Professor da UFRJ diz que essas técnicas são utilizadas pelas empresas exploradoras dos recursos naturais em toda a América Latina

Fonte: http://www.mabnacional.org.br/noticias/190908_setor_eletrico.html

Há tempos está em pauta a disputa pelo controle e exploração dos recursos naturais por grandes empresas multinacionais. A biodiversidade, a água e minérios, são os principais alvos. Na situação de ribeirinhos, milhares de brasileiros sentem na pele o que é ser desapropriado para, onde crescia o milho e o feijão, erguer-se o muro da barragem e formar-se o lago da usina. Para melhor compreendermos o que as empresas fazem para legitimar suas obras que tanto prejudicam os povos e o meio ambiente, conversamos com Henri Acselrad, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que procura entender a rede de processos sociais, ecológicos e políticos que põem a natureza no centro dos conflitos sociais.

Jornal do MAB: Quais as principais razões para o uso de técnicas de desmobilização social e formação do consenso em áreas de conflito na América Latina?

Henri Acselrad: Neste início do século XXI, em inúmeros países da América Latina, é visível o esforço para a criação de projetos voltados à difusão de técnicas de “resolução de conflitos ambientais”. Originadas em instituições sediadas em países centrais e voltadas para a “capacitação” de entidades de países periféricos, tais iniciativas pretendem a difusão de modelos de análise e ação que pressupõem que a paz e a harmonia deveria surgir de um processo de despolitização dos conflitos através de táticas de negociação direta capazes de “fornecer ganhos mútuos”, tanto para as comunidades que serão prejudicadas, quanto para os empreendedores.

Em nome de oferecer “uma técnica de solução de conflitos rápida, ágil, flexível e particularizada a cada caso” e “uma justiça menos dispendiosa”, tratam de psicologizar o dissenso e tecnificar seu tratamento através de manuais destinados a transformar os “pontos quentes” em “comunidades de aprendizado”. Isso acontece justamente nos países que exportam seus recursos naturais, através de barragens, por exemplo. Para tornar aceitáveis as condições de inserção internacional destas economias, seria necessário neutralizar, de algum modo, a ação das populações que resistem aos processos de concentração de recursos naturais nas mãos de grandes interesses econômicos, seja no âmbito da gestão das águas, dos solos, da biodiversidade ou das redes de infra-estruturas.

Jornal do MAB: Em que consistem essas regras e manuais e o que seriam os “pontos quentes” e as “comunidades de aprendizagem” de que você fala?

H.A.: Os pontos ditos “quentes”, na linguagem dos agentes da neutralização da crítica dos movimentos sociais, são aqueles em que a sociedade se organiza para problematizar a dominação que sobre ela é exercida. As “comunidades de aprendizagem”, por sua vez, são os grupos convidados a se submeter a uma pedagogia da desorganização, a apreender a não fazer tantos questionamentos. Este ideário do conformismo pretende que as comunidades sejam levadas a “dizer sim” aos projetos de infra-estrutura. As técnicas de formação de consenso são formuladas de modo a caracterizar todo conflito como problema a ser eliminado. E todo conflito restante tenderá a ser visto como resultado da carência de capacitação para o consenso e não como expressão de diferenças reais entre as comunidades e as empresas.

Jornal do MAB: “O encaminhamento do conflito não se dá pela discussão sobre aquilo que é justo ou injusto, mas pela maior ou menor capacidade dos agentes barganharem seus interesses”. Quando você afirma isso, significa dizer que a organização da população atingida possibilita maior poder de ganho das comunidades?

H.A.: Para estabilizar a especialização do Brasil na exportação de recursos naturais – água, energia barata, minérios, etc. – os grandes interesses econômicos procuram tratar os conflitos caso a caso. Buscam evitar que eles sejam politizados e que levem a uma discussão mais ampla sobre o modelo de desenvolvimento. Quando os movimentos se organizam e apontam a dimensão política dos grandes empreendimentos e dos processos de concentração dos recursos do território nas mãos dos grandes interesses econômicos, entra em pauta a questão da democratização do território. Surgem então os questionamentos: para que fins os camponeses devem ceder seu espaço de vida para beneficiar as acumulação de riqueza em poucas mãos? Porque razão as comunidades indígenas e de pescadores devem perder o acesso à água limpa e à biodiversidade para abrir espaço para os lucros da monocultura exportadora?

Jornal do MAB: No Brasil, o processo de construção de barragens é coberto de experiências nas quais as empresas tentam, a todo custo, desmobilizar a população. No entanto, existe a reação das comunidades atingidas. Você poderia destacar a forma como isso acontece?

H.A: Se considerarmos a democracia como algo mais do que o sentido hoje vulgarizado de um simples regime político-eleitoral, mas sim como um processo social que legitima o debate sobre o que é legítimo e o que é ilegítimo, perceberemos que o Movimento dos Atingidos por Barragens alinha-se entre os atores sociais estratégicos da construção democrática em nosso país.

E o que os movimentos em geral apreenderam, e têm procurado nos ensinar, é que é legítimo não se submeter às imposições dos dominadores, notadamente internacionais, do poder de investir – imposições estas que via de regra ameaçam esgotar nossa base de recursos e desestabilizar espaços de vida de populações pobres. E isto eles, os atingidos, o fazem transformando-se de forma inovadora: de simples vítimas de projetos autoritários tornam-se sujeitos da discussão ampliada das políticas energéticas e pretendem que sejam melhor discutidas, de modo a não concentrar seus custos sociais e ambientais sobre as populações mais despossuídas, como tem sido praxe mesmo vinte anos após o fim da ditadura.