Fonte: www.unisinos.br
Na opinião de Benedito (Bené) Anselmo Martins de Oliveira, “há muito mais de Economia Solidária no Brasil do que possamos observar. Estamos só no começo disto tudo. Há muita história para ser construída e contada ainda”. A declaração faz parte da entrevista a seguir, concedida por Bené à IHU On-Line, por e-mail.
Graduado em Administração de Cooperativas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), cursou mestrado em Administração pela Universidade Federal de Lavras (UFLA) e doutorado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), com a tese As cooperativas populares e seus desafios, limites e possibilidades: Casos de cooperativas da cidade do Rio de Janeiro. Bené é coordenador nacional da Rede de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares- ITCP’s, membro da coordenação nacional do Fórum Brasileiro de Economia Solidária e do Conselho Nacional de Economia Solidária. Escreveu capítulos de livros e artigos relacionados a cooperativas populares como, por exemplo, As contribuições da incubadoras tecnológicas de cooperativas populares para o desenvolvimento da economia solidária e para a construção de um novo modelo de extensão universitária (In: Abreu, Janio Caetano de. (Org.). Cooperativismo Popular e Redes Solidárias. São Paulo: All Print, 2007, v. , p. 121-132); As cooperativas populares como ambientes de multiplicação de capital social e de sustentação da ecnomia solidária (In: Maria José Carneiro; Luiz Flávio. (Org.). Cadernos de Textos do CPDA. 22 ed. Rio de Janeiro, 2006, v. 01, p. 103-123). Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que alternativas o senhor propõe para criar uma outra economia? Como seria essa “outra” economia?
Benedito de Oliveira – No Brasil, existe um enorme predomínio do que convencionamos chamar de economia capitalista, que tem no liberalismo a sua sustentação ideológica e que possui no mercado a sua estratégia de expansão. Este tipo de economia se assenta em pelo menos dois princípios fundamentais: o da competitividade, que acirra a disputa por nichos cada vez maiores de consumidores, e o do lucro, que serve para remunerar o capital aplicado nos empreendimentos. Este tipo de economia requer, para seu desenvolvimento e fortalecimento, um tipo de relação com o Estado, que pressupõe o seu distanciamento das questões econômicas, ou seja, é preciso que ele se distancie o mais possível das questões do mercado. A esta tese, que é considerada como um dos pressupostos liberais, chamamos de livre mercado ou desregulamentação. Com este tipo de suporte, a economia capitalista predomina, se expande e se fortalece, sobretudo nos países periféricos, onde os governos cedem às pressões das grandes corporações e de grupos econômicos, atingindo o ápice do favoritismo, criando mecanismos de apoio para este tipo de atores da economia, que vão desde os incentivos fiscais até o perdão de dívidas, passando pelas famosas re-negociações de empréstimos, que, no Brasil, possui como exemplo o caso das empresas do setor do agrobusiness. Normalmente, este tipo de economia necessita para suas bases de sustentação, ou seja, para as empresas – que em muitos casos são travestidas de cooperativas, consórcios, redes etc. -, três elementos: crédito, mercado e disponibilidade tecnológica. Neste sentido, as empresas dispõem, especificamente no caso brasileiro, de variadas linhas de crédito, principalmente dos bancos públicos, nas quais, por exemplo, para a questão dos grandes empreendimentos, o BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – tem sido o grande financiador. Sendo por esta razão, pode-se afirmar que o crédito não é um problema para as empresas capitalistas no Brasil. Quanto ao segundo elemento, o mercado, as empresas capitalistas possuem uma franca hegemonia no domínio do mercado nacional, sendo este, em sua quase totalidade, completamente dominado por suas orientações ou demandas. Passando desde a completa liberdade de propaganda consumista até o argumento que os economistas chamam de “gerar a sua própria demanda”, que se configura numa estratégia de mercado, as empresas, na perspectiva de não terem clientes a sua disposição, forçam a atração destes com os chamados crediários próprios ou bancos/financeiras próprias, pelos quais, por exemplo, a própria vendedora de veículos empresta o dinheiro para que o cliente compre o seu carro. Então, o que se presencia é um mercado extremamente favorável para as condições de desenvolvimento da economia capitalista. O terceiro elemento utilizado pelas empresas capitalistas é o da questão da disponibilidade tecnológica. No caso brasileiro, só para citar dois exemplos, estas empresas possuem um sistema de formação e qualificação que, em boa medida, é financiado pelo governo e que conhecemos pelo nome de Sistema “S” . Este sistema prepara e qualifica trabalhadores e trabalhadoras “talhados” para serem agentes defensores do lucro e da competitividade. Em segundo lugar, elas contam com a ajuda de muitas universidades, que fortemente destinam suas atividades de ensino, pesquisa e extensão, para formarem profissionais com o perfil do que eu posso chamar de “almas empresárias”. Nesta perspectiva, sem a necessidade de se fazer maiores reflexões científicas, podemos afirmar que a economia de mercado, no Brasil, tem todas as condições de se desenvolver e se afirmar cada vez mais como a única via de sustentação das propostas de desenvolvimento e que sua matriz de sustentação se baseia nas práticas de competitividade e busca de lucro. Entretanto, na mesma medida em que esta economia cresce e se fortalece, ela também gera desdobramentos, que passam a ser preciosos na formação de eventos, os quais, pelo menos nas ultimas três décadas, sobretudo, provocaram estragos visíveis na composição do tecido social brasileiro. Estou falando de eventos como desemprego, exclusão social, pobreza e miséria. Por esta razão, a sociedade civil organizada e, em boa medida, as universidades brasileiras, têm buscado elementos para enfrentar estas situações. Cada uma a seu modo, mas, em vários momentos, muito ligadas – e isto é um elemento novo no Brasil -, apontam pistas para novos caminhos de desenvolvimento. Enquanto estes caminhos são apontados, evidentemente que os movimentos sociais os incorporam em suas agendas e passam a pressionar, o estado e as empresas, a reduzirem seus passos no sentido de frearem suas ações de “desmantelos sociais”. É nesta perspectiva que surgem e se reforçam os movimentos contra o desemprego, a exclusão social e a pobreza. Este tipo de movimentação traz consigo ou é incorporado às ações de outros movimentos sociais, que têm lutado contra, por exemplo, a destruição da natureza, o desrespeito aos diretos de cidadania, a concentração de terras em regimes de latifúndios – sejam estes produtivos ou não – etc. Muitas destas movimentações possuem como fonte de abastecimentos ideológica, política e prática, as atividades do Fórum Social Mundial. Uma destas movimentações é conhecida como a Economia Solidária que, precisamente, se apresenta numa expectativa de ser uma proposta de organização, inicialmente econômica, que consiga ser apresentada como alternativa à matriz de desenvolvimento econômico adotada no Brasil. Esta proposta está conectada com um tipo de desenvolvimento que considera a solidariedade e a cooperação como seus princípios estruturantes, em negação aos princípios da competitividade e da busca do lucro, que são adotados pela empresas capitalistas. Neste sentido, esta outra economia se assenta na negativa da economia de mercado. Ela deve ser includente, distribuidora de renda e poder e terá o papel fundamental de promover inclusão social, diminuição da pobreza e do desemprego/desocupação. Trata-se de uma economia que, observando práticas e ações estruturantes, visa a organizar um sistema econômico que não ameace os povos nem a natureza. Por isso, vai requerer, para sua sustentação, elementos de crédito, mercado e tecnologias, diferentes daquelas de que dispõem as empresas capitalistas.
IHU On-Line – Qual é o papel das ONG’s e do poder público para as economias solidárias?
Benedito de Oliveira – Sob o desenvolvimento da Economia Solidária estão duas atividades, ou ações, que são muito importantes: a do estado e a da sociedade civil organizada. No caso do estado, este tipo de economia requer uma nova ação e estrutura deste. Não se pode desenvolver uma economia solidária num estado cujas instâncias de governo sejam autoritárias, centralizadoras e que não possuam canais de diálogos com a sociedade civil de forma direta e participativa. Nesta perspectiva, exige-se um estado democrático e, sobretudo, com uma proposta clara de desenvolvimento, que contemple teses, por exemplo, como as do desenvolvimento endógeno, do desenvolvimento sustentável etc. e que contemplem a necessidade da distribuição de renda e de oportunidades. Um tipo de desenvolvimento destes só poderá ser construído se o estado se transformar em um tipo de instância de deliberação, no qual, ao mesmo tempo, possa atuar com ator e arena, e onde a sociedade civil possa ser protagonista da consecução deste desenvolvimento. No caso brasileiro, para se ter uma idéia do que se poderia fazer, pode-se, inicialmente, atender às demandas que a sociedade civil destacou durante as realizações das Conferências Nacionais – dentre elas, a I Conferência Nacional de Economia Solidária. Para além disto, se necessita de um estado que aceite democráticos e decisivos diálogos com a sociedade civil, no sentido de se vislumbrar a elaboração, a implementação e a avaliação de políticas públicas, que tenham como componente vital o controle social destas. Especificamente, ainda podemos citar a necessidade de um estado que dialogue com atores sociais que tenham representação das demandas de movimentos organizados, como é o caso do Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES. Neste raciocínio, pode-se pensar uma participação das Organizações Não-Governamentais, já que numa economia do tipo solidária, que traz consigo a capacidade de absorver as demandas da sociedade civil organizada, é imprescindível que elas estejam presentes, tanto na concepção dos tipos de estratégias a serem seguidas quanto na elaboração de planos, projetos, programas e campanhas que possam dar sedimentação a este outro tipo de economia. Eu me arrisco a dizer que as ONG’s que são comprometidas com as lutas contra os efeitos negativos do liberalismo são, ao mesmo tempo, fortes elementos nos chamados movimentos anti-sistêmicos, dentre os quais podemos destacar as ações de Economia Solidária. Neste aspecto, as ONG’s não só possuem um papel importante na Economia Solidária, mas fazem parte dela. São protagonistas, em muitos casos.
IHU On-Line – A Economia Solidária é vista como uma parte importante e potente da economia emergencial de combate à fome, ao desemprego e à exclusão. Assim, seu caráter assistencial é bastante evidente. Por que esse ângulo do projeto é mais enfatizado ou reconhecido pela população? Como apresentar a Economia Solidária por outro viés, como uma política econômica potente para a sociedade brasileira, por exemplo?
Benedito de Oliveira – É natural que num território onde predomina a economia capitalista, as pessoas sejam forçadas a não enxergar outras possibilidades de organização econômica, que não seja aquela em que existe um mercado onde as empresas competem e disputam clientes – cada vez mais com tecnologias mais avançadas -, na perspectiva de extraírem das relações comerciais o maior volume de lucro possível e, nos sistemas de produção, possam extrair o maior volume de mais-valia. Quando falamos e demonstramos as experiências de Economia Solidária e suas estratégias, as pessoas tendem a acreditar que se trata de um apêndice da economia liberal, criada para amortecer os conflitos gerados pela crise do desemprego, da exclusão social, da fome e da miséria. Muitos teimam enxergar na Economia Solidária uma “coisa” de pobre para pobre. É neste sentido que técnicos de algumas agências mundiais, como o Banco Mundial, chegam a caracterizá-la como uma espécie de poor market (mercado de pobres). Isto significa que temos muito a avançar. Mas nisto tudo eu consigo enxergar algo de muito positivo. Quando uma instituição que serve ao capitalismo, ou pelo menos técnicos ligados a esta, começa a se inquietar e apresentar conceitos e definições para algo que os trabalhadores e a sociedade civil organizada estão criando para encontrar alternativas de desenvolvimento, eu acredito que estamos no caminho certo. Resta-nos encontrar forças para continuar expandindo, fortalecendo, estruturando, enfim, plasmando isto que estamos chamando de uma outra economia. Quanto mais avançarmos na concretização de políticas públicas para Economia Solidária, na criação de redes, teias, cadeias, consórcios, de empreendimentos econômicos solidários, tanto mais estaremos próximos de ter uma proposta clara de organização econômica e de uma nova matriz de desenvolvimento.
IHU On-Line – O cooperativismo das grandes empresas e cooperativas pode engolir, e até destruir, o cooperativismo popular? O projeto de Economia Solidária como um sistema social e econômico alternativo ao capitalismo pode estar ameaçado?
Benedito de Oliveira – O cooperativismo que eu chamo de tradicional ou empresarial é, por excelência, um forte suporte do capitalismo. Observe que as cooperativas-empresas que são alinhadas ao ramo do agrobusiness, por exemplo, respondem hoje por cerca de 6% do PIB, e nem por isto a grande maioria dos associados a elas conseguiram sair da situação de pequenos ou mini produtores, existindo um sistema de cooperativas ricas e de associados pobres. Há um sistema que reproduz a concentração de renda e de poder, de falso cooperativismo, que inclusive esconde, em suas entranhas, as famosas coopergatos ou cooperfraudes. Um sistema como este vai fazer de tudo para destruir qualquer outro tipo de ação cooperativista, sobretudo o cooperativismo popular, que traz consigo aquilo que é frontalmente contrário ao cooperativismo convencional, ou seja, a possibilidade de distribuição de renda e de poder, através das práticas de autogestão. Eu avalio que isto resultará num grande embate teórico. Mas, do ponto de vista prático, no caso do Brasil, não vejo outra saída a não ser o cooperativismo popular se organizar em um sistema próprio e ajudar no fortalecimento da Economia Solidária, que sempre será ameaçada pelo capitalismo. Mas que, cada vez mais, vai se transformando em uma efetiva fonte alternativa de organização da produção, da distribuição e do consumo de produtos e serviços, adquirindo maior padrão de zelo pelos direitos dos povos e pela preservação da natureza.
IHU On-Line – Qual é a influência e importância das universidades na construção da Economia Solidária? Qual é o papel do ITCPs nesse projeto?
Benedito de Oliveira – As universidades, e com elas várias projetos e programas de extensão e pesquisa, vão se integrando na Economia Solidária, na mesma medida em que duas coisas acontecem: a primeira é a necessidade de novas tecnologias que dêem conta das demandas do desenvolvimento dos empreendimentos econômicos e solidários e da própria Economia Solidária. Eu falo, precisamente, de tecnologias de gestão, de tecnologias que possam ajudar na fabricação de produtos que atendam os princípios da Economia Solidária etc. E a segunda é aquela em que a sociedade vai cobrando um novo tipo de relação destas universidades com as camadas populares, ou seja, as camadas excluídas. Isto garante o avanço de uma nova prática do fazer universitário. Sendo assim, eu creio que o ensino, a pesquisa e a extensão – que significam os três vitais pilares das universidades – deverão ter orientações a partir de novos paradigmas, no tema específico que estamos falando, os da Economia Solidária. Para justificar estes avanços, eu posso destacar que em muitas universidades brasileiras estão sendo escritas teses de doutorado, dissertações de mestrado, monografias de graduação e pós-graduação, e, ao mesmo tempo, estão sendo criadas disciplinas e cursos que tratam da Economia Solidária. Isto é um avanço enorme, se considerarmos que a Economia Solidária ainda pode ser considerada como uma estratégia e uma proposta em construção. Agora, de uma coisa nós não poderemos deixar de dar atenção: as ITCP’s – Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares. São elas as responsáveis, em boa medida, por uma prática que sinaliza ou, pelo menos, é um ponto cardeal importante, para um novo fazer universitário. As ITCP’s, em sua maioria – pois ainda não podemos garantir que todas as que existem tenham este perfil – adotam como metodologia básica de trabalho a pesquisa-ação. Isto faz com que professores, técnicos e estudantes se dediquem a atividades de incubação, numa perspectiva de, ao mesmo tempo, serem assessores e atores dos processos de desenvolvimento das cooperativas populares ou dos coletivos econômicos e solidários que incubam. E isto tem gerado resultados dos mais diversos, que vão desde o engajamento destas pessoas em cooperativas – atuando como associados delas – até autores de dissertações, teses, monografias, artigos científicos, relatórios de estudos etc., que vêm contribuindo, em alta medida, para as reflexões, conceituações, definições, sobre o que pode ser qualificado como um empreendimento da Economia Solidária. Isto tem uma validade muito grande, que, na atualidade, poderemos nem perceber, até porque, como estamos tratando de um fenômeno contemporâneo, quem está integrado nele, muitas vezes, não consegue enxergar as suas dimensões. Mas, com certeza, o que as ITCP’s estão fazendo é algo de revolucionário no sentido de se pensar um novo fazer universitário, no sentido de se pensar e exercitar uma nova relação das universidades com a sociedade.
IHU On-Line – Dados oficiais da feira de Santa Maria, mostram que foram mapeados no País mais de 18.878 empreendimentos, que respondem por 1,574 milhão de postos de trabalho. A que o senhor atribui esses resultados? O número de empreendimentos gerados pela Economia Solidária pode ser considerado elevado?
Benedito de Oliveira – Por falar na Feira de Santa Maria , vale a pena aproveitar este espaço para dignificar aquele magistral evento. Creio que podemos dizer, com muito orgulho, que a Feira de Santa Maria já é um sinônimo de avanço da Economia Solidária e do cooperativismo popular no Brasil. Mas, em verdade, estes números divulgados em Santa Maria são dados que se baseiam no Mapeamento da Economia Solidária no Brasil, que é um dos programas que existem na Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES, do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE. Por este mapeamento, já podemos perceber, quantitativamente, o quanto a Economia Solidária no Brasil significa. Porém, eu quero acreditar que estes dados ainda estão incompletos. Arrisco dizer que temos muito mais experiências do que já mapeamos e que há muito mais gente envolvida nisto do que já somamos. Arrisco dizer que temos uma participação no PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro maior do que podemos imaginar ou hipotetizar. Com este raciocínio, afirmo que somos maiores do que aquilo que enxergamos hoje, pois há muito mais de Economia Solidária no Brasil do que possamos observar. Estamos só no começo disto tudo. Há muita história para ser construída e contada ainda.