Estava em Porto Alegre, sexta de manhã, pronto pra zarpar para Santa Maria, coração do Rio Grande do Sul, Feira da Economia Solidária, organizada pela irmã Lurdes Dill e equipe. Vem um telefonema: acidente em Rondônia com ônibus lotado de companheiros e companheiras da Rede TALHER de Educação Cidadã, entre as quais Lurdes Santin, que trabalha comigo na equipe nacional do TALHER (hoje está em casa, recuperando-se de fraturas). Não se sabia direito o que houve, como foi. Aos poucos as notícias iam chegando.
Acidente grave, muitos mortos e feridos.
Dos mortos, três eu conhecia mais de perto e tinha encontrado faz pouco num Encontro Macro-regional da Rede em Presidente Figueiredo, Amazonas: Valdir, Bruna e Néia (os outros mortos ligados à Rede de Educação Cidadã são: Zacarias, Luiz Fernando, Luiz Ferreira, Isaneide, Alípio, Jéferson, Otília, Robson, Elaine, Caio. Morreram mais os dois motoristas e a esposa de um deles). O Valdir contou-me parte de sua vida numa viagem de Manaus a Presidente Figueiredo, AM. Foi menino de rua em Manaus. Como a mãe não tinha condições de criá-lo, foi adotado por uma família de Caracaraí, Roraima. Tinha 43 irmãos, os quais, garimpando, descobriu e conheceu todos: 10 de sua mãe adotiva, 11 de sua mãe biológica, 22 de seu pai. Disse-lhe que um dia precisava reuni-los todos para uma grande festa. Com os salários da Rede de Educação Cidadã, conseguiu construir casa para sua mãe biológica e seus irmãos muito pobres de Manaus. Foi quem fez as primeiras denúncias, anos atrás, sobre pedofilia envolvendo personagens das elites de Boa Vista, RR. Criou sozinho seu filho Vinícius de 8 anos. Morreu nos braços de uma enfermeira no hospital, chamando desesperadamente pelo filho. Viajou para o Encontro em Rondônia para falar sobre a reserva indígena Raposa Serra do Sol, em cuja luta e defesa de demarcação era uma das principais lideranças.
Bruna veio de Rezende, Rio de Janeiro, para Manaus, onde trabalhou na área de direitos humanos e onde conheceu Wesley, seu companheiro, que era do MAB Movimentos por Atingidos por Barragens. Mudou-se para Porto Velho, fez Mestrado em Direito Ambiental e engajou-se nas lutas contra as hidrelétricas. No Encontro em Presidente Figueiredo, no final de junho, fez uma análise dos grandes projetos previstos para a Amazônia.
Néia (Francinéia), que morreu junto com sua filha Liz Eduarda, era uma liderança do Bairro São Sebastião, um dos mais pobres de Porto Velho. Junto com toda família fazia trabalho de pastoral e de organização da sua comunidade. No seu velório, sua mãe Fátima usava a camiseta da Rede de Educação Cidadã, dizendo que a filha a isso tinha se dedicado e que ela também era e continuaria sendo voluntária deste trabalho de mobilização social e educação popular. Na sexta, 11 de julho, dia do acidente, escrevi a mensagem abaixo, enviada para toda a Rede de Educação Cidadã.
Companheiros e companheiras. Estou aqui em Santa Maria, Rio Grande do Sul, na Feira Latino-americana de Economia solidária, tentando um jeito de ir a Rondônia amanhã.
Meu coração está tristíssimo, como o de todos vocês. Viajei pra cá sem conseguir tirar o pensamento de todos e todas, especialmente dos companheiros que se foram.
Não sei ainda o nome de todos, mas me lembrei especialmente do Valdir e da Bruna. Viajei com o Valdir e com o Vinícius, seu filho, duas semanas atrás, de Manaus a Presidente Figueiredo, para o Encontro Macro-regional Norte. E ele me contou a saga da sua vida, sobre a qual ainda pretendo escrever com mais calma, mas com toda emoção deste momento.
Depois, atrasada, a Bruna veio ao encontro e sentou-se ao meu lado, toda meiga,delicada e amorosa como era.
Tenho-os neste momento na minha mente, no meu olhar, no meu coração, no meu corpo. Vejo-os na minha frente, o Valdir cuidando amorosamente do Vinícius, eu que fui seu Anjo, Vinícius, no encontro. A Bruna e toda sua energia analisando os acontecimentos e o capital avançando na Amazônia.
Não há palavras que possam expressar o que se passa em mim agora. Por que, meu Deus, vidas tão dedicadas à causa do povo são ceifadas desta maneira insana? Por que, meu Deus, vidas tão jovens, tão cheias de esperança e futuro, não podem mais construir conosco um Brasil popular, uma América Latina dos pobres? Mas sei também que, de um jeito ou de outro, eles estarão conosco, eles lutarão conosco contra as elites que exploraram os trabalhadores por séculos. Eles estarão ao lado dos indígenas por uma Terra Sem Males. Eles estarão com os quilombolas para conquistar a liberdade. Eles estarão de todos os pisados, humilhados, ofendidos historicamente. Os de baixo, como dizia Florestan, que não se entregam, não se dobram, resistem. “Não se entreguemo pros hômi, amigas/os, companheiras/os de jeito nenhum”.
Nós não os abandonaremos nem eles nos abandonarão. E faremos o Encontro nacional, a realizar-se semana que vem, em sua memória e com seu compromisso. Eles são nós. Nós somos eles. Quero chorar e não consigo. Mas vamos chorar todos juntos, derramar todas as lágrimas do mundo semana que vem, abraçados, comovidos, mas de alma aberta, de coração e mente fortalecidos, porque sabemos pelo que brigamos, sabemos porque estamos nas infindáveis reuniões, sabemos porque nos metemos nas estradas em ônibus nada confortáveis, sabemos porque não esmorecemos, sabemos porque não vamos deixar que nada e ninguém haverá de fazer com que, depois do choro,com e apesar da dor, abandonemos irmãs e irmãs, ninguém nos derrubará, ninguém nos abaterá.
Companheiras companheiros queridos Nossa vida é uma (e eu passei por uma circunstância de acidente em 7 de setembro do ano passado que me faz lembrar disso todo dia). Não deixemos de aproveitá-la da melhor forma. De sorvê-la cada segundo, cada minuto, cada hora. Mas de um jeito que só, amantes e amados, queridos e queridas, solidários e solidárias, revolucionários e revolucionários, sabemos e temos capacidade de ser. Humanos, muito humanos, inteiramente humanos. O tempo passa, mas não passa.
Me lembro da passagem e do muro. Eles, passagem e muro, estão lá. Podemos bater no muro. Podemos usar a passagem e atravessar. As coisas são finitas e infinitas ao mesmo tempo. Da coisa mais simples: da grama que viceja, do orvalho que cai, da chuva lenta; das coisas monumentais: a multidão que se une, a ocupação corajosa da terra, a solidariedade que brota do inesperado. Somos mortais e imortais, porque somos gente, porque amamos, porque temos sentimentos, porque vemos a luz no horizonte. Apesar de tudo, À VIDA, AO PRAZER E AO AMOR. À humanidade, aos homens e mulheres que somos. Aos companheiros e companheiras que somos. Abraços mil, doloridos, saudosos, mas abraços mil. Beijos mil, sem sal, com sal, mas beijos mil. Eles se foram, nós continuamos sua luta.
* Homenagem de Selvino Heck.
Foi criado um Fundo de Solidariedade por todas as entidades de Rondônia, para pagar as despesas, que são altas:
Nome da conta: Arquidiocese de Porto Velho
Agência Banco Bradesco: 1294
Número da conta: 35.154-7
Pe. Paulo Tadeu / Raimundinha Pedraça / Pe. Fontinelli / José Josivaldo de Oliveira
Contatos: (69 3223 8095 Selvino Heck é Assessor Especial do Presidente da República