Texto de Kelma Nunes e Meyre Coelho
O Brasil vive atualmente uma crise de paradigmas expressa principalmente pela flexibilização dos processos produtivos, pela imposição do mercado e pela reestruturação das relações sociais de trabalho, baseadas, sobretudo – em tempos de neoliberalismo – na exacerbação da dominação e exploração de trabalhadores e trabalhadoras.
Por outro lado, os avanços tecnológicos aliados as crescentes exigências de qualificação técnica para o mercado de trabalho, criam uma atmosfera de profunda insegurança e denotam uma ausência de perspectivas para uma parcela significativa de trabalhadores e trabalhadoras no Brasil, que não “conseguem” adentrar no universo mercadológico excludente do capitalismo, mesmo depois de intermináveis cursos de qualificação. É o denominado ciclo vicioso da qualificação, presente nas políticas de emprego e renda, sob a regência do mercado do capital.
Todavia, não é de agora que a ordem do capital exclui e desagrega. A própria história desse sistema sócio-político-econômico é uma história de privatização e de exclusão, de relações sociais desiguais e sexualmente opressoras sobre as mulheres.
Nessa trajetória do capital, que lugar foi reservado às mulheres? Que papel lhes foi atribuído ao longo da história? Para entender essa participação da mulher na vida em sociedade e sua inserção no mundo do trabalho é necessário um passeio pela história, relembrando as inúmeras lutas por elas empreendidas, para ter efetivado seus direitos sociais e políticos. No Brasil, somente em 1932 a mulher conquista o direito ao voto, seguido de um processo de desmistificação da domesticidade, onde a mesma deixa de ser vista como extensão do “lar” e passa a ter maior participação nos espaços de atuação política e formação ideológica. Com as crescentes exigências do capitalismo, a sociedade vai-se reordenando, a família nuclear sofre uma desestabilização e as mulheres são impulsionadas a entrada no mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que, organizam-se como movimento feminista, que proclama o direito à cidadania, denunciando a diversas facetas da dominação patriarcal, a opressão machista, numa perspectiva de findar a divisão sexual do trabalho.
Feminismo e Capitalismo afirmam então, na história, trajetórias opostas e excludentes: um defendendo a opressão, a exclusão e a dominação; o outro a liberdade, a igualdade e eqüidade de classe e gênero. Nesse sentido, o movimento feminista ao distanciar-se da lógica da ordem do capital, aproxima-se de outros movimentos que pensam e agem com base em outros parâmetros de desenvolvimento, como é o caso do movimento da economia solidária, que no cenário de capitalismo global, desponta como uma possibilidade concreta e real, contraposta, de construção estratégica de um outro desenvolvimento para o país, onde não somente o trabalho é re-significado, tomando patamares de solidariedade e cooperação, mas os princípios da auto-gestão, da democracia e da participação eqüitativa entre trabalhadores e trabalhadoras são pilares dessa nova forma de organização do trabalho, das relações sociais e da própria sociedade, apontando para a emancipação humana.
Dessa forma, uma outra sociedade é possível? É, mas, somente se às mulheres, for garantido o direito de se tornarem proprietárias dos meios de produção, com as mesmas chances que os homens mediante a propriedade coletiva, a livre inserção nos grupos produtivos e a participação irrestrita nos espaços de debate e construção do movimento de economia solidária em nível local e nacional.
A economia solidária como espaço dialógico em construção, tem, pois, como tarefa primordial, estabelecer o debate acerca da erradicação da divisão sexual do trabalho, acompanhada de toda e qualquer discriminação relacionada às mulheres – racismo, lesbofobia, preconceito e discriminações correlatas. A centralidade dessas questões é pauta do dia para os inúmeros empreendimentos solidários que surgem no Brasil, na América Latina e no mundo. Assim como, na construção institucional da política pública de economia solidária que deve está em consonância com a política pública para as mulheres. Feminismo e economia solidária aproximam-se, enamoram-se e podem sim, estabelecer uma relação libertária, colaborativa, cooperativa, que aponta para o crescimento social, à emancipação humana e à felicidade.
* Kelma: ONG Ceará em foco: antenas e raízes e integrante da rede de gestores públicos de Economia Solidária. Meyre: ONG INEGRA e integrante do Movimento de Mulheres Negras do Ceará.