais clientes.
Hoje são 51 instituições como a União Sampaio espalhadas pelo país e que movimentam mais de R$ 1,5 milhão, diz Antônio Haroldo Pinheiro Mendonça, da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego. A maioria está no Nordeste e cada comunidade mantém cerca de R$ 30 mil em lastro, dinheiro esse que vem, geralmente, de doações. As notas sociais são numeradas e têm sistemas de segurança para evitar falsificações.
O número de instituições avança, mas o começo não é nada fácil. “No dia da inauguração, a agência não estava pronta, porque o pedreiro atrasou a obra. As notas também demoraram dois meses para chegar, mas conseguimos inaugurar mesmo assim”, conta Rebeca Regatieri, da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade de São Paulo (USP) e uma das responsáveis pela implantação do banco junto com Ana Gabriela Moreira Pudenzi e Beatriz Rossi Corrales, também da USP.
O convênio com a universidade garantiu o apoio, o treinamento e a verba para as instalações e para o salário dos três funcionários, Edmílson, Rafa e Socorro. Mas esse acordo terminou no fim do ano passado e os três estão sem receber.
Agora, correm para tentar novas parcerias com organizações nacionais e internacionais e também tentam agilizar a concessão de microcrédito, que poderia gerar uma renda para o banco se tornar sustentável. “Esse é um projeto de longo prazo e é preciso de dois a três anos para um banco comunitário se manter sozinho”, estima Rebeca, que está no último ano do curso de economia na USP.
Um banco comunitário tem duas fontes de receita. Ganha um percentual fixo por transação realizada na sua agência, como o pagamento de contas, tal qual qualquer correspondente bancário do Banco do Brasil. Mas essa receita é pequena. O maior percentual deve vir do repasse do microcrédito produtivo, com juros entre 2% e 2,5% ao mês, dos quais 1% fica com o BB, 0,5% com o Instituto Palmas – que faz a gestão dos recursos – e o restante com o banco comunitário.
As dificuldades são enormes, mas o cenário começou a mudar para os bancos comunitários. Desde o início deste ano eles passaram a ser reconhecidos oficialmente pelo Banco Central. Henrique Meirelles, presidente da autoridade monetária, assinou, no dia 4 de janeiro, um acordo de cooperação técnica com o Ministério do Trabalho e Emprego para o “estudo e acompanhamento” dessas instituições.
Esse parece ser o final feliz de uma história mais antiga, em que o relacionamento com o governo nem sempre foi assim amigável. O primeiro capítulo foi nos anos 90, em Fortaleza. Mais especificamente no Conjunto Palmeira, periferia da capital cearense. Foi lá que João Joaquim de Melo Segundo teve a ideia de montar o primeiro banco comunitário. O objetivo era conceder microcrédito para os pequenos empreendedores da comunidade e evitar que a pobreza acabasse com as poucas iniciativas do bairro.
A ideia deu tão certo que o Banco Palmas cresceu. Cresceu tanto que anos depois Joaquim, como é conhecido, pensou: “As pessoas estão prosperando, mas estão gastando tudo o que recebem fora daqui. E se a gente criasse uma moeda que só circulasse no bairro e incentivasse o consumo na região, para que a riqueza pudesse ficar na comunidade”.
Assim surgiu o Palmas, a primeira moeda social do Brasil. “O bairro é pobre não porque não tem dinheiro, mas porque perde seu dinheiro, sua poupança. A moeda social tem a função de deixar o dinheiro circulando localmente”, diz Joaquim. De fato, o volume de compras na comunidade pulou de R$ 1,5 milhão, em 1998, para cerca de R$ 6 milhões no ano passado, 4 vezes mais.
Não demorou para que a iniciativa chamasse atenção do Banco Central, que detém o monopólio da emissão de moeda e tascou um processo em cima de Joaquim. Foram anos de batalha até que saísse a decisão final: moeda social é uma moeda complementar, assim com o bilhete de ônibus e o vale alimentação. Desde que tenha lastro em real e seja conversível, ela não é ilegal.
