Artigo de Gilberto Dupas*
Podemos sonhar com uma agricultura orgânica que gere mais saúde que doenças, produzindo comida de boa qualidade? A ALIMENTAÇÃO humana, contaminada de agrotóxicos e pesticidas e alterada em sua natureza intrínseca pelo processamento radical, está sendo acusada por especialistas de ter sido transformada em uma máquina de fabricar doentes e gerar verdadeiras epidemias contemporâneas, como cânceres e diabetes.
Para complicar mais, para produzir comida exige-se agora que a agricultura dispute as terras disponíveis com os biocombustíveis necessários para mover outra praga global: a frota explosiva de automóveis.
Durante o século 19, as principais preocupações associadas a questões agrícolas e ambientais na Europa e na América do Norte eram o esgotamento da fertilidade das terras, a crescente poluição das cidades e o desflorestamento de continentes inteiros.
Com a exaustão dos fertilizantes naturais, agricultores europeus da época chegaram a invadir as regiões das batalhas de Waterloo e Austerlitz para buscar os ossos das catacumbas e espalhá-los moídos sobre seus campos. O primeiro barco carregado de guano peruano -esterco de aves marinhas- chegou a Liverpool em 1835; em 1847, já se importavam 222 mil toneladas anuais.
Por volta dos anos 1860, Marx havia se convencido da natureza insustentável da agricultura capitalista.
Suas contradições foram muito sentidas nos EUA com o bloqueio do guano peruano pelo monopólio britânico. O Decreto das Guano Islands, aprovado pelo Congresso em 1856, fez os norte-americanos se apossarem de quase 70 ilhas e arrecifes em todo o mundo. Com o esgotamento das reservas peruanas, foi necessário substituir o guano por nitratos chilenos. Essa sucessão de crises impulsionou os grandes avanços na ciência do solo, estimulando a revolução agrícola com a indústria de fertilizantes.
Continuavam, porém, preocupações crescentes com a “exaustão do solo” e o processo de destruição ecológica. Começaram, então, a ser utilizados nitrogênio, fósforo, potássio e os “superfosfatos” sintéticos.
Percebendo essa crise estrutural na fertilidade das terras, Marx acusou a agricultura capitalista de larga escala e a indústria de se unirem para empobrecer o solo e o trabalhador; a grande propriedade fundiária iria reduzindo a população agrícola a um mínimo e surgiria uma crescente população industrial amontoada nas cidades.
Para ele, era uma falha irreparável no processo interdependente do metabolismo social, prescrito pelas leis naturais; o sistema industrial e o amplo comércio aplicados à agricultura debilitariam os trabalhadores e ofereceriam aos produtores meios para exaurir o solo. As condições de sustentabilidade impostas pela natureza haviam sido violadas. Curioso que tal idéia se aproxime da noção atual de desenvolvimento sustentável.
A solução de Marx para essa grave questão era o tratamento racional da terra como propriedade comunal permanente, o que, porém, se mostrou um fracasso quando aplicado nas experiências de socialismo real. Foi a agricultura capitalista de larga escala -apoiada numa poderosa indústria global de agrotóxicos, fertilizantes, pesticidas e produtos químicos avançados- que acabou se impondo globalmente durante a segunda metade do século passado.
De fato, com essas tecnologias e manejos, o grande agronegócio global deu conta da oferta de alimentos básicos para crescentes populações mundiais; mas a qualidade dos produtos alimentares resultantes se degradou. Contaminados por pesticidas, antibióticos, hormônios e resíduos tóxicos, alimentos padronizados e suas cadeias protéicas deixam atrás de si um meio ambiente devastado.
Os transgênicos, última promessa da técnica, são ditos capazes de revolucionar o mundo dos alimentos. Mas seus riscos são omitidos, culturas tradicionais e variedades genéticas são destruídas, a padronização aumenta, a qualidade final é posta em dúvida, os efeitos sobre a saúde causam preocupações e a dependência tecnológica se concentra.
Será que podemos voltar a sonhar com uma agricultura orgânica que gere mais saúde que doenças, produzindo comida natural de boa qualidade, verduras e legumes sem agrotóxicos e não envenene terras cultiváveis e rios? Ou estaremos inevitavelmente condenados à esquizofrenia de uma civilização que alerta cada vez mais sobre o risco dos alimentos contaminados, mas obriga quem quiser ser saudável a procurar produtos orgânicos por mais que o dobro do preço?
GILBERTO DUPAS , economista, é coordenador geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais e autor de “O Mito do Progresso” e “O Incidente”, entre outras obras.
*Artigo originalmente publicado na Folha de S.Paulo, 04/11/2008.