Fonte: Entrevista com Jonas Bertucci – Instituto Humanitas Unisinos

As políticas chamadas de neoliberais objetivavam o crescimento econômico, mas ao contrário, tiveram efeitos perversos sobre as relações sociais de trabalho, precarizando-o. Isso gerou uma perda de confiança no trabalho e na economia como um todo, analisa o economista Jonas Bertucci na entrevista especial que concedeu por e-mail ao sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A crise mundial que hoje presenciamos “demonstra a necessidade de construção de alternativas de produção e distribuição de riquezas. A concentração, a desigualdade e a pobreza são os reflexos mais evidentes de uma sociedade que tem o lucro como orientação principal para sua produção econômica e para a satisfação de suas necessidades”, disse à reportagem. Ele sugere que o consumo de algumas camadas da população diminua, o que permitiria ampliar a qualidade de vida de todos. “O aumento na produção atualmente não é absolutamente necessário para a melhoria da qualidade de vida das pessoas”.

Segundo Bertucci, “a sociedade atual cria indivíduos que tem o racionalismo e a eficiência como critério para tomada de decisões em quase todos os momentos da sua vida cotidiana e que se orientam para um grande objetivo final – o sonho do consumo. A afetividade e a emoção perdem sentido. Muitos vivem para trabalhar e se destacarem em meio a uma realidade altamente competitiva e o próprio ato de (se) doar sem se esperar nada em troca é tido como tolice”.

Jonas de Oliveira Bertucci possui graduação em Ciências Econômicas pelo Centro Universitário do Distrito Federal e mestrado em Economia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (CEDEPLAR/UFMG). Participou da equipe de coordenação do Mapeamento da Economia Solidária no Brasil pela Secretaria Nacional de Economia Solidária e atualmente cursa o programa de doutorado em Sociologia da Universidade de Brasília.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que caracteriza a atual crise do capitalismo? É possível estabelecer relações entre a crise do capitalismo, a crise do mundo do trabalho e a crise financeira internacional? O que explica esse caos mundial?

Jonas Bertucci – Nas últimas décadas do século XX, os países capitalistas passaram por um processo de abertura comercial e pela flexibilização do mercado de trabalho. Essas políticas, chamadas de neoliberais, visavam gerar o crescimento econômico, mas ao contrário, tiveram efeitos perversos sobre as relações sociais de trabalho, na medida em que crescia a instabilidade e que o Estado do Bem-Estar Social saía de cena, junto com uma série de proteções ao trabalho que ele garantia. Essa precarização gerava uma perda de confiança no trabalho e na economia como um todo.

Mais recentemente, vivemos os efeitos de um outro processo de liberalização, a financeira, que ocorreu paralelamente a este. Com a globalização dos mercados financeiros, a ampliação do campo de atuação dessas instituições se deu de modo tão rápido quanto o das multinacionais que buscavam se instalar nos países em desenvolvimento, buscando mão-de-obra barata. Isso significa que há uma teia de relações complexas que torna interdependente toda a economia mundial. Essa interdependência existe desde o início do capitalismo, consolidado há pouco mais de dois séculos. Contudo, a velocidade com que os efeitos de uma crise são espalhados pelo mundo nunca foi tão grande.

IHU On-Line – Com a crise do capitalismo, que mudanças o senhor vislumbra na estrutura do emprego e no mundo do trabalho a curto e longo prazo?

Jonas Bertucci – É muito difícil prever a nova configuração do mundo do trabalho nas próximas décadas. O que se considerava antes como uma classe homogênea, o proletário, assume uma configuração altamente diversificada hoje, não sendo possível tratá-la como uma classe com objetivos e interesses imediatos comuns. Ao mesmo tempo, a produção dá lugar ao setor de serviços num quadro global de revolução das tecnologias de informação. Cada vez se produz mais e melhor. A quantidade de trabalho necessária para se satisfazer as necessidades básicas de toda a população se reduz, o que nos permite dizer, num cálculo simples, que todos poderiam trabalhar menos e se dedicar mais a atividades criativas – e serem mais felizes.

IHU On-Line – A crise financeira internacional tem gerado estragos violentos no mundo do trabalho. Qual o desfecho dessa situação para os trabalhadores e para a humanidade?

Jonas Bertucci – De um ponto de vista técnico, a fome é um problema que poderia ser resolvido há muito tempo. No entanto, isso não é tão simples. Trata-se de uma questão política e social, que não se resolve pela implementação de uma idéia vinda de uma mente brilhante. De um ponto de vista sociológico, é compreensível que a redução da jornada de trabalho e a redistribuição do lucro não é algo que será imediatamente aceito por todos. Mais do que isso, é possível dizer que tais medidas são contraditórias ao desenvolvimento capitalista. O resultado é o que já conhecemos, o desemprego e a pobreza ao lado da abundância.

IHU On-Line – Nesse contexto de mudanças, a economia solidária pode ganhar algum destaque ou transformar esse cenário?

Jonas Bertucci – No meio desse processo, uma das expressões dessas contradições é esse conjunto de atividades e práticas associativas, organizadas de maneira coletiva no campo e na cidade por trabalhadores excluídos dos meios formais de trabalho. Essas novas formas, conhecidas no Brasil como Economia Solidária, se organizam e se reproduzem em diferentes configurações pelo mundo e têm como ponto em comum o questionamento da relação de subordinação do trabalho capitalista – conhecida como “emprego” ou “trabalho assalariado”. Da autogestão do trabalho, passamos a uma idéia mais ampla da autogestão social.

IHU On-Line – Para o senhor, a crise internacional já atingiu de modo intenso o mundo do trabalho ou maiores transformações irão ocorrer?

Jonas Bertucci – Muitos acreditam que de pouco a pouco a compreensão do emprego dará lugar a uma idéia mais ampla de trabalho, na medida em que se amplia o poder dos trabalhadores sobre os meios de produção e de decisão, seja pelas formas mais tradicionais (e indiretas) de participação acionária nos ganhos da empresa, seja pelo crescimento de alternativas coletivas, seja pelas experiências em conselhos comunitários que permitem políticas de orçamentos participativos que permitem o uso de recursos públicos mais bem coordenados com os interesses da população local, que se vê obrigada a refletir sobre seu futuro. Contudo, esta é apenas uma aposta, cujo resultado só pode ser resolvido na prática política e social.

IHU On-Line – Para os otimistas, momentos de conflito podem gerar mudanças positivas. Em que sentido a teoria do valor trabalho pode ajudar a compreender atual crise?

Jonas Bertucci – A teoria do valor trabalho foi elaborada para explicar o funcionamento do capitalismo, suas crises, a produção e distribuição de valores em uma sociedade baseada no mercado. A teoria continua válida, evidentemente. O que acontece é que esta é uma teoria para explicar sociedades capitalistas. Se outras formas de reprodução, que se baseiam em relações de produção não capitalistas, começam a se multiplicar, a lei do valor começará a perder o sentido como meio de organização da atividade econômica e da vida – mas isso é um processo longo cuja forma e caminho é impossível prever.

IHU On-Line – A crise do capitalismo sugere a construção de um novo modelo de desenvolvimento e inclusão social? Que mudanças são necessárias?

Jonas Bertucci – A crise, historicamente, demonstra a necessidade de construção de alternativas de produção e distribuição de riquezas. A concentração, a desigualdade e a pobreza são os reflexos mais evidentes de uma sociedade que tem o lucro como orientação principal para sua produção econômica e para a satisfação de suas necessidades. No entanto, não podemos parar aí. Mesmo se não houvesse crises, seria preciso questionar em todas as suas dimensões a forma de convivência social na qual estamos hoje inseridos. A sociedade atual cria indivíduos que tem o racionalismo e a eficiência como critério para tomada de decisões em quase todos os momentos da sua vida cotidiana e que se orientam para um grande objetivo final – o sonho do consumo. A afetividade e a emoção perdem sentido. Muitos vivem para trabalhar e se destacarem em meio a uma realidade altamente competitiva e o próprio ato de (se) doar sem se esperar nada em troca (ao menos algo que não possa ser compreendido como útil) é tido como tolice. Nesse sentido, a saída não advém de uma resposta técnica, mas política, de um conjunto de escolhas mais ou menos livres que os próprios cidadãos precisarão fazer ao nível local e cotidiano, sem desconsiderar as restrições que o global os impõe. Não é possível aqui detalhar todos esses aspectos, mas é possível exemplificar, mais do que políticas em si, algumas orientações as quais, entre muitas outras, acredito que devem ser cada vez mais (per)seguidas de maneira coordenada e articulada neste novo milênio.

Redução de consumo

No campo macro-econômico-financeiro imediato, o Estado tem o papel de deter o pânico, restaurar a confiança e permitir medidas mais duráveis de reforma e re-regulação financeira que corrijam os excessos da liberalização dos anos 1980. Isso deve ser articulado a um esforço de melhoria dos serviços púbicos como saúde e educação (e não à sua privatização), assim como à uma mudança de orientação das políticas que se baseiam na ideia ilusória do crescimento econômico (ideologia a qual mesmo os governos ditos mais à esquerda tem dificuldade de superar).

Como discutimos resumidamente antes, o aumento na produção atualmente não é absolutamente necessário para a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Mais do que isso, talvez seja necessário reduzir o consumo de algumas camadas da população para se permitir uma ampliação da qualidade de vida de todos. Isso significa iniciar um amplo processo de redução/readequação equilibrada do nível de produção que orientaria a sociedade a desenvolver outras práticas de saúde, de lazer, alimentação, etc. (o que traz à tona também a necessidade de regulação da emissão de poluentes e do sério problema ambiental que teremos que enfrentar).

Para exemplificar, é possível partir da problemática dos transportes. No campo das políticas urbanas, é perfeitamente possível e desejável reduzir o número de carros nas ruas (motivo de estresse e problemas de todos os tipos nas grandes cidades). Isso pode ser feito, implementando-se uma política de taxações que desincentivariam o uso do veículo, coordenada ao mesmo tempo com políticas estruturais que permitiriam um refluxo de recursos para alternativas de locomoção que favoreceriam o transporte público, em detrimento do transporte privado. Assim, também se revalorizariam os meios de mobilidade não motorizada, associado ao planejamento de ciclovias, espaços públicos de lazer e a medidas de facilitação da locomoção de pedestres. Num sentido ecológico amplo, este tipo de medida parte de uma visão sistêmica que vê no desenvolvimento local uma possibilidade de valorização de formas de produção, de cultura e de saberes populares autônomas, sem que se negue os avanços que a tecnologia pode oferecer.

Reportagem: Graziela Wolfart e Márcia Junges