Fonte: www.ibase.org

Texto de Paulo d’Avila Filho

A tragédia aérea de terça-feira, 17 de julho, comoveu as pessoas. Assistimos à competente cobertura dos fatos pelos diversos jornais. As imagens e as narrativas sobre as vítimas – homens, mulheres e crianças – informavam sobre um rastro de dor e sofrimento de familiares, amigos(as) e conhecidos(as). Colocar-se no lugar dos(as) que lá estavam ou dos(as) que cá ficaram na angústia da perda é uma reação imediata e, de certa forma, um saudável sentimento de piedade profundamente humano.

Imagino que muitas pessoas passaram a madrugada daquele dia chocadas. Na quarta-feira, contudo, fomos brindados também com interpretações e conexões formuladas pelo Jornal Nacional da Rede Globo. Após o relato do acidente, fomos surpreendidos pelas imagens dos parentes no momento em que recebiam a notícia da morte de seus entes queridos.

Não parece necessário para a compreensão da dimensão afetiva da tragédia a veiculação dessas cenas. Não creio constituir uma nova informação mostrar a cena de um pai ou uma mãe, por exemplo, no momento no qual recebe a notícia da morte de um(a) filho(a). Logo em seguida, porém, compreende-se o motivo do apelo midiático aos sentimentos do(a) espectador(a). Tratava-se do estabelecimento da conexão entre o acidente da TAM e a chamada “crise aérea brasileira”, cujo culpado vem sendo apontado há algum tempo: o governo Lula.

Compreensível, afinal de contas, desde pelo menos o “great German propagandist, Dr. Goebles”, quando aprendemos a arte da manufatura das emoções e das imagens a fim de cristalizar uma mensagem. Depois das cenas comoventes, entraram os já conhecidamente veiculados e descabidos depoimentos de membros do alto escalão do governo relacionados à chamada “crise aérea”. O objetivo ficou claro: culpar o governo pelas mortes, denunciando sua atribuída inoperância e descaso.

O procedimento não surpreende e faz parte do jogo democrático em uma sociedade com imprensa livre. Ao contrário da fantasia cultuada por parte de seus operadores, a imprensa não constitui o “quarto poder”. Os jornais são atores sociais, movidos por interesses particulares e agendas próprias, como qualquer outro. Não falam em nome da sociedade. Compondo um mercado de venda de informação, não possuem os compromissos das instituições públicas, embora façam parte de uma sociedade democrática.

O compromisso é com a verdade ou com o verossímil, para ser mais exato. É similar ao compromisso do sabão que lava mais branco. Trata-se de uma atividade meio, cujo fim é vender jornal – vender notícia, vender imagem ou espaço para propaganda – tanto quanto vender sabão. Por esta razão, o jornal se comunica com seu público-alvo e precisa dizer aquilo que acredita ser o desejo de consumo.

Assim como políticos e acadêmicos, é fundamental para um jornal utilizar os recursos técnicos, imagéticos e retóricos necessários ao convencimento alheio. Não vejo razão, portanto, para a crucificação de veículos de comunicação que assumem posição política deliberada. Ser oposição ao governo é uma atividade democrática e saudável e o problema não reside aí. Além disso, em um país cuja oposição abdicou de seu papel, é relevante o papel oposicionista de um órgão de imprensa. Sobretudo se levarmos em consideração que se trata de um governo muito bem avaliado no atacado, mas extremamente infeliz no varejão das trapalhadas tão bem exploradas pela mídia.

Logo, trata-se de uma atividade democrática, mesmo que ao fazer este papel, sacrifique alguns valores, esteja pouco preocupado com uma apuração cautelosa ou prudente dos fatos. Afinal, como faz parte do jogo, o jornal faz política. O máximo que se poderia exigir, além do cumprimento das normas da lei e de um mínimo de seriedade com no trato da informação, seria a ética no jornalismo, assim como se faz com a política.

Se há algum problema, creio que esteja no oligopólio ou no cartel que constitui o campo da grande imprensa no Brasil. Com alguma pluralidade, talvez o comportamento dos grandes jornais fosse outro. Talvez se sentissem mais obrigados a estar atentos à qualidade do que produzem ou fossem mais explícitos quanto à sua natural parcialidade. Acho salutar, portanto, a agenda pela democratização dos meios de comunicação, não a condenação do papel político do jornal.

Mesmo que se chegue mais adiante à conclusão – e é o que parece estar ocorrendo – de que o acidente tenha sido causado por erros que não implicam diretamente o governo, culpá-lo por um acidente que envolve normas de segurança, agências de controle e políticas públicas não é uma tarefa difícil. De uma forma ou de outra, é possível associar imprevidências de quaisquer naturezas aos órgãos de governo que não teriam sido eficientes na fiscalização das condições de operação. O jornal, como qualquer ator social interessado, faz escolhas narrativas ou, noutra linguagem, editam o mundo da vida.

É verdade que o controle da aviação civil ficou durante muito tempo nas mãos de militares, resquícios de um período de ditadura. E disto pouco se falou até aqui. É verdade também que há irresponsabilidade da empresa privada que garante a manutenção da aeronave e disto também pouco se fala.

Aqui e alhures, o problema que acomete certas narrativas de oposição reside na percepção do seu destempero diante da ineficácia de seu discurso na competição democrática. Quando as críticas proferidas com absoluta convicção não ressoam na opinião pública, entre o eleitorado, o sujeito se volta contra o próprio eleitorado, desqualificando a consistência do processo de escolha de governantes. Tomo a coluna do articulista Merval Pereira apenas como ilustração de um problema que parece bem mais universal e acomete oposições de ontem e de hoje.

Comentando as confissões públicas de Lula, Merval afirma que o presidente “já revelou que fazia muitas bravatas quando estava na oposição, já admitiu que não estava preparado para se eleger presidente da República em 1989 – Collor demonstrou na prática que também não estava (…)” e completa “(…) o que só explica o fato de que na primeira eleição direta depois da ditadura militar também os eleitores não estavam preparados, pois escolheram errado os candidatos que foram para o segundo turno” (…). (20 de julho)

Só uma compreensão profundamente egocêntrica da democracia poderia proferir tal sentença. O resultado de um processo eleitoral nada tem a ver com certo ou errado, tem a ver com procedimentos. Penso que o comentário do autor sobre as eleições só explicam que seu candidato não teve capacidade, por qualquer razão que seja, de obter sucesso na competição, nada mais. Apesar de que, como demonstrado por consistentes pesquisas, a grande mídia tenha apostado em Collor.

Mais adiante, questionando o que seriam obras de fachada realizadas pela Infraero, Merval sentencia que isto está relacionado ao “(…) mais puro estilo propagandístico deste governo, que vem dando certo do ponto de vista puramente eleitoral” (20 de julho).

Avaliar sucesso ou não do governo é tema controverso. Os critérios podem ser muito variados e a perspectiva com que se avalia também. Quando se discute avaliação de governo, convém perguntar sempre: bom para quem? Mas até aí tudo bem, trata-se de uma coluna de opinião. Vale o umbigo do colunista. O problema é, mais uma vez, a desqualificação do eleitor e agora, também, do processo democrático. Afinal, o ponto de vista eleitoral é o mais importante em uma democracia representativa. A legitimidade da ordem política se assenta nisto e não na minha ou na sua opinião sobre o certo ou o errado.

É claro que o trecho sugere que o governo é marcado por fachada, não por substância. Fica claro que mais uma vez o eleitorado é visto como despreparado para perceber a verdade que só os olhos supostamente treinados e clarividentes do colunista podem perceber. O eleitor continua sendo desqualificado. E certamente continuará sendo até que se comporte como o autor gostaria. Este é sempre um argumento típico de oposição, pois justifica sua incapacidade de vencer. O problema de uma democracia mal compreendida, para ficarmos no mínimo, é que ela só parece funcionar quando seus resultados são a extensão da minha vontade. Mas mesmo isto pode ser relevado, afinal de contas, em uma sociedade em que se consolida a boa tradição democrática é permitido inclusive expor nossas subcutâneas tentações autoritárias.

Não me preocupa o exercício democrático da oposição, mas certo clima de destempero no trato com as instituições democráticas.

Paulo d’Avila Filho é Cientista político, professor do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio