Texto de Washington Novaes*
Ao mesmo tempo que a demarcação da área indígena Raposa Serra do Sol se vai transformando em delicada questão internacional – com a decisão do relator especial da ONU para direitos indígenas de visitar a região -, o Supremo Tribunal Federal (STF) decide na próxima semana se confirma a demarcação homologada pelo presidente da República em 2005 ou se dá razão aos plantadores de arroz que ocuparam porções ali, recusam-se a sair e são apoiados por grande parte da corporação política do Estado, em sua pretensão de que o STF mande fazer uma demarcação apenas em “ilhas” ao redor das aldeias e permita aos invasores permanecer onde estão.
O presidente da República já deu declarações confirmando a demarcação contínua que ele mesmo homologou em 2005. O STF já rejeitara cerca de 30 ações contra a demarcação. A Funai já depositara R$ 5 milhões para indenizar os invasores. A Procuradoria-Geral da República recomendara a retirada dessas pessoas. O governo federal até prometera pôr à disposição outras terras da União para receber os plantadores. Mas, surpreendentemente, o próprio STF mandou suspender a retirada e até ministros de Estado foram à área, embora não haja questões de fato a julgar, e sim questões jurídicas.
Neste momento surge, para clarear o panorama, a pedido do Conselho Indígena de Roraima, parecer do constitucionalista José Afonso da Silva, professor de duas universidades públicas, autor de vários tratados, ex-secretário de Assuntos Jurídicos da Prefeitura de São Paulo, ex-secretário de Segurança do Estado, assessor brilhante na Constituinte de 1988. E seu parecer é arrasador.
Ele começa relembrando o que poucos sabem: o direito dos indígenas à ocupação de terras onde vivem tradicionalmente – o “indigenato” – é reconhecido desde as cartas régias, como a de 1680, que admitiu expressamente esse direito de posse permanente, reforçado por uma lei de 1775, que mandou respeitá-lo mesmo em distribuição de sesmarias. O indigenato continuou reconhecido pelas Constituições de 1891, 1934, 1967 (artigo 186) e 1988. Esta última diz que as terras ocupadas tradicionalmente pelos índios pertencem à União, mas são destinadas “para sempre” aos seus habitantes. Não se trata de usucapião, esclarece o jurista. Nem de matéria regida por normas do Código Civil. São terras vinculadas ao indigenato.
Lembra o professor José Afonso que as áreas da Raposa Serra do Sol foram reconhecidas, na homologação da demarcação, como terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e por eles habitadas em caráter permanente, utilizadas nas suas atividades produtivas, “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos e costumes e tradições”. Por isso, a ocupação de frações dessas terras pelos plantadores de arroz “significa usurpação de direitos originários”. E a demarcação “em ilhas” pode implicar graves danos, como já aconteceu – ressalta ele – em Mato Grosso do Sul, em área dos índios guaranis. Só que “a Constituição não permite mais isso”. Tanto assim que o próprio então procurador da República Gilmar Mendes – hoje presidente do STF -, em projeto referente ao Parque do Xingu, transcreveu parecer segundo o qual “fracionar a região que hoje ocupam coletivamente em territórios particulares, isolados por faixas que seriam mais tarde ocupadas por estranhos, seria destruir uma das bases do sistema adaptativo daqueles índios e condená-los ao aniquilamento”. E esse texto foi aprovado pelo então procurador-geral Sepúlveda Pertence, mais tarde ministro do Supremo Tribunal Federal.
Segundo o parecer do professor José Afonso, a demarcação contínua não afeta a soberania nacional, tanto que há legislação que dispõe sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal em áreas indígenas, sobre a instalação de unidades militares nessas frações, sobre equipamentos de fiscalização e de apoio à navegação aérea e marítima. E nunca houve conflitos com índios. Quanto ao alegado problema com organizações não-governamentais (ONGs), diz ele, se houver, pode ser resolvido com o cancelamento da autorização para que ali operem. Também não há o alegado conflito federativo, já que o direito reconhecido pela demarcação é anterior à própria Constituição e à criação do Estado federado. E quanto à interrogação sobre se a demarcação não cria limites para a intervenção do Estado, responde que, de fato, cria, da mesma forma que há limites também nas áreas privadas.
Diante de tudo isso, conclui o parecer, a localização e a extensão da área demarcada não são ditadas por critérios de conveniência do poder público, e sim pela ocupação tradicional. A seu ver, a União não pode diminuir nem dividir a área obedecendo a critérios políticos ou econômicos – porque desrespeitaria o artigo 231 da Constituição. Também não há riscos para a soberania, mesmo sendo faixa de fronteira (ele relembra episódios em que os índios ajudaram a defender a soberania brasileira). E “não compromete a existência do ente federado” (o Estado de Roraima). Relembra, a propósito, argumentos citados neste espaço em 18/4: mesmo com a demarcação, Roraima tem, fora dela, 120 mil quilômetros quadrados, mais que o Estado de Pernambuco (98,2 mil quilômetros quadrados), onde vivem 7,91 milhões de pessoas (em Roraima são 324,3 mil, das quais 247 mil em áreas urbanas e apenas 77,3 mil em zonas rurais).
É um parecer que ilumina o contexto histórico e não deixa dúvidas jurídicas. Resta aguardar a decisão do STF, no momento em que o problema provoca uma intervenção da própria Comissão de Direitos Humanos da ONU.
* Washington Novaes é jornalista, e-mail: wlrnovaes@uol.com.br. Texto divulgado por sgeral@mst.org.br