Fonte: Artigo de Paul Singer*
Há mais de um ano as relações entre o Estado brasileiro e as organizações não-governamentais estão em estado quase catatônico, devido a um enrijecimento crescente dos controles de convênios que regem as parcerias entre ambos.
As causas desse enrijecimento são múltiplas. O número de ONGs vem crescendo cada vez mais depressa, conforme os censos do IBGE das Fasfil (fundações e associações sem fins lucrativos): em 1996, havia 107.332 no Brasil; em 2002, elas passaram a ser 275.895; em 2005 (último censo), eram 338.162. Se o ritmo de crescimento do último triênio meramente se manteve, o número de ONGs deve neste ano andar por volta de 416 mil.
A análise dos resultados do censo de 2005 pelo IBGE aponta algumas razões desse crescimento acelerado: “A idade média das Fasfil, em 2005, era 12,3 anos, e a maior parte delas (41,5%) foi criada na década de 1990. Entre os vários fatores que contribuíram, naquele momento, para o crescimento acelerado dessas entidades, destaca-se o fortalecimento da democracia e da participação da sociedade civil na vida nacional”.
Mais adiante, o texto do IBGE diz que a maioria das entidades a partir dos anos 1990 é voltada para a promoção do desenvolvimento e da defesa dos direitos e interesses dos cidadãos.
À medida que o Brasil se redemocratizou e passou a eleger governos cada vez mais comprometidos com políticas sociais de redistribuição da renda e de luta contra a exclusão social e a pobreza, era inevitável que essas políticas exigissem o engajamento de um número crescente de ONGs dedicadas à educação popular, à prevenção das causas da mortalidade infantil e subnutrição, à organização dos trabalhadores excluídos em associações autogestionárias e muitos outros objetivos análogos.
Com a expansão do número dessas entidades, vieram ONGs falsas, criadas para se apoderarem em proveito próprio de parte das verbas destinadas àquelas políticas.
As fraudes perpretadas pelas falsas ONGs são da mesma índole das praticadas pelos que desviam o recurso público destinado à compra de bens e à contratação de serviços a fim de assim se locupletarem.
As denúncias de fraudes cometidas por meio de ONGs repercutem do mesmo modo que os demais escândalos de corrupção, colocando-as num contexto que leva à suspeita todas as políticas sociais do governo federal.
Como reação natural, os órgãos de controle internos e externos ao governo passam a exigir novos controles, mais rígidos, além de substituir as parcerias entre o governo e as ONGs por chamadas públicas, o que destrói a confiança mútua construída em anos de colaboração entre os dois lados que conveniam e, em seu lugar, instaura a competição entre ONGs que atuam nos mesmos setores.
Estão sujeitos às novas regras institutos de pesquisa científica, entidades de assistência social, hospitais e universidades que não visam lucro, sindicatos, cooperativas, associações esportivas, entidades do Sistema S de ensino profissional, organizações indígenas, de quilombolas etc.
É óbvio que fraudes têm de ser prevenidas e severamente reprimidas, mediante controles cuidadosos e eficazes da natureza da entidade a ser conveniada, do valor a ser expendido, da efetiva execução das ações programadas e dos resultados alcançados.
Mas é fundamental evitar que os controles se somem e se multipliquem, o que não aumenta sua eficiência, só absorve recursos que deveriam ser aplicados na realização dos objetivos dos convênios.
Infelizmente, chegou-se ao extremo de assimilar os procedimentos dos convênios com ONGs aos da contratação de empresas de porte com fins de lucro. O que praticamente impede a realização de convênios com ONGs pobres, emanadas de comunidades carentes, as quais prestam serviços relevantes. E tende a entregar ao mercado a prestação de toda a gama de serviços acima referidos.
Não há motivos para duvidar das boas intenções dos que promovem a exacerbação dos controles, mas seus efeitos tendem a ser desastrosos para o povo pobre, que depende de serviços gratuitos de saúde, educação, assistência social etc.
É necessário que o desenho dos controles tenha a participação não só de representantes dos órgãos de controle e prevenção de fraudes mas também dos órgãos do governo que realizam convênios para cumprir as missões que a lei lhes atribui e sobretudo dos representantes das próprias ONGs autênticas, que são as maiores interessadas em coibir as práticas desonestas, que só as prejudicam, como as ocorrências do último ano fartamente comprovam.
* Paul Singer é professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP e secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego. Artigo publicado na “Folha de SP”.