Fonte: Revista do Brasil
A expansão de experiência de desenvolvimento local que recorrem a moedas próprias vem chamando a atenção do Banco Central que busca, agora, uma regulamentação para a circulação. Paulo Singer, secretário Nacional de Economia Solidária, revela que a instituição responsável pela fiscalização do sistema financeiro nacional desistiu de reprimir essas iniciativas.
Na segunda parte da entrevista concedida à Revista do Brasil, o economista e professor da USP discute ainda os desafios da economia solidária ligados ao crédito. Ele enumera programas de bancos públicos associados a órgãos federais que repassam recursos a iniciativas populares pelo país. Singer comenta ainda os avanços do Graamen Bank, iniciativa do Nobel da Paz de 2006 Mohamad Yunus. Em Bangladesh, país de maioria muçulmana, ele inaugurou uma prática de microcrédito que prioriza mulheres como agentes da transformação local.
RDB – Outra dificuldade que o senhor menciona é de crédito, do acesso ao capital. O sistema bancário brasileiro não tem produto, não tem linha de atuação para esse segmento?
O Real tinha um setor de microcrédito bastante desenvolvido, acho que era o único do setor privado. Agora, controlados pelo Santander, não sei se isso vai ficar. Mas são os bancos públicos que na verdade estão se abrindo gradativamente para a economia solidária, Caixa Econômica, Banco Popular do Brasil, Banco Nordeste e o BNDES. Todos esses bancos são hoje parceiros nossos em diferentes atividades. O Banco do Nordeste tem um programa de apoio aos fundos rotativos solidários. Isso é coisa interessantíssima que há no Brasil, bastante fomentada pela Igreja, no semiárido é muito comum em pequenas comunidades. São grupos de famílias que se unem e criam um fundo no qual colocam o pouco dinheiro que podem poupar. Poupar solidariamente é muito melhor. Se você junta 200 famílias que todo mês coloca um pouquinho junto, logo há condições de em um certo momento ajudar os sócios a enfrentar emergências ou mesmo a fazer algum investimento produtivo, comprar um par de cabras fazer alguma criação. Esses fundos são hoje apoiados pelo Banco Nordeste, pelas Senaes e pelo Ministério do Desenvolvimento Social – a gente põe alguns milhões juntos e abre uma chamada para projetos.
RDB – E “bancos do povo” inspirados em experiências como a de Mohamad Yunus e o Grameen Bank de Bangladesh, a quantas andam?
Nós temos pouca experiência, mesmo. Existe microcrédito, tem algumas ligações, algumas coisas básicas de Bangladesh estão lá, a mais importante é do Banco do Nordeste e chama-se CrediAmigo. É de longe a maior entidade de microcrédito da América Latina, está com cerca de 400 mil clientes ativos o que para o Brasil é muitíssimo, a seguinte deve ter 10 mil. São Paulo tem o São Paulo Confia, criado na gestão da Marta e desenvolvido nas gestões seguintes, de (José) Serra e do (Gilberto) Kassab – vários programas de economia solidária não foram tocados, mas o banco se expandiu, embora continue com uma clientela pequeníssima, já que três ou quatro mil clientes para uma metrópole como São Paulo é muito pouco.O Banco Nordeste está agora começando a estender o CrediAmigo ao Rio de Janeiro, acho que vem para São Paulo, porque eles têm uma tecnologia muito boa, tem um quadro grande de agentes de desenvolvimento. No fundo é muito colado ao modelo de Grameen Bank.
RDB – E o Banco Nordeste trata isso como negócio, um produto feito para dar lucro?
Acho que não, acho que é como política social. Já estão surgindo negócios nessa área, mas menos no Brasil que no México, por exemplo. No México houve uma organização do microcrédito que se estendeu muito, mas cobrava juros tão altos que se tornou muito lucrativo e acabou sendo comprado por um banco multinacional. Eles ficaram orgulhosos disso, não nós. O próprio Yunus escreveu que era muito melhor se eles tivessem cobrado juros mais civilizados e não fossem lucrativos. O Grameen Bank, na prática, é uma cooperativa em que os sócios são apenas 7 milhões de mulheres, mais de 90% – porque o banco só atende mulheres, os únicos homens que são atendidos são os que são chefes de família.
RDB – A mulher é mais séria para cuidar do orçamento?
Isso é um argumento, mas são vários os argumentos do próprio Yunus. Eu o conheço agora e é um amigo, muito bom ouvi-lo. Ele faz campanhas feministas, além de só emprestar para a mãe da família, por exemplo, se ele dá um empréstimo para construir casa, o terreno tem de estar em nome dela, e normalmente não está. Ele é muçulmano em um país muçulmano, onde as mulheres são muito subjugadas. Isto é dele, literal: “temos de dar uma força para elas”. Está fazendo uma enorme campanha contra o dote, que é uma tragédia naquele país.
RDB – É uma pequena revolução cultural, não é só econômica?
Nós temos hoje cerca de 50 bancos comunitários no Brasil, quatro estão em Fortaleza, o próprio Banco Palmas ajudou criar mais três bancos comunitários, coisa de bairro. O Palmas é do Conjunto Palmeiras, um bairro de gente muito pobre, com 30 mil pessoas. Outro bairro chamado Pirambu também tem um banco comunitário. Pirambu tem uma coisa genial de economia solidária chamada Pirambu Digital. O diretor de um Cefet (Centro Federal de Educação Tecnológica) lá do Ceará conseguiu que diversos jovens de Pirambu – segunda maior favela do Brasil, com todos os problemas que uma favela desse porte tem – se reuniram e criaram quatro cooperativas ligadas à informática. Uma lida com software, outra com assistência, outra com o uso do computador e outra com reciclagem de equipamento. Eles estão vendendo esses computadores na favela a R$ 300 reais em 20 prestações de R$ 15 por mês. Eu acho isso genial e é uma cooperativa de jovens.
A difusão deles é uma forma de você dar mais coisas a uma comunidade, é uma coisa que a comunidade autogere autonomamente, todo mundo tem de participar e entender o que está acontecendo com seu dinheiro. A história é interessante, porque a moeda social é totalmente conversível ao real. Você vai ao banco comunitário tomar um empréstimo, sai com reais ou na moeda do próprio banco. A dívida na moeda social é sem juros, são todas regras que eles inventaram para desenvolver o conjunto Palmeiras, para ter várias atividades de economia solidária, várias cooperativas, numa situação de pobreza que era muito grave.
RDB – A moeda própria dá uma espécie de identidade local?
São bancos quatro em Fortaleza e mais uns onze no Ceará em diferentes municípios. Existem também na Bahia. Há um caso de Vitória muito interessante, são vários bairros pobres que se organizaram e criaram o Banco do Bem. Bem é a moeda social que protege o banco local. Quando você usa o Bem na área, ganha desconto, pequeno algumas vezes de 2% a 5%, mas que para gente pobre vale muito. Então há uma grande procura pela moeda pelos moradores e ele passa a ser aceito também pelo comércio próximo do bairro, fora do bairro, a moeda circula mais, e quanto mais circula melhor para o banco, melhor para comunidade, porque o comércio local, as associações de produtores, cooperativas, têm mais mercado. É uma arma de coesão para comunidade e simultaneamente um instrumento de desenvolvimento local.
RDB – E essa expansão do uso da moeda aumenta a credibilidade da organização?
Perfeito. Eu andei escrevendo para o Banco Central, que agora está interessado na moeda social, tanto assim que está em cogitação um acordo de cooperação entre o Banco Central e as Senaes, com objetivo de encontrar maneiras de regular a moeda social, o que eu acho muito melhor do que reprimir.
RDB – Apesar dessa evolução que o senhor aponta podemos dizer que aqui isso algo que está só engatinhando, porque tem países que o crédito cooperativo tem um capital gigantesco.
As cooperativas de crédito foram parcialmente criadas no Canadá; começou na Alemanha, na Itália também, e no Canadá. O chamado Sistema Desjardins (pronuncia-se “desjardã”) no Canadá francês, em Quebec, é enorme hoje (reúne quase 600 cooperativas e 73% da população do estado, com 6 milhões de associados e US$ 138 bilhões de ativos) e está ligado à economia solidária.
RDB – E estamos falando de países mais bem resolvidos econômica e socialmente, mas não exatamente socialistas.
Onde os bancos comunitários tiveram um florescimento inesperado e muito forte foi na Venezuela. Nós recebemos o ministro da Economia Popular em 2004. Ele esteve em Brasília, na Senaes, e depois viajou um pouco pelo Brasil. Veio conhecer a economia solidária, porque o ministério dele é para cuidar disso. Ele foi para Fortaleza e conheceu a experiência do Banco Palmas. Em seguida os dirigentes do Palmas foram convidados a levar a tecnologia para Caracas. Houve também uma emenda na Constituição venezuelana que diz o seguinte: qualquer conjunto de 200 ou mais famílias pode se transformar em comunidades, ou em comunas, eleger um conselho e se apresentar ao governo nacional, que reconhece a comuna e esta passa a ter acesso a recursos do orçamento nacional. Criaram-se a partir dessa legislação milhares de comunas.
RDB – Aí já se vê um viés socialista?
O socialismo do século XXI do Chávez se faz através de comunas, uma parte das comunas se organiza com bancos comunitários. Tem 3.600 bancos comunitários na Venezuela hoje; e 50 no Brasil, onde a coisa foi inventada e se multiplica devagar, naturalmente, como é o modo brasileiro. Em dois anos eles criaram 3.600 bancos. Eu fui averiguar se de fato funcionam, porque você precisa ter uma comunidade preparada para isso. Pelo que eu soube da Sandra Magalhães (do Banco Palmas de Fortaleza e do Fórum Brasileiro de Economia Solidária), que esteve seis vezes na Venezuela nos últimos anos visitando os bancos comunitários, o governo estima que 70% a 80% dos bancos comunitários funcionam. Perguntei a ela se achava que isso é real. Ela disse: “É isso mesmo”. Então digamos, por baixo, por baixo, os venezuelanos teriam 2.500 bancos funcionando e nós estamos provavelmente chegando até o fim do ano a 100. Vai crescer no Brasil, nós vamos ajudar, porque é uma arma muito importante para as comunidades também, mas aqui não há nem os recursos e, acho, nem vontade de fazer uma coisa nessa velocidade.
RDB – Por isso 2010 é particularmente mais importante para o Brasil?
Concordo.
RDB – É impressionante o problema que a descontinuidade na administração causa às políticas públicas. Nesse caso, uma política pública que surge de um movimento social, e que ainda está começando a dar frutos, pode ser o futuro. Ou não.
É, digamos que um candidato a futuro. Por falar nisso, a Campanha da Fraternidade 2010 tem por lema a Economia e Vida e por lema “você não pode servir a dois senhores ao mesmo tempo”, do evangelho de São Mateus, e os dois senhores são ou o dinheiro ou Deus. Eu estive no lançamento da Campanha, que era para ser de economia solidária e vai acabar sendo. E é uma campanha ecumênica, são cinco igrejas cristãs, a igreja católica, uma ortodoxa e mais três evangélicas, os anglicanos, os luteranos e os presbiterianos. O material da campanha não fala diretamente, fala pouco da economia solidária. Eles não querem identificar, eles vêem a economia solidária como uma coisa do governo, o que é uma inverdade.
RDB – E para alguns olhos também é uma expressão ideológica.
Bom, mas ideologicamente eles querem exatamente o que a economia solidária quer. Mas isso é um detalhe.
2ª parte da entrevista de Paul Singer para a Revista do Brasil.Por Paulo Donizetti de Souza – Publicado em 16/10/2009 na “Revista do Brasil”