Fonte: enviado por inesrosabueno@yahoo.com.br
Segundo Inês Rosa Bueno o texto abaixo é muito bom. E uma das formas de fazer as alianças regionais, seja na América do Sul, seja no sul da África, seja onde for, é através do fortalecimento de redes de comércio justo nessas regiões e entre essas regiões, que nos permitam virar as costas para a economia das grandes corporações transnacionais, inclusive negando o consumo dos produtos monofaturados que pregam mundo afora, acompanhados de modelos institucionais obsoletos e máquinas obsoletas.
Problemas estruturais que impedem a produção voltada à alimentação local nunca foram resolvidos dessa forma
A maior parte das vozes que se fizeram ouvir durante a última reunião da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), em Roma, continuaram insistindo nos mesmos raciocínios de sempre quando falam do campo e da pobreza no planeta, ainda que agora seus argumentos estejam reforçados pelo aumento espetacular dos preços dos alimentos – o qual ameaça com a fome milhões de pessoas do mundo subdesenvolvido. Tais raciocínios são diferentes de acordo com sua procedência. Os governos dos países dominantes, a agroindústria, as grandes firmas de transformação e distribuição de alimentos e os organismos multilaterais (Organização Mundial do Comércio – OMC, Fundo Monetário Internacional – FMI, Banco Mundial – BM) sustentam que a pobreza dos países subdesenvolvidos seria solucionada se houvesse uma maior liberalização comercial no mundo.
Os governos dos países pobres e algumas ONGs, por sua parte, insistem que os ricos deveriam abandonar a proteção às suas agriculturas, eliminando de uma vez por todas as ajudas e subsídios ao setor agropecuário para evitar, assim, uma concorrência desleal nos mercados internacionais. As intenções de uns e outros são muito diferentes, algumas até boas, ainda que, do meu ponto de vista, sejam igualmente equivocadas e ao final desemboquem na implementação de estratégias e receitas muito parecidas.
Livre mercado
Como aponta o historiador Eric Hobsbawn, imaginar que o comércio internacional livre e sem limitações permitirá que os países pobres se aproximem dos ricos vai contra a experiência histórica e o senso comum. Quem ganha mais e melhor com as aberturas de mercados são as corporações transnacionais de grande distribuição organizada. Inclusive as recentes políticas agrárias da União Européia, que tentam adaptar o setor a um comércio internacional livre de travas aduaneiras e de subsídios agrícolas protecionistas, foram feitas para atender às grandes companhias agroalimentares do continente. E estas não se movem exatamente pela solidariedade e nem pelo altruísmo de um comércio internacional mais justo, mas sim pelo interesse em comprar as matérias-primas que utilizam ou os produtos frescos que vendem ao preço mais baixo possível para negociá-los o mais caro que puderem.
Em qualquer um dos casos, e à luz de experiências concretas, a liberalização comercial que preconizam esses paladinos do livre-comércio implica de fato em prejuízo claro para os pobres dos países ricos, mais precisamente, aos agricultores, em benefício quase exclusivo dos ricos dos países pobres, ou, o que dá no mesmo, a oligarquia latifundiária, a agroindústria e os exportadores mais dinâmicos, sem esquecer, claro, das transnacionais que ali atuam.
Agroexportação
Para conseguir as matérias-primas e os produtos agroalimentares a um preço baixo, essas pujantes corporações, com a conivência de muitos governos locais, fomentam os modelos agroexportadores, baseados em uma monocultura depredadora e empobrecedora que arruína os ecossistemas, a agricultura camponesa e a organização social de muitas comunidades rurais. A distribuição organizada precisa de grandes fornecedores capazes de oferecer enormes quantidades de produtos padronizados, a um preço mínimo e no menor tempo possível, e, por isso, procuram os países subdesenvolvidos, onde a terra e a mão-de-obra são baratas e a legislação ambiental e trabalhista são permissivas.
Além disso, o modelo agroexportador supõe que muitos países dediquem as terras de cultivo aos produtos suscetíveis de serem vendidos nos mercadores exteriores (flores, hortaliças, soja, cítricos, cana-de-açúcar), em detrimento da produção alimentar da população local (trigo, arroz, mandioca, feijão). O mundo desenvolvido cada vez consome mais produtos que vêm de longe e fora da estação correta. Tudo isso provoca enorme êxodo rural e leva a fome e a desnutrição para milhões de seres humanos, assim como uma grande contribuição à poluição e ao aquecimento global.
A questão agroalimentar e as ameaças que pairam sobre ela têm muito que ver com a existência de dois modelos produtivos: a agricultura familiar e camponesa e a agroindústria. Este último é dominante e sua influência afeta o mundo camponês até o ponto de contribuir com sua inviabilidade e conseqüente desaparição. Definitivamente, os problemas que oprimem aos agricultores dos países pobres são muito parecidos com aqueles que devem ser enfrentados pelas famílias dos países ricos.
Luta no campo
Apesar dos eloqüentes discursos e declarações oficiais, os quais tranqüilizam as consciências e ajudam a difundir entre a população mundial a preocupação um tanto cínica de muitos governos e das instituições de Washington (FMI e BM), a realidade demonstra que os alimentos sobem de preço constantemente e que cada vez menos pessoas têm acesso a eles.
Por outro lado, o termo comércio justo encontra-se cheio de confusões e ambigüidades. Existe uma visão tradicional cujo enfoque orienta-se sobre a necessidade dos camponeses dos países pobres venderem seus produtos no exterior como forma para sair do subdesenvolvimento. No entanto, há uma outra maneira mais global e crítica de enfrentar a questão, pois sobram pessoas bem intencionadas que compram um produto de um país subdesenvolvido pensando que assim está apoiando os camponeses desses lugares, quando na verdade está contribuindo para fomentar um modelo produtivo depredador e responsável por grandes impactos ambientais e exclusões sociais em amplas áreas do planeta.
O comércio justo serve para sensibilizar a população, até aqui perfeito, mas os graves problemas estruturais que perseguem os camponeses, impedem a produção agrária voltada à alimentação local e ameaçam a soberania alimentar dos povos nunca foram resolvidos dessa forma.
União internacional
Por mais paradoxo que pareça à primeira vista e contra aquilo que se insiste propagandear nas mais diversas instâncias, a melhor forma de defender os camponeses dos países subdesenvolvidos é proteger os agricultores familiares das nações ricas. Assim, o comércio seria mais eqüitativo, o consumo ganharia em responsabilidade e as grandes transnacionais de distribuição e transformação agroalimentares ficariam impossibilitadas de arruinar uns e outros.
Talvez os países subdesenvolvidos devessem renunciar à miragem da liberalização comercial e da assinatura de tratados de livre-comércio com as nações dominantes e se agruparem em blocos regionais políticos e econômico-mercantis que os possibilitariam defender melhor seus interesses, dando proteção aos seus produtores e camponeses mediante a implementação de uma preferência comercial regional similar à que inspirou a Política Agrícola Comum (PAC) quando foi criada a Comunidade Econômica Européia (CEE), em 1957.
José Antonio Segrelles, catedrático em geografia humana, é diretor do Grupo Interdisciplinar de Estudos Críticos e da América Latina (Giercryal), na Universidad de Alicante (Espanha).