Artigo de Arroyo João Cláudio
Em épocas e classes sociais diferentes o trabalho foi exaltado ou desprezado. O trabalho já foi até considerado pelo catolicismo como uma penitência, depois um caminho para a redenção. O protestantismo surge defendendo o trabalho como um meio divino de enriquecer.
Já no capitalismo, ocorrem mudanças em relações a teorias medievais, tendo em predominância o produtivismo, aparecem exaltadores do trabalho como fonte de riqueza. Em cada época aparecem novas táticas de utilizar o trabalho como fonte de riqueza para o mais forte, não para o trabalhador.
Para Adam Smith, o trabalho de uma nação é a principal fonte geradora dos bens que necessita a comunidade. O aumento da produtividade do trabalho depende de sua divisão, que repousa essencialmente, na propensão que tem a natureza humana para trocar uma coisa por outra. A acumulação de capital funciona como uma das condições prévias dessa divisão
Neste instante, ocorre uma passagem fundamental, a nosso juízo, para a compreensão de por onde passou a acomodação da contradição instalada entre a solidariedade necessária para a constituição da sociedade e a acumulação privada de capital. A apartação entre trabalho e trabalhador.
O capitalismo conseguiu apartar, na abstração da percepção humana, o “trabalho” – que passou a figurar como um dentre outros fatores de produção, na mesma altura do capital e da terra – do “trabalhador”, ser humano com uma dada função na sociedade.
Assim, a idéia de “mercado de trabalho” passou a simbolizar esta abstração que fez o trabalho ser concebido como mercadoria, exatamente como qualquer outra, subordinada a toda e qualquer suposta lei de mercado. Portanto, trabalho e trabalhador, obviamente inseparáveis, foram artificialmente separados pelo capitalismo. Assim o trabalho passou a ser reduzido a insumo e elemento de custo de produção que precisa ser “otimizado” para gerar a maximização da rentabilidade e do lucro.
Um processo de dominação que, sem dispensar a coerção, conta muito mais com estratégias de convencimento, como diria o revolucionário italiano Gramsci. Convencimento baseado em condicionamentos: a valoração social da posição como trabalhador assalariado contraposto a figura do vagabundo; a redução da felicidade ao prazer sensorial e do desenvolvimento ao de acúmulo de riqueza material. Com isso, as pessoas passaram a brigar para oferecer sua força de trabalho para ser explorada sem que saiba a finalidade, sem que tenha o controle sobre sua gestão, sem que consiga auferir o verdadeiro valor gerado pelo seu próprio esforço. Qualquer semelhança com a escravidão, não é mera coincidência.
Porém, exatamente aí surge, por outro lado, o calcanhar de Aquiles do sistema capitalista. Ao mesmo tempo em o sistema exige a redução do uso/custo de insumos, como o trabalho, por unidade produzida, o desemprego, o arrocho nos salários e os custos sociais derivados da redução do uso do trabalho, como segurança, saúde, previdência etc, prejudicam o desempenho do sistema como um todo embora promova o acúmulo das desigualdades, enriquecendo cada vez mais um número menor de pessoas. Desigualdades que se expressam proporcionalmente na política.
Com a apartação entre “trabalho” e “trabalhador”, no contexto cultural Utilitarista do capitalismo, tornou-se plenamente justificável o recurso do desemprego – ou mais amplamente, da exclusão social, e política, portanto – como estratégia de acumulação de capital de alguns. Como se isso não implicasse na desestabilização da unidade familiar, considerada como pilar da sociedade e da própria economia.
Como se isso não concorresse para a diminuição da força de trabalho ativa que gera a riqueza da nação. Como se isso não rebaixasse a qualidade de vida geral com a geração de miséria, violência e degradação ambiental, aumentando os custos econômicos de gestão dos equipamentos públicos. Como se isso não afetasse o próprio pacto societário e a própria razão de ser da sociedade: garantir sobrevivência e segurança aos seus associados.
Portanto, nos parece fundamental que nosso movimento adote como estratégia central a revelação da apartação entre trabalho e trabalhador e, daí, denuncie o consequente rebaixamento do trabalho à condição de mera mercadoria cujo descarte implica em descarte de seres humanos.
Mas além da disputa ideológica, desmistificando a abstração distorcida criada pelo capitalismo, é preciso estabelecer estratégias de luta jurídico-institucional em torno do Direito ao Trabalho, para daí apresentar o trabalho associado sob autogestão como a melhor opção dentre os formatos de trabalho.
A passagem do feudalismo ao capitalismo se consolidou apenas quando o formato de trabalho assalariado se tornou mais atraente, tanto ideológica quanto economicamente, frente a opção do trabalho sob a servidão – o que levou ao esvaziamento dos feudos e sua derrocada econômica e política. Se a comparação for válida, poderíamos dizer que a Economia Solidária somente se tornará hegemônica quando tornarmos o trabalho associado sob autogestão mais atraente, ideológica e economicamente, que a estruturante invenção capitalista do trabalho assalariado ou emprego. Imaginem as pessoas se negando a trabalhar para os outros, por livre escolha, buscando o trabalho associado como opção principal.
Estrategicamente, por fim, vejo dois eixos para a ressignificação do trabalho na sociedade: 1) avançar sobre o art 5º da Constituição Federal e garantir a efetividade do Direito ao Trabalho, procurando reduzir ao máximo a aplicação da noção de mercadoria ao trabalho, formando alianças com todos que lutam contra o desemprego como os sindicatos, trabalhando, por exemplo projetos de lei que exijam a recolocação do trabalhador antes de ser demitido e 2) valorar o trabalho associado sob autogestão, como podemos entender a substância do que chamamos de “trabalho solidário” ou “empreendedorismo solidário”, tornando-o melhor opção social e econômica, buscando aliança com os movimentos que rebaixam o prestígio do trabalho assalariado como os movimentos e iniciativas em torno do empreendedorismo, por exemplo, além do cooperativismo, do trabalho autônomo, do profissional liberal e do trabalho artesanal.
É verdade que “quem não sabe onde quer chegar, por mais que ande, não saí do lugar”, mas não é o nosso caso. No entanto, também é verdade que não saber como chegar, torna o alvo um bonito horizonte que se afasta a cada passo dado, talvez este seja o nosso desafio e esta apenas uma provocação.