Na melhor estratégia “se não pode vencer, junte-se a eles”, o BC assinou a parceria com o Ministério do Trabalho, o que garantiu a legalidade e manteve a iniciativa de Joaquim. Hoje uma Oscip (organização da sociedade civil de interesse público, nome técnico das ONG), o Banco Palmas deu origem aos Instituto Palmas, que é responsável pela abertura da maioria dos bancos comunitários existentes no país, entre eles o Banco União Sampaio. É o instituto também que coordena o repasse do microcrédito produtivo orientado, desde 2005, em uma parceria com o Banco do Brasil.
Aerton Paiva, sócio da consultoria Gestão Origami, especialista em sustentabilidade para empresas, afirma que iniciativas como essa estão presentes em diversos países do mundo e não representam risco ao sistema financeiro. “Não há risco sistêmico, porque as moedas têm lastro em reais”, diz.
Ele avalia ainda que essa abordagem é uma forma bastante interessante de atender as populações ainda não assistidas pelos bancos. “O sistema financeiro não é inacessível porque é caro, mas sim porque não atende às necessidades e não tem produtos adequados para essas faixas de renda”, diz Paiva.
De fato, esses bancos conseguem atender a demanda local. Atuando como correspondente, os bancos comunitários oferecem até 14 serviços financeiros diferentes, como crédito, pagamento de contas, microseguros entre outros. Oferecem ainda outros serviços, como bolsa de empregos e treinamentos para a população. Mas mesmo essas instituições ainda não ganharam totalmente a confiança dos moradores e dividem opiniões.
Adelia, por exemplo, dona de um sacolão no Jardim Maria Sampaio, ofereceu certa resistência a aceitar a nova moeda. Só foi convencida pela insistência do marido. Já Raquel Rosa Gomes, dona da Perfumaria Kell, faz até campanha para que a moeda ganhe mais visibilidade. Ela estipulou que os produtos comprados com o Sampaio teriam 5% de desconto na sua loja. “Temos de devolver algo de onde tiramos nosso sustento”, diz Raquel.
O Jardim Maria Sampaio fica a 20 quilômetros do centro da capital mais rica do país. Esquecido pelos governantes, o bairro marca a divisa de São Paulo com Taboão da Serra, de um lado, e com Embu, do outro. A separação é feita pelo sinuoso e bastante instável córrego Pirajuçara, que costuma alagar as páginas do jornal todo início de ano com notícias de enchente. “O piscinão não dá conta”, diz Edmílson, “olha como está cheio de lixo”, aponta, do alto da Avenida Augusto Barbosa Tavarez, que concentra o comércio do bairro.
Por ali, os bancos sociais dão seus primeiros passos, mas as iniciativas se acumulam pelo mundo. Um dos países com o maior número de moedas sociais é, curiosamente, a Argentina. A professora brasileira Heloisa Primavera, uma das maiores especialistas no assunto e que mora naquele país há mais de 40 anos, conta que por lá elas são bastante difundidas e chegaram a atingir quase 1 milhão de pessoas, logo após a crise que assolou o país no início da década passada.
Os chamados clubes de troca – reuniões de pessoas para fazer escambo de mercadorias – se proliferaram com a crise argentina. Estima-se que 800 mil pessoas faziam suas compras regularmente em locais alternativos naquele país.
Heloisa se diz uma consumidora dos clubes de troca – que também existem no Brasil e deram origem a muitos bancos comunitários. Bastante radical, para ela, um dos grandes problemas das sociedades e que gera a pobreza é o uso especulativo que se faz do dinheiro hoje no mundo. “A moeda deveria circular, não ser acumulada”.
No Brasil também há iniciativas que vão além dos bairros da periferia. O Cubo Card, por exemplo, surgiu de uma iniciativa do Espaço Cubo, uma organização cultural de Cuiabá, Mato Grosso, que promove festivais de música pelo país. O Cubo Card funciona como uma espécie de moeda para a transação de produtos e serviços que giram em torno dos eventos, até mesmo de patrocínios e ganha cada vez mais adeptos.
